Romance Agalopado
O que surge é uma mistura do som e da imagem. Chega e é resultado de instantes distintos. Finalmente sai da cabeça. É som de guitarra equalizada e distorcida por efeito de equipamento eletrônico. "Som sincopado", imagem difusa. A batida é raivosa, brutal. E rápida. Tudo é muito rápido. Ao mesmo tempo é bem pensada e estuda cada passo. Quantos botões são necessários para afinar a compreensão de um homem sobre o bicho – mulher ? Explode um repicar de rabeca saído do sertão sem chuva e pôr do sol alaranjado e descoberto. A lembrança vem em flashes. Acendem e apagam no pensamento. Cruzamentos de dados e sentimentos que ficaram muito longe. Dez eles eram ao todo. Entre meninos e meninas de onze e dezessete anos e "quase dezoito". Interrompe o reco – reco. Barulho de folhas secas pisadas, cocheira fedendo a bicho que vive numa paz que o humano desconhece. Walt Withman diria desse finito sossego que carregam, quase em oração:
"Creio que poderia transformar - me e viver com os animais. Eles são tão calmos e donos de si. Detenho - me para contemplá - los sem parar. Não atarantam nem se queixam da própria sorte, não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. Nenhum deles se mostra insatisfeito, nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas. Nenhum deles fica de joelhos diante do outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo".
Lampião e seu bando rezam. A cartilha é mostrada em tela grande. Do que me lembro foi mais ou menos assim: juntos sairiam numa cavalgada. Não havia cavalos e éguas para todos. Uma estava “prenhe” – avisou o cocheiro. Apontou para a efígie ovalada de fêmea quase castanha erguida incrédula sob os cascos. Alguns resolveram – se em pares. Mas o espírito de ventura não permitiria que ela fosse apenas na garupa do namorado. Namorado, além de peixe, é resultado de paciente “pescar”. Mais paciente e espera que pesca. Captura. Escolhem, mas porque foram domados pela beleza ou ingenuidade alheia. Mais rede que pescaria...No saciar ou fartura de um julgar que adio. Viviam compactuando com a felicidade de par há ano ou mais. Ela mais nova que ele. Ele menos bravo que ela. Aquele episódio deixaria marcas. Reproduziria nela uma viva captura do instante. Do medo que não tinha nenhum e de um adaptar – se habilidoso que fazia dela sempre pronta, sagaz.
Ele admirava em silêncio de menino oprimido, em vias de virar opressor..."Não é assim com todo menino!" Tia dora diz que não. Mas Diadorim foi morto e o romanceiro poeta afirma quando lhe matou:
“O senhor talvez até ache mais do que eu,
a minha verdade.
Fim que foi.
Aqui, A estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.”
Guimarães Poeta Rosa ela lia dúzia de anos depois. “E aquela era a hora do mais tarde”, em que nascera e tantos têm horror. E quem veio baixando foi a mão, para deslizar num céu de nuvem branquinha de algodão e apertar com dedos longos as partes de parir o romance de então. Findo o prólogo vem o verbo de desapontar cocho, homem seco, mulher vesga e varão. Ao ler a frase “sabendo somente no átimo em que eu também só soube...” vibram as cordas minúsculas tocadas por dois dedos em cuspe. “Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...Estarreci”
Com esse impulso satisfeito pela escrita versada de Guimarães, ouvia o som rasgando em cordas de metal a sofisticação da máquina. E a lembrança presa há seis dias, saia, porque era nove e não sabia fazer do outro inspiração perdida. Reproduzia em círculos concêntricos e maiores a cada dia, o que vivera em tarde de menina que nem os 18 anos ainda trazia.
Subiu com coragem e nenhum mito de dor ou queda na cabeça a égua prenhe, proibida. Tirava – lhe da cocheira em hora que o animal marrom que nem seus cabelos esperava estar apenas a espera da hora de seu potro. Saia com coragem cega de quem tem impulsos maiores que as mãos, de pianista, diziam...Sabia dela e do seu talento de adaptar – se a qualquer forma, da flexível maneira de cruzar os pés nas costas e de deixar rente ao chão, os joelhos para fora quando os calcanhares alcançavam a virilha fazendo das pernas cumpridas asas de borboleta. Medo sentia somente agora enquanto escrevia e discorria em estilo que ainda não conhecia, como bicho desabalado corria os dedos em teclas de letras e de palavras vazias de significado. Mas a imagem já lhe possuía, a idéia de livrar – se dela dominava conversas e tardes inteiras de alegria em estar com os amigos. Não suportava mais a idéia de repetir uma vez que fosse que ali ainda estava presa a idéia de soltar todo o ritmo da história que lhe prendia.
O círculo talvez fosse o derradeiro da pedra jogada no rio de sua vida pelo primeiro namorado. Uma promessa que durou três anos inteiros e a devoção à compreender mecanismos espíritas. Provou de marcas delicadas e escurecidas nas extremidades do seu peito, onde carregava o coragem puro e cheio de sonhos honestos, infantis e também medonhos. Somente de conhecer o mundo, de sair por aí cavalgando. Não aceitou a garupa, porque não aceitaria. Mesmo que não tivesse surgido dela a idéia para o passeio, da oportunidade de respirar ar puro no campo em cima do bicho suando suas pernas e joelhos, acentos e selas. Sentia – se um mesmo animal subida neles. Talvez também porque tivesse a mania de levantar o queixo quando o vento batia em seus cabelos. Lembrava que ele, o vento, vinha viajando de longe, como um dia também gostaria e faria. E o fez. Em pequena medida de cidades do interior, de onde o vento não soprava para ela no litoral. Foi para onde podia mandar notícia aos que ficaram.
Subiu na égua prenha. Todos se acomodaram sozinhos e aos pares nos animais e seguiram passeio como quem seque viagem. A aventura jovem, iniciada em horas de meia tarde. Sentia sua égua mais macia, redonda, ovulada. O bicho que carregava na barriga não se mexia, já estava em momento de encaixe na bacia. Maduro feito fruta que aparece brilhando em galho mais alto da árvore. Sabia da ousadia que cometia a cada passo da cavalgada. Foram na frente ela e a égua pré – parida, para logo ficar para trás. Bem atrás. O namorado não se conformava, ofendido dela não aceitar a anca do quadrúpede que comandava. Ele, desde menino, gostava também dos bichos, e melhor que todos os amigos montava neles num dos poucos traços de segurança de menino autônomo, o que não se parecia em nada o que era em outras horas da vida que levava. Pais que brigavam, irmãs que tinham direito a dança e cursos de línguas, ele mais velho, tinha as chances, e desperdiçava. Ali não, sentia – se seguro, cavaleiro e já estava para se tornar o que todos esperavam.
Ela já na Universidade, ele a caminho, e ali nos caminhos estreitos de terra batida no campo, comandando o bando de meninos e meninas, ela na égua prenha atrás da turma inteira que só galopava. Voltou um par de vezes acelerando o animal com o passo do outro que montava. Não tinha jeito. A égua a cada passo mais pesada. Já iam em meia volta do trajeto costumeiro, no cruzamento que alongava o passeio, aconteceu o que cocheiro avisou com resultado de desobediência. No instante em que o animal percebeu que a tortura ia ser prolongada, mexeu a cabeça puxando os arreios, dando salpicos com as patas traseiras até se transformassem em pinotes que a turma ia identificando aos gritos da “amazonas” montada. Disparou o conjunto de três seres vivos numa campina sem árvore nem sombra. A égua ia que ia que ia, desembestada. Até a chegada do estábulo na fazenda contava – se uns cinco quilômetros. Metade de tudo somado em menos de alguns minutos tinha sido devorado pelas patas ligeiras do animal que queria voltar para casa. Isso acontecia a todos eles quando reconheciam o caminho, mas aquela fêmea já estava indisposta desde a hora que o passeio começara.
O namorado já vinha no encalço a um par de quilômetros, parecia mais o zorro, herói de história em quadrinhos, foi emparelhando o cavalo e a égua, justo na hora que namorada já tinha dominado o susto do disparo e o movimento disforme impresso pela velocidade. Estava agarrada ao pescoço da égua, diminuiu o atrito do vento e os cabelos ainda voavam às chicotadas na cara. Sabia que tinha feito errado. Compreendia agora a pressa do animal que queria parir sossegada e se juntara a égua como parceira pelo único jeito que se dava, agachando o pescoço também longo, parecido com do animal, amarrando na fêmea os braços compridos e finos, feito pele revestindo osso puro. Ainda tentou olhar nos olhos da égua, sentiu que suas forças quase acabavam, mas aprendeu com ela naquele minuto como é que não se desiste por nada debaixo do céu e em cima do mundo que bicho desconhece igual a água, que quando quer escorre e invade.
Emparelhados os dois animais, o ritmo já não era mais o mesmo, o namorado puxou as rédeas juntando bem o cavalo na égua e gritava vermelho com a veia pulando do lado da boca que ia sentindo o gosto de sangue saído de joelho ralado. Os joelhos permaneceram intactos, mas os calcanhares que roçavam no estribo saídos dali mais carne viva e cor – de – rosa, igual a porco em dia de festa em família. O único jeito que havia era soltar o pescoço da égua e agarrar do mesmo modo o corpo do cavaleiro que naquele exato instante, sem saber exatamente porque ela odiava mais que nunca e era obrigada a saber que deveria também amar mais que tudo e que todos que naquela vida dela passaram. Passou – se para o animal comandado pelo comandante de tudo, o controlador da situação que parecia construir para ela mesma fim trágico, e foi fechando os olhos para não enxergar mais o branco dos olhos esbugalhados em caras perplexas de meninos e meninas amedrontados.
Aquele jeito que ele deu, ela não daria. Daria o jeito dela, isso sim. Pensou antes daquilo tudo que contaria a aventura em estribilho de vitória dela mesma, uma vez que chegaria sã e salva na fazenda da tia. Ele estragou tudo, estragou a história que contaria aos netos da irmã em algazarra de domingos. Nas rodas de amigos, nas páginas dos jornais quem sabe um dia. Agora, o havia um herói. Como em todas os contos de fadas que a mãe lia. E desde os treze anos entendera que vinham de uma época em que só homens escreviam. Diferente do livro escrito pela menina Judia, com mesma idade que ela tinha quando leu o livro, e que não sobreviveu à guerra feita contra a raça humana sem hegemonias.
Chegou na fazenda minutos depois da égua vingada já na coxia. Ela na garupa do namorado herói, que sorria e sorria e sorria. Ouviu mais de mil vezes a história ser contada e recontada. Não esqueceu nunca mais, e guardou bem guardada a certeza de que ele tiraria dela a vitória de chegar primeiro em casa, mesmo que aos bofes na boca, refeita do pensamento de um erro, pois o risco valia a pena pela aventura vivida. Um algo que conquistara com teimosia e a presença de uma coragem desinformada. Sabia que poderia contar diferente essa e muitas outras histórias se virasse jornalista. E faria. Atrás do páreo com o espírito de engenheiro mecânico e machista vinha o namorado, porque também escrevia o danado, mas por aquela família não passaria alguém de profissão tão tola, tão artística!
E está recontado o primeiro instante, o círculo concêntrico que deu origem a tudo que vem vivendo nos dias de hoje a menina de sobrenome "ousadia". Essa corrida desembestada de quem pariu e foi sendo deixada por outro que escolheu, tinha que ser também. Alguém novo por quem decidiu - se “porque estaria acompanhada”...
Risadas do destino escuta até hoje, e que não quer ser mais perturbada. Continua subindo sozinha em selas que encontra pelo caminho, trazendo à tona apenas a voz fina da avó materna que desde pequena ouvia dizer: “quando o cavalo selado lhe aparecer, não pergunte para onde ele vai, não queira saber. Suba sem nenhuma dúvida, depois, com as rédeas na mão, domine o destino, o futuro. Não dê ouvidos para o que vão dizer. Não abra mão nunca da aventura de quem quer muito mais nessa vida saber”. E vem ficando cada vez mais atenta aos mascarados desse mundo. Esses heróis que ficam guardados anos e anos em homens que ainda eram meninos quando a vontade nasceu. De salvar a “donzela” em grande perigo. De bancar o todo – poderoso de um destino e “um cavalo” que nem é seu.
Uma “corrida” que pertenceu a uma menina, uma adolescente, é justa e destinada a uma mulher crescida que aprendeu a encontrar na descarga de adrenalina a exata medida do controle da situação, de um medo do escuro que houve apenas até a primeira infância, de uma vontade de aventura que não estanca e enche de saliva a boca. Molha os dentes, a garganta. Ela é invada nos pulmões, coração, cintura, quadris, e vai deixando as pernas rentes com o dorso do bicho que lhe carrega, furando feito tronco crasso o túnel de um tempo que ainda não está aqui. Num modo “agalopado” de trazer o futuro, fazer de si mesma um erro calculado responsável pelo surgimento do homem adormecido no que antes era menino assustado. Fazendo brotar do músculo sem sangue e acovardado, uma coisa pulsante, que ergue troféus, deixando - o sentindo na boca antes seca: um gostinho de vitória.
1 comment:
Seda Rasgada
Sem querer jogar confete, teu último texto colocado no blog é, para dizer o mínimo,impressionante Perdoa a rasgação de seda quando ela é justa. E pode esquecer sobre ser subjetiva demais pros outros te entenderem. Eu não nem tão afeito a textos subjetivistas. Mas captei sua mensagem, espero, da forma que você quis passá-la. Segura, clara e culta, sem exagerar nesse detalhe. Seu texto emociona, crime é não seguir adiante com esse talento.
Sérgio Montenegro Filho
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