Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Monday, August 30, 2010

Espero por uma compreensão de mim mesma que seja como diegese*. Eu obra, tu a linguagem que me narra e lê, que me traduz como presença sonora que partilha a cena com o eu personagem.

*Diegese é um conceito de narratologia, estudos literários, dramatúrgicos e de cinema que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa. A diegese é a realidade própria da narrativa ("mundo ficcional", "vida fictícia"), à parte da realidade externa de quem lê (o chamado "mundo real" ou "vida real"). O tempo diegético e o espaço diegético são, assim, o tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor.

Em Cinema e outras linguagens audiovisuais, diz-se que algo é diegético quando ocorre dentro da ação narrativa ficcional do próprio filme. Por exemplo, uma música de trilha sonora incidental que acompanha uma cena faz parte do filme, mas é externa à diegese, pois não está inserida no contexto da ação. Já a música que toca se um personagem está escutando rádio, por exemplo, é diegética, uma vez que faz parte do contexto ficcional.

Tuesday, August 24, 2010

João e Maria?


...

Quem sabe vou soltando grãozinhos?

Na mesa de cada dia o abandonado pão

Quem sabe até deixo escapar um suspiro?

Ou, de surpresa, um sorriso. Aos pedacinhos...

...

No simples gesto de virar para cima

Passo seguinte, troco o olhar cansado

Por um mais animado, sem os incômodos palitos

De fósforo, nas minhas pálpebras ainda apoiados

...

Tenho pra mim, em palpite simples, que

Se tivesse dançado uma música apenas

Na última festa junina, terias sussurrado


Cantado baixinho em meus ouvidos,

Que melhor que prender passarinho

É vê-los piando e voando felizes.

Friday, August 20, 2010

Uma criatura dada a perfeições, que só enxerga defeitos nos outros e nunca em si mesma, depois de romper uma amizade antiga enfrenta um dia inteiro no Aeroporto Internacional de São Paulo, Cumbica. Seu enredo faz com que mergulhe de cabeça na trama de um dos livros de Kafka. Será que o episódio vai melhorar seus modos?

24 horas passageiras

05h05. Em frente ao Maksoud Plaza. No Hotel informam que o próximo ônibus para o Aeroporto passa em 15 minutos. Sabia que o brinde da última coletiva no Banco do Brasil, um dia ia servir. Primeira folha do bloquinho! Essa despedida antecipada não estava nos planos. A noite passada foi estranha! Tudo tão confuso que é melhor não processar agora. 05h10. Difícil conseguir pensar. Só com café. Expresso, de preferênicia. A essa hora da manhã consigo um pretinho forte, amigo?
05h07. O moço parou uns segundos para entender a frase. Até que o olhar perdido desapareceu quando enxergou meus dois dedinhos naquele gesto clássico que a propaganda de alguma marca de café ajudou a eternizar.
05h10. Chic não? Pensar que meus pais se hospedaram aqui e eu já era nascida. Contaram com riqueza de detalhes: entre os hóspedes o humorista Juca Chaves em seus chinelos e camisão branco. A atriz Sônia Braga. "Pequeninha ela. E na tela a gente sempre via aquele mulherão", comentário da minha mãe. Foi café com croissant. Podia ser a despedida. Dali ia fazer mais o quê? Aquela dificuldade de raciocinar direito de novo. Nada. Pago logo a conta.
05h20. Preciso correr. Como assim? Embarco no ônibus (posso dizer isso?). Ninguém ajuda com os pacotes. Eu poste. Vou desequilibrar e cair. Preciso insistir com o bilheteiro: "Uma mão?". "Não, obrigado. Não sou parte interessada...Tudo bem, tudo bem! Seguro para você essa caixinha de presente". Ele está certo. Três sacolas numa mão, uma mala enorme na outra. Quem mandou ser consumista? Preciso voltar pro Recife. Como se a frase pudesse apressar o relógio..
05h25. Paulista é pontual. Isso eu aprendi. E rápido. O mínimo dizer que a expressão "vamos em boa hora", que a gente transformou em "vamos embora", eles minimalisticamente tornaram "vamu!". E eu fui. Pro Aeroporto numa distância de apenas mais algumas paradas. Até ali, em dez dias, não tinha aberto os livros que levei. Foram exposições, lojas de design, passeio na Praça Benedito Calixto. Uma loucura a FNAC! A Rua 25 de Março, o Ibirapuera. As fotos!? Tudo aqui.
05h30. Abro o primeiro deles. "O Processo", de Kafka. Aquele começo... Com todo o existencialismo Sartreano e a ajuda das frases de Beauvoir, minha querida Simone, antes parecia confuso. Agora não.
Vou devorando cada página e me envolvendo na trama e no drama de K. Difícil é começar, mas depois que as linhas se cruzam e vão engendrando você a angústia é maior, o ceticismo também. E os sustos simplismente desaparecem. Nada sobressalta mais. Atravessei aquela porta.
06h20. "Chegou moça! Não vai descer". O motorista do ônibus já gritando. Quase em transe, numa espécie de andar mais alto, despenquei caindo na real e descendo os degraus em tropeço. Agora que notei como essa mala pesa.
06h40. Meu Deus é caótico. Não era. Sempre acreditei na sorte. No Divino Espírito Santo. E agora, com esse materialismo todo que me é jogado na cara, onde vou encontrar algum perdão? Continuo. Não consigo mesmo parar. Deve ter um lugar para guardar essa mala. Basta o tanto que minha cabeça já pesa.
06h49. Que bebê bonito! A família passa por mim com dois carrinhos. Na volta só vejo o bebê nos braços. Livraram-se das malas? Quem? Como? Quando? Onde? Volto pelo caminho de onde veio aquela família. Que bom que inventaram o "malex".
06h50. "Sim senhorita. Temos um guarda volumes no primeiro andar. A taxa é R$7,00". O cidadão do serviço de informações é bem mais gentil. Embora as últimas palavras soaram mais duras: "A senhorita só tem que perguntar lá por quantas horas". Pensei que fosse pelo dia todo. Imagina quanto não cobram de pernoite no estacionamento! Conhecer uma cidade grande tem seu preço. Agora não é só a cabeça. A idéia de sair do apartamento daquela ex-amiga pesa também no bolso. Lá vai de novo o cartão de crédito na maquininha...
07h00. Uma da tarde preciso voltar aqui. Vou ter descansado as costas. Tirado um cochilo e aí carrego a mala comigo. Um cyber, lógico. Com jeitão bem paulista. Todo moderno. Básico. O último cenário colorido foi na Benedito Calixto. Deu pra checar caixa de e-mail do yahoo e arrumar tudo em pastinhas. E não sai muito em conta a distração. Melhor voltar pro livro. Daqui a pouco vou sentir outra fome.
08h00. Voltam todos os conflitos de K. Cada detalhe do seu cenário. Do quarto de onde foi detido. A sala dos jurados. O clima denso e frio do livro. Engraçado... A frase pareceu grudar no entorno. Foi como se tivesse sido feita para aquele local onde todos estavam de passagem, exceto eu, o cara da limpeza, do balcão de informações, a moça do banheiro feminino. E todos aqueles garçons e garçonetes das lanchonetes com feições tão tristes. Ao menos não arriscavam palpites sobre de onde eu vim pela completa ausência em mim de algum sotaque. Sei que ainda posso morrer afogada por isso como adverte aquela piada das antigas.
09h00. Eu pedindo desculpas por nada. Morre-se assim a cada dia. Sinto-me a pior das criaturas. Ainda dizem que sou uma "privilegiada".
09h40. Descobri que cheking só se faz horas antes do vôo. Agora somos poucos por aqui. Vou ter que dormir com um olho aberto?
10h00. Preciso ir ao banheiro e isso é para hoje! Cometo o pecado de entrar no que é reservado para pessoas com necessidades especiais. Eu não sou assim. Nunca desrespeito uma regra, mas era o único que dava pra entrar com a mala e as sacolas e tudo. Que alívio...
10h20. Alguém com tantos pacotes quanto eu. Confortavelmente sentado. Deve ser rei. Ou deputado. Consegue até ler esse "gênio"! Tá pesado. K. do meu lado. Confiro as malas e pacotes. Firmes no carrinho. O mais próximo possível. Abro livro de uma das sacolas. Fecho a bolsa prefiro para não olhar para a cadeira. Sinto náusea.
10h39. Descubro um jeito de trocar de roupa. Visto uma blusa cor de prata. Na boca, caneta de alumínio.
11h00 - O fluxo de pessoas é menor. Grupos de negros americanos. Mãe irlandesa com filhinho de uns 3 anos. Homens com a mão no bolso, pensando. Começa uma missa. Será que o pároco se incomoda que eu entre? "Não é lugar pra malas". Nunca imaginei que o reencontro com o divino seria num aeroporto. E interrompido pelo excesso de malas.
12h00. Por que essa voz no alto falante não para? Volto a ler "O Processo". Náusea de novo. É cedo e tudo vai ficando escuro. Deve ser (blackout). Fome. Lembrei que não comi.
13h00. Cumprimento um outro casal "países nórdicos" com um bebezinho. Outra família... As malas!
14h08. Portal aberto. Caixa eletrônico. Nada!. Nient! Nothing! Fora do ar. Não tem remédio que dê jeito numa dor de cabeça dessas. É duro. É Kafka.
15h18. Como o mundo é cheiro de gente. Quantos circulam por aqui? "222 milhões 300 mil pessoas
embarcaram e desembarcaram pelos terminais".
16h33. Um casal comprando souvenir. Se leva um pedaço de algum lugar?
17h45. Fome começando a apertar. Dá-lhe pão a metro.
18h59. No final do corredor tem um restaurante para abastardos. Melhor nem olhar muito.
19h00. Vamos conhecer as instalações...
21h30. Duas revistas devoradas. Para tirar da cabeça as imagens tristes de Kafka. Virei figurinha conhecida. Alguns já acenam.
22h00. Na sala vizinha ao restaurante dá para dormir. Um cachorro entra na igreja. Porque a porta estava aberta.
23h01. Aquela risadinha foi comigo...
22h16. Seria muito pedir para fazerem silêncio.
23h56. Meu Deus, K. foi embora. Pode voltar para embalar meu sono. Só quero conseguir dormir.
00h00 - Tem gente na rede. Que bom inventaram Internet!!!
01h30. Pausa para um café. Se o sistema eletrônico permitir.
02h44. No ar!!! Não inventaram cheiro tão bom. Café, café, café!!! Toledo: tirei lição dessa marca.
03h00 - Pena que os paulistas não conhecem tapioca. Tudo bem, pão de queijo e croissant. Nunca mais pão a metro.
04h55. Tem um garoto que também durmiu nessa salinha.
05h10. Fiz meu primeiro amigo na viagem. Paulista sabe ser correto. E simples. Não sei por que, mas gosto muito disso. Em Brasília, os dois taxistas perguntaram pra mim: A senhora é Paulista? Não mais "moça", não mais "senhorita". Senhora vendo no espelho alguma elegância paulista.
06h06. Faltam treze minutos. Contagem regressiva para o avião.
06h36 Atravessei!?

 (24 horas no Aeroporto Internacional de São Paulo, Cumbica)

Thursday, August 12, 2010

Doce Retorno


No cantinho ao lado do quarto encostei com vista para a janela meu sofá, que agora é branco. Branco como os outros móveis: da tevê, das roupas, do escritório, a palhinha das cadeiras (a mesa é de vidro)... e lá está em branco: a adega de vinhos. Brancos são o quadro de Rosinha, da série "as cidades" e daquela famosa fotografia de David Allen, uma homenagem às operárias queimadas. Chama-se Women on the Rise. Também a estante de livros, a torre de cds e as prateleiras, inclusive uma maior que ampara a outra janela onde estão porta retratos e o calendário, o de folhinhas prateadas...

Alguns detalhes são coloridos. Com uma rara predominância em celebração de azul. Uma ararinha de madeira, um oratório com Nossa Senhora da Conceição, minha Nossa Senhora azul, num chão de miçangas como o mar, azul! e a foto de uma grande diva... Em preto e branco são as xilografias que ganhei de Jota Borges, Antônio Filho e Dani Acioli.

Hoje falta um jardim, de inverno claro. Porque jardinzinho zen já faz tempo que eu tenho. Esse outro vai ter vasos branquinhos de cerâmica perfeita. E um aparador verde com jarrinhos verdes com salsa, coentro, cebolinha, hortelã, manjericão e outras folhinhas.

Mas voltando ao prateado, ele está na cozinha e deve ficar. Penso até em substituir o fogão por um top clean chef, porque cozinho pouco. Raramente ouso uma boa massa. É que depois da sanduicheira e forninho tudo ficou tão mais fácil!

A geladeira é uma relíquia: uma brastemp série prata, antiga como eu ... com um congelador enorme, ela toda tem quase dois metros de altura! E um pinguim lá no alto. Ah, ela é também uma espécie de vitrine para duas tops prateadas como os amuletos presente do Mestre Galdino.


Fácil compreendê-los. Muito mais que as manequins de meio corpo. (Escapou um sorriso), com toda graça são lembranças de um tempo de saraus com música e moda. Como a carranca e os quadros em preto, vermelho e amarelo. Lembram postais antigos. Na verdade são gravuras da Collezione Bellé Epóque, com senhorinhas num Caffé Espresso Servizio Istantaneo e una Distillerie Italiane Sezione Apparechi Milano Via Torino e Apparecchi a Gas D'Alcool, que avisa: Economia sul petrolio. É preciso dizer que chegando em casa numa quinta feira típica desta cidade que só sabe chover, ainda me chama a atenção a gravura com uma inesquecível bailarina. Garota propaganda mais antiga de uma cervejaria. Vez por outra vejo que ela dança sobre a torneira da pia de um fortíssimo jato d'água...

Sunday, August 08, 2010

Em nome do pai


Abraço e café, só forte! Seja de homem ou mulher. Desta ou das próximas e passadas gerações. Aos nossos guardados e aos nossos guardiões. Porque força, a gente cria, quando o olhar do outro copia. 


p.s: O post vai numa homenagem a Pesqueira, ao poeta Dinaldo, alguém que vez por outra pousa os olhos para essa janela. Que tem agora, em nome do pai, proteção divina. De certa forma, faço por ele a homenagem ao meu também distante.

Saturday, August 07, 2010

Espaço Real

Pausa. Chovia pequenos riscos lá fora. Pode olhar pela janela enquanto investigava o mundo e suas redes. Suas simulações. Pausa. Pensou uma segunda vez. Seus colegas que criavam frases e cenas num discorrer franco do pensamento deles. Pausa. Criou aquela pequena coragem de levantar-se da cadeira, perturbando toda imobilidade, para esticar o corpo lá fora.

- Vou dizer olá à chuva!

Não esbolçaram reação. Nem riram, como esperava... Apenas olharam em silêncio. Arranhando rodinhas no chão liso afastando as cadeiras, abrindo espaço.

Desceu a escada, espaçosa, no ambiente de pé-direito alto, com posters originais de filmes incríveis, e atravessou a porta. Bastou-lhe o intervalo do pequeno toldo para espichar o corpo, equilibrar-se na ponta dos dedos e tocar a lona. Uma gotinha despretensiosa escorreu por sua mão alongada. Foi o gesto de ligar-se - mesmo que tão suavemente - à cobertura, que fez dela aquela gotinha, depois de percorrer distâncias, chegar até ali.

Logo essa tontura passa. Voltou aos amigos que criavam incansavelmente novos espaços. Voltou-se ao seu espaço real.

Thursday, August 05, 2010

Atire*




- Atire! Bem aqui. – E abriu o plexo, apontando para o peito.

O assaltante congelou. Por um segundo reviu todas as mortes de sua autoria... Todos os dias milhares morrem assim. Ela era só mais uma. A diferença é que essa aí, na sua frente, queria.

- Por favor, eu lhe peço, aperte logo o gatilho... Meta logo. Vamos com isso!

Um movimento de dedo apenas e ela cairia estendida. Não respondeu. Não quis dessa vez.

- Lapa de doida... Onde já se viu? Passava vinte reais. Dá vinte pedras, sabia? Disse o comparsa.

- Matar a pedido sai mais caro, dona. – E foi baixando o cano.

- E por que não mata? Vai ser menos um jornalista.

- Até matava de graça. Mas já que a senhora pediu, só pagando.

- Vamos embora daqui. – Olhou para ela como quem reconhecia – É aquela mulher da televisão... Deixa pra outro. Ela é cana certa.

- Covardes!

- E a senhora é lá corajosa...?

Ironia. Foram embora não sem olhar para ela nos olhos.

...

- Não levaram sequer os vinte reais?

- Era tudo o que tinha. Dinheiro, aliás, que acabamos de beber depois de mais essa cerveja...

Já estava na mesa do bar de sempre e repassava o episódio entre conhecidos. Sua ‘mesura’ não saia da cabeça. Onde foram parar as ligações que tinha. O amor que sentia pelos filhos adolescentes, ainda, e pais em idade avançada? Não sabia. Tudo que sabia é que não conseguia voltar para casa. O dinheiro era para o taxi. E não mais o tinha. Não teria também onde morar dali a dois meses. Morar na casa dos pais nessa idade? E todos os horários de colégio, atividade extraclasse, terapia...?

Estava n’outro beco sem saída muito pior que aquele de onde os assaltantes evadiram. Onde sua morte não se deu. E não virou notícia de pé de página de algum jornal da cidade. Ainda não compreendera o desprendimento, tamanho desapego e aquela ousadia... O certo é que funcionou errado. Diferente do que queria. Ia ter que enfrentar a mudança. As contas e o imposto de renda até o final do mês que nunca soube mesmo, no seu caso, para que servia.

Nenhum bem. O carro vendeu para pagar outras dívidas há uns de sete anos. Divorciada. Porque é mais chic que ser separada. Dois filhos e uma coleção de relações desastrosas. Findas em noites de discussões descabidas. Ainda tinha que terminar de empacotar os livros. Depois de dez caixas preenchidas, havia mais. Discos, um mesa, um computador. Uma tevê dos bons tempos. Um guarda-roupa novo, do ponto vermelho. Fogão e geladeira da época do casamento. E uma tuia de quadros, fotos, álbuns, recortes de jornal e coleções de revistas de moda e decoração. Fortuna nenhuma. Poupança nenhuma! Esperava pelo seguro desemprego e pela primeira vez estava há quatro meses sem nenhum ‘trampo’. Nenhum ‘freela’. Nada que pagasse a subsistência. E se pintasse algum talvez sobrasse para pôr comida na dispensa, pagasse a conta da luz e os cigarros que cada vez consumia mais e mais.

Em outras épocas, depois de uma situação daquelas, loucamente ligaria para os filhos. Diria: “Como estão meus amores, mainha pensa muito em vocês”. E com a voz disfarçando o medo, segurava o choro e o desespero porque no fundo queria mesmo estar viva para vê-los formados, trabalhando no que escolheram. Quem sabe até encontrando um amor de verdade. Vestiria azul nos quinze anos da filha. Ou calçaria havaianas na festa de enlace que fariam à beira mar em homenagem a Lorelai. Não pensou em nada disso.

- Vamos logo com isso. – Lembrou que insistiu.

- Ia precisar de algumas sessões de terapia para compreender seu impulso. Seu desapego chegara nesse nível? Por quê? Quais os motivos? Não deveria ser uma questão isolada. Se fosse, teria assumido essa dimensão na sua vida para querer dar fim a ela? Não justifica reagir a um assalto... Quanto mais pedir para ser morta. Ainda bem que estava sozinha. Não comprometera a vida de ninguém mais. Alguém que, certamente, nunca a perdoaria.

- O que torna tão difícil estar viva?

A terapeuta perguntava sem grandes entusiasmos pela aventura que a paciente acabara de contar.

- Ou ainda, do que você está querendo fugir?

- Não sei mais o que pode dignificar ou corresponder ao que já fui um dia.

- Não me diga que não tem mais nenhum sonho. Não preparou seu plano?

- Talvez não. Talvez seja um sonho de brasileiro mediano. Como esperar pelo carnaval e pintar o rosto. Talvez pintar a cara da morte na minha cara triste.

- Não me parece totalmente triste. Sua ousadia é destrutiva, um bocado, mas isso é porque acha que pode. É sua aposta. Muito alta, mas é uma aposta.

- Não foi por empáfia. Saiu como um bicho de dentro de mim. Um animal sem controle.

- Embora isso tenha lhe oferecido o controle da situação...

- Ainda não havia pensado por este lado. Daí dizerem que os humilhados serão exaltados. Ação e reação e direito de réplica, tréplica...

- A ofensa é movida pela descrença na reação do outro.

- Talvez esteja também ansiosa?

- Posso saber pelo quê? Se o desejo era a morte, o que estaria esperando?

...

Saudade do futuro? Desejo de reencontrar o passado. Perder a linha é como ser devorado por seu próprio Minotauro.

- Por que, às vezes, o que era estrada vira labirinto? Não minto que deixei para depois. E fui ficando sem o olhar que é meu mesmo. Adotei o do outro, que nem sempre compreende. Atire-se, deveria ter sido a frase. Ao invés disso...

- Atiro-me!



*texto que espero ver publicado no portal http://www.interpoetica.com/

Tuesday, August 03, 2010

Espelhos


Sempre me perguntam, quando sabem da minha afeição pelos escritos de Clarice, se li também Cecília. Sim, bem menos do que gostaria, é verdade, mas fiquei pálida e opaca muitas vezes diante de suas franquezas. É límpida, para dizer o mínimo. E inspira.

Gosto, em particular, da idéia de não se reconhecer diante do espelho e das crônicaas "Ilusões do Mundo":
Moça procura emprego em particular.

"A história (que) começa no sertão com um casamento de amor. O homem é um ingrato, na verdade, mas é a fina flor da elegância e da sedução jamais desabrochada léguas e léguas em redor... Dessa perfeição de homem lhe nascem muitos filhos, dos quais sobram apenas uns dois ou três barrigudinhos, que ela não pode alimentar nem vestir, porque o pai não se considera responsável pelas despesas da casa. O que ganha gasta consigo, pois é pessoa muito exigente: só anda de terno branco, muito bem engomado, chapéu Panamá, sapatos de camurça e óculos ray-ban..."

E continua:

"Um tipo irresistível. As mocinhas correm atrás dele, desfolham-se aos seus pés. Ninguém acredita que não seja rapaz solteiro".

Vamos com essa franqueza até na conclusão do perfil da personagem em questão.

"Mas esse homem fabuloso, que até parece um artista de cinema, é injusto e desigual: fora de casa, todo açúcar, fala tão bonito que parece um doutor. Dentro de casa, espanca a mulher e os filhos que, afinal, apavorados, mal o vêem assomar ao longe, pulam a janela para se esconderem no mato".

E vaí por aí, nessa simplicidade, o enredo da tal moça que cansa dos saltos, entrega as crianças a avó e passagem num caminham. Acaba indo pro Rio, onde consta há empregos para todo mundo e arranha-céus de graça para os pobres. Que ela não encontra para si, mas lugar um moço da sua terra, muito bonzinho e não tão elegante, mas que trabalha de dia num bar e estuda numa escola noturna. Casa à moda dos pobres, sem papéis ou cerimônia. Por derradeiro tem como qualidade aceitar os filhos do outro.

Mais que motivo para ela botar dinheiro em casa. Consegue contando sua história a ajuda de uma dona que aposta na sua sinceridade e devoção aos barrigudinhos e de quem não quer abusar da bondade do marido. Logo descobre que tudo naquela terra difere do seu sertão de onde adquiriu o costume de ir "munida de um embrulhinho amarrotado, com a sua farrinha-d'água: como se fosse para uma expedição. Só não traz a carne de cabrito 'ainda pulante' porque não é coisa que se encontre por aqui". Enquanto trabalha comendo sua "bendita farinha" dá-se a quebrar bicos de bules e asas de xícaras, beiras de copos epratos...". Ainda tem por defeito, no auge do entusiasmo, assoviar... Resultado:

No fim do mês já penas em pedir férias pois está morta de saudade. Passaram-se somente duas semanas e tudo está mudado... "A carne de cabrito já não era pulante; o café sabia a ferrugem; a farinha

"Só as crianças continuavam amarelas e barrigudinhas. A velhota muito cansada. E o marido, a viajar pelos sertões, namorando sempre, à sombra do chapéu e dos seus óculos..."

Ao final, Cecília, nessa simplicidade e franqueza conclui descrevendo que segue a vida voltando ao serviço pensando em ir para a escola noturna aprender a ler melhor, e arranjar um emprego público. Todos lhe dizem que é o emprego melhor e mais fácil do Brasil!

Esta é a doce e terna professora Cecília.

Monday, August 02, 2010

Republicando. Dessa vez sem a foto de Henri Cartier Bresson...

O indizível

Reflexo na água da chuva. Do outro lado da rua, dois homens carregando o espelho onde reflito minha sombra. São sobras de mim. "Do meu túmulo, falo". Não sei mais sentir. Não é apenas o medo. Habituei à dor.

Quer que eu reflita: E se eu desaparecesse? Se a água da chuva derretesse minhas moléculas frágeis de açúcar. Piada! São sempre duas moléculas de Hidrogênio para uma de oxigênio. Conheço essas pausas... Já fui dada a passes de mágica. Ia compreender. E se era uma armadilha para tentar me entender, complicou ainda mais.

Não quer dizer que não queira chegar a algum lugar. Ou a lugar nenhum... Como na canção dos Beatles. Significa apenas que entendo de passes de mágica e de mais a mais, é comigo que sei conviver. Com você descobriria - usei um passado sem querer - o que é difícil, porque requer aprender. Deve ser porque meu sol está na 12a casa que permite o Aprendizado... Tão terna C.L. que brota da liberdade em experimentar os fenômenos da Natureza.

E as duas feras estão duelando agora em mim. Diferente do sonho de Sabino, as minhas têm nome: solidão e liberdade. Essa coragem louca de continuar olhando para frente. Sempre. Isso que também pode ser chamado de força e de "uma alegria difícil, mas que chama - se Alegria", querida Clarice. Força que José Castello acredita estar no sol desse cantinho mais ao Nordeste do país. Ah... O sol.

Não preciso entender de nuances da dor. Conheço-a em toda sua ausência de cor e estorvo é pior que duelo de titãs. Acredito tanto no direito que tenho de ser feliz que não duvido de mim. Nem me peça qualquer coisa que esteja relacionada a sentimento de culpa. Essa palavra horrível que aboli aos 30 e nem consigo repetir.

Era isso que você esperava? Que eu bradasse, esperneasse, xingasse até tirar um fio de cabelo meu do lugar pelo seu sentimento. Isso eu não sei fazer. Empenho um esforço danado em ser responsável e isso já é muito. Pelo menos é real. Tem palavra que não digo porque só faz esvaziar a verdade do sentimento. O que se sente é o que é. Pronto e ponto. Parágrafo....

...Na outra linha. No outro lado da rua enxergo meu refúgio. Meu canto. Eu canto sabia. Toda vez que sinto o vento soprando notícia eu canto. E danço entre as paredes do meu quarto. Minha música é suave e repousa meus ouvidos cansados de discursos antigos.

Nada é novo debaixo do sol desse país tão tropical onde chove. E se na música dos Beatles você e eu usamos capas de chuva e deitamos sozinhos ao sol, num solo triste, à noite, o guarda - chuva curioso e transparente se torna abrigo para a dúvida e a certeza de quem jogou. Jogou mal. É difícil suportar uma verdade. Mas impossível mesmo é construir algum sentimento que seja plantando palavra que não arrisco escrever...