Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Sunday, September 22, 2013

A fórmula de Nietzsche

"increscunt animi, virescit volnere virtus"*
         Friedrich Nietzsche


Para viver sozinho é preciso ser um animal ou um Deus - diz Aristóteles - Ainda falta a terceira alternativa: é preciso ser os dois ao mesmo tempo - Filosofo... - completou Nietzsche. Em "Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com um martelo)", O alemão mais universal, mesmo que qualquer presidente do país, faz reflexões sobre o assunto que nós, mortais, entendemos menos que qualquer outra criatura nessa esfera terrestre: o apogeu. Algum estado superior que só atingem aqueles que, extraordinariamente "transvaloram" ao confrontar os valores. 

Melhor que tudo, então, é reproduzir o estudo que se encerrou numa data que bem podia ser celebrada como marco e que se aproxima: 30 de Setembro de 1888, em Turim. Dia em que Friedrich entregava suas conclusões escritas sobre a "Transvaloração de todos os valores". Segue o prefácio:

"Conservar a sua serenidade frente a algo sombrio, que requer responsabilidade além de toda a medida não é algo que exige pouca habilidade: e, no entanto, o que seria mais necessário do que a serenidade? Nada chega efetivamente a vingar, sem que a altivez aí tome parte. Somente um excedente de força é demonstração de força. - Uma transvaloração de todos os valores, este ponto de interrogação tão negro, tão monstruoso, que chega até mesmo a lançar sombras sobre quem o instaura - um tal destino de tarefa nos obriga a todo instante a correr para o sol, a sacudir de nós mesmos uma seriedade que se tornou pesada, por demais pesada. Qualquer meio para tanto é correto, qualquer "caso", um golpe de sorte. Sobretudo a guerra. A guerra sempre foi a grande prudência de todos os espíritos que se tornaram por demais ensimesmados, por demais profundos; a força curadora está no próprio ferimento. Uma sentença, cuja origem mantenho oculta frente à curiosidade douta em sido meu lema: 

"increscunt animi, virescit volnere virtus"*

Uma outra convalescença que sob certas circunstâncias é para mim ainda mais desejável, consiste em auscultar os ídolos.... Há mais ídolos do que realidade no mundo: este é meu "mau olhado" em relação a esse mundo, bem como meu "mau ouvido"... Há que se colocar aqui, ao menos uma vez, questões com o martelo, e, talvez, escutar como resposta célebre aquele som oco, que fala de vísceras intumescidas - que encanto para aquele que possui orelhas por detrás das orelhas! - para mim velho psicólogo e caçador de ratos que precisa fazer falar em voz alta exatamente o que gostaria de permanecer em silêncio...

Também este escrito - o título o denuncia - é antes de tudo um repouso, um feixe de luz solar, uma escorregadela para o seio do ócio de um psicólogo. Talvez mesmo uma nova guerra? E novos ídolos são auscultados?... Este pequeno escrito é uma grande declaração de guerra; e no que concerne à ausculta dos ídolos, é importante ressaltar que os que estão em jogo, os que são aqui tocados com o martelo como com um diapasão, não são os ídolos em voga, mas os eternos; - em última análise, não há de forma alguma ídolos mais antigos, mais convencidos, mais insuflados... Também não há de forma alguma ídolos mais ocos... Isto não impede, que eles sejam aqueles em que mais se acredita; diz-se também, sobretudo no caso mais nobre, : que eles não são de modo algum ídolos...

*"Os valores crescem e a virtude floresce, à medida que é ferida". 

"Mesmo o mais corajoso de nós poucas vezes tem coragem para o que propriamente sabe..."

Há mais de quarenta frases - pérolas. Inclusive dirigidas às mulheres. O que não é de se espantar diante do que passou Friedrich na convivência (e paixão) por Salomé, ao mesmo ao lado da irmã e da mãe dominadora. O texto completo: http://www.espacoetica.com.br/midia/livros/idolos.pdf

Perder o quê?

Amanda. Não sei por que uma pessoa pode ser chamada assim. Por que se escolhe um nome, que é feito para que os outros saibam sobre você, que pode dizer logo tanto do que a pessoa tem que deveria estar no lugar mais escondido. Mas este era o nome da menina: Amanda. Que tinha vocação para ser várias coisas, inclusive todas ao mesmo tempo. E que, por hora, deixou-se apenas ser Jardineira.

E Amanda tinha tudo que uma pessoa precisa na vida: um regador chamado "Coragem". Um leão de pelúcia batizado "Impulso" e um abanador, produzido com palha seca, a quem deu nome de "Entusiasmo". Nos dias frios e cor de cinza, o regador de Amanda precisava apenas de uma faísca de luz, uma chama acessa, para refletir, pelo metal tão bem polido, algum brilho. Logo espantava a preguiça e animava a manhã mais invernosa.

Então, Amanda se ponha cedo para fora da cama e ia, sorrindo, regar as flores do jardim, que ela entendia, não eram delas. Estavam ali para que fossem cuidadas por ela. Como se o Universo tivesse destinado a ela a missão de aguá-las todos os dias. Com aquela alegria tola de Amanda, de quem não enxerga os perigos e tem vocação para escolher palavras que despertam o melhor ânimo. Assim fez com cada petúnia, frésia, gérbera ou magnólia que brotara ali. Flores a quem Amanda insistiu em dar acento, porque bem lhe cabiam. Mesmo quando alguma delas, sem avisá-la, fazia-se chamar sem circunflexo, agudo ou crase.

Nos dias de muito sol, e da iminência da chegada da música nas ruas, por celebração da farta colheita, Amanda comemorou e vibrou pelo tanto de flores nas ruas. Fez tudo que estava ao seu alcance, e até mesmo além dele, para vê-las nos palcos, floreando. Amanda, na companhia de seu leão mais que querido, assistiu a tudo se reconfortando.

Impulso era um bichinho alto, com a juba espessa, loira, que parecia pendões de trigo balançando ao sabor da brisa ou do vento mais forte. Era como um girassol, de tantas pétalas, voltando sua corola para a estrela maior da via láctea. E, por uma inexplicável mágica, os caminhos abarrotados de gente, pelas ruas estreitas da cidade, festejando e dançando, se abriam num simples movimento de Amanda e seu leãozinho.

Outono e primavera passaram sem que Amanda sequer percebesse que as estações mudavam. A companhia da mascote preenchia os dias de forma que Amanda não sentia falta sequer das flores. Até que, de repente, num dia de vendaval, pois era o mês de Agosto, afinal. Amanda recebeu a visita de um carteiro. Uma estranha sensação invadiu o coração de Amanda. Os olhos do carteiro estavam voltados para o chão. E não se ergueram sequer para enxergar se as mãos dele miravam direito onde estavam as mãos de Amanda, para as quais a carta estava destinada.

Amanda não sabia o que fazer. A carta estava endereçada a ela, com seu nome e endereço, mas o que poderia conter de tão trágico ali? O carteiro seguiu o caminho de volta ao portão, sem sequer olhar para o jardim cultivado por Amanda. A menina, que já era moça a esta altura, segurou a carta com uma leve taquicardia. Antes de abrir, pegou seu espanador, espanou bem a poeira da estrada e desprendeu o lacre que, superficialmente, prendia a aba do envelope vermelho.

De dentro, saiu uma nuvem escura, cor de chumbo, carregada de tristeza. A carta dizia que aquele jardim não deveria mais ser cuidado por Amanda. Que tem este nome e nem ela mesma sabe por que ou para quê. Para que serve um nome que já diz de você, aquilo que deveria estar mais em segredo?

Amanda juntou todas as coisas que tinha. Que era tudo o que uma pessoa precisa: um regador, chamado "Coragem". Um leão de pelúcia batizado "Impulso" e um abanador, de palha seca, a quem ela deu nome de "Entusiasmo". E seguiu sua viagem até outro lugar. Outro jardim que se queira cultivar por Amanda.

Além do que a gente já sabe que Amanda tem, ela, às vezes, esquece que ganhou do universo, quando nasceu, a mania de perder. Amanda perde tudo que se pode pegar com as mãos. Então, perdeu aquela carta também. O que mais intriga, até os dias de hoje, já uma mulher, é que a vocação para perder lhe deu a ausência do medo. E isso é difícil de entender. Afinal, onde se abrigar nos dias frios? Sob que teto acolher pensamentos amadores, como estes, pertencentes à Amanda? Pode ter escapado um detalhe: Se perdeu o que tinha, embora reste o que alguém precisa ter, não há motivo para temer.

O fato é que, a mania de perder, tirou tanta coisa de Amanda, tirou tudo! Inclusive o que nem chega a ser bom conselheiro. Agora, que não tem mais motivo, Amanda terá coragem, impulso e entusiasmo para viver a própria vida? Quem sabe o extraordinário seja demais? E Amanda, finalmente aprendeu que o necessário faz viver em paz? Talvez troque flores por livros, e deixe de lado o ordinário e o extra. O que Amanda só entendeu com esta perda é que, para muita gente no mundo, é preciso estar em guerra, permanente, contra quem ama. E isso, está no nome de Amanda. Tem como evitar?