Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Friday, August 31, 2007

Carinho da brisa

Estou aqui, ensandecida (de areia?), faz algum tempo. Vem me ocorrendo em sonho, vez por outra, fazer a viagem de bonde que Clarice e família faziam até o mar de Olinda. Sonho que é meu o cabelo fino grudando um no outro por causa do sal. Sinto até os primeiros raios de sol da manhã batendo em meu rosto, que parece bem mais jovem que este que me restou, neste início de novo milênio. Aliás, é para mim um orgulho, mesmo tão feminina, ter nascido no século vinte e no segundo milênio (pós-cristão) da raça humana.
E de fato, venho sonhando assim e sendo interrompida por minha própria incredulidade. Acho, mesmo dormindo, tão surreal tal passeio, que acordo em susto de sentimento da realidade.

Pois agora, será dito: eu desejo, da próxima vez, que o tal sonho me ocorrer, que eu me permita sentir a brisa e os raios de sol tocando no rosto. Velho ou novo, pálido ou rubro, tolo ou firme. Vou apenas me deixar levar pelo sonho...

Permitir-me sentir o carinho da brisa na pele salgada por uma eternidade! E mais, sentir todo prazer em perceber saracotearem, por causa do vento, os meus cabelos cortados. Num buliço de dança. Um meneio que nem a mim cansa! O bonde, o tempo, meu rosto, o desenho, no sol à luz da história. Com uma brisa "lambendo", meus olhos cheios de pestanas, tão sedendos.

Thursday, August 30, 2007

E para não falar somente de mim, ou imprimir aqui a minha escrita, ainda pouco expressiva, tão apenas, vou transportar do livro Aprendendo a Viver, a versão inspiradora de Clarice.

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve o grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede bem em cima de sua cadeira! - Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.
- Ela quase não tem corpo - queixei-me.
- Ela só tem alma - explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre o fiapo das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha - comentou o menino.
- Sei disso - respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando um outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei - continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma 0 começo do fogo do lar para que não apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu detrás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia a aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! - respondeu o menino com ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo um certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faça o favor de facilitar o caminho da esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mas pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "E essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. É, acho que não aconteceu nada.
Pois eu encontrei uma esperança maior. Grande, uma espécime que atingiu o tamanho máximo de sua raça. Uma esperança "gigantesca" e bem instalada, de um jeito que se sentiu à vontade de deixar ali "restos", aquilo que não lhe cabia mais...

Uma Esperança com É. Assim, maiúsculo e acento nordestino. Uma Esperança amiga que me fez sair de onde eu estava para sentar ao lado dela, durante a viagem. Viagem em coletivo, que me permitiu aumentar o orgulho de levantar e colocar-me ao lado dela, em acento vazio que ninguém no rodante em movimento se atrevia a conviver ou se aproximar. Correr o risco? Pra quê? Se pergutavam essas pessoas, a quem eu respeito ao ponto de comover e lamentar por elas...

Mas seguimos, então, viagem juntas. Eu e a Esperança. Uma ao lado da outra, se entreolhando vez por vez, em curiosidade mútua. Ela se ajeitando de lá, eu ajeitada de cá. Mas ambas, bem instaladas em seus devidos lugares. E essa enorme ESPERANÇA - que já quero chamar em grito de grifo - fez exemplo de condição de inseto capaz de escalar aos poucos em suas perninhas de graveto verdes, bem devagarinho e persistente, as paredes do transporte coletivo. Até chegar no topo. No alto do portal de passagem para o lugar novo, o lugar de chegada. Para onde eu agora me guio nessa força da condição de humano, frágil e resistente a desertos e tempestades. Alegrias e tristezas, aventuras e desventuras - no meu caso já em série - mas um humano que se mantém vivo! E de olhos abertos...

Tuesday, August 28, 2007

É lindo, comovente, fascinante, perdoem, o "modo" como Clarice cita o Recife com enorme carinho, nos seus escritos. Eu, de minha parte, estou cada vez mais encantada com a seleção de "coisas soltas nas gavetas", ajuntadas no livro Aprendendo a Viver (Rocco,2004).
E, digo logo, 2004 foi o ano em que insisti com a professora Zuleide Duarte, na sala de aula e na monografia, sobre A Felicidade em Clarice Lispector. (Eu e minhas teimosias...).
A querida e muito paciente, professora que tornou-se minha orientadora e generosa ofereceu uma homenagem à Clarice na nossa turma. Zuleide, não posso deixar de dizer - é doutora em Literatura, especialista na obra de Florbela Espanca, merecedora de inesquecível convite do Governo de Portugual para a marcar o centenário da intensa e "tinta" - como maravilhoso vinho raro - de Florbela.

Veja e diga por você, por aí:

VIAGEM DE TREM

Devo ter viajado de trem da Ucrânia para a Romênia e desta para Hamburgo. Nada sei, recém-nascida que eu era.

Mas me lembro de uma memorável viagem de trem, com 11 anos de idade, de Recife a Maceió, com meu pai. Eu já era altinha, e pelo que se revelou, já meio mocinha. Na viagem de ida - quase um dia inteiro - um rapaz de seus 18 anos, lindo de morrer e que comeu no mínimo uma dúzia de laranjas, e que tinha olhos verdes pestanudos de preto, simplesmente veio pedir licença a meu pai para ficar conversando comigo. Meu pai disse que sim. Eu não cabia em mim de emoção: namorarmos o tempo todo sob o olhar aparentemente distraído de meu pai.
Em Maceió, onde íamos ficar um dia apenas, aconteceu outro milagre. Houve uma festa dada para meu pai. E havia lá um menino de 13 anos, considerado marginal. Contava-se que, uma vez, à saída de uma festa, acompanhando uma senhora de noite para casa, beliscara-lhe o braço. Pois esse menino me quis. E me pediu para passeas com ele. Eu era completamente inocente, mas instintivamente compreendi alguma coisa e disse que não. Tomou meu endereço em Recife e recebi dele um cartão-postal todo florido, com palavras de amor. Perdi o cartão, perdi o amor. Ficou-me a lembrança. A volta foi no dia seguinte à festa - todos na estação, inclusive o menino marginal - e sei que alguma coisa aconteceu também bouleversante mas não me lembro o quê.

São memórias, precisas. E segredo, mantido, do "modo" Clarice. O não dito, de tanto valor. Inclusive com o Recife. Reparem, começa a falar pela viagem de trem em recém-nascida. Da qual não lembra, pela condição do recém-nascimento...




Aprendendo a viver (Rocco, 2004, pág.120)

Monday, August 27, 2007



SUPONDO O ERRADO

Suponhamos que eu seja uma criatura forte, o que não é verdade. Suponhamos que ao tomar uma resolução eu a mantenha, o que não é verdade. Suponhamos que eu escreva um dia alguma coisa que desnude um pouco a alma humana, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha sempre o rosto sério que vislumbro de repente no espelho ao lavar as mãos, o que não é verdade. Suponhamos que as pessoas que eu amo sejam felizes, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha menos defeitos graves do que tenho, o que não é verdade. Suponhamos que baste uma flor bonita para me deixar iluminada, o que não é verdade. Suponhamos que eu finalmente esteja sorrindo logo hoje que não é dia de eu sorrir, o que não é verdade. Suponhamos que entre meus defeitos haja muitas qualidades, o que não é verdade. Suponhamos que eu nunca minta, o que não é verdade. Suponhamos que um dia eu possa ser outra pessoa e mude de modo de ser, o que não é verdade.

(Aprendendo a Viver, CLARICE LISPECTOR, pag.42)


Tuesday, August 21, 2007

Talvez compreendam, agora, com o que fica dito, a felicidade em ser e ter sido, todo dia, Clarice Lispector. Acabam de atribui-la mais uma data de nascimento. Por certidões já existiam mais de uma: 10 de Dezembro de 1920, da primeira tradução do documento russo para o português, e 10 de Outubro de 1920, com assinatura do juramentado "Tradutor Público e Interprete comercial da Praça do Recife, Arthur Gonçalves Filho".

Nádia Battella Gotlib, que assina a mais completa biografia da autora (Clarice: uma vida que se conta), explica e pergunta: "A primeira versão - do documento - traz o lugar de seu nascimento: Chechelinick, distrito de Olopolko, na Ucrânia; contém a data de nascimento de Clarice: 10 de dezembro de 1920. Mas declara como data da certidão original a de 14 de novembro de 1920. Como registraram a criança em novembro se ela só nasceu em dezembro?". A própria biógrafa faz questão de dizer que, ao longo da vida, Clarice "adota diferentes datas (...) embora a crítica adote, durante longo tempo, o de 1925, Clarice registra as de 1921, 1926, 1927..."

E ainda. Há um vídeo na web, com efeitos especiais e tudo! em que, a hoje-posteridade (me permitam!), oferece a Clarice uma nova data: 10 de Novembro. Um mistura do primeiro e do segundo "presentes".

É.

Monday, August 20, 2007




A Felicidade em



Por Geórgia Alves*


Com uma única palavra - "CLARICIDADE" - à francesa, Hèléne Cixous traduz o poder conquistado pela autora e através dela para diferentes "modos" de felicidade. Com idéias claras. Ou ainda, e também, se preferir: a clarividência nascida por dentro, ensinada por Clarice. Poucos colheram do "modo" de Clarice em semear o "direito à diferentes felicidades". Muito embora quase tod@s já saibam que o livro "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, conta a história de uma mulher que se chamava apenas pelas iniciais na valise de viagem e que um dia se depara com uma ordem diferente da dela. Perfeita, mas em tudo desigual da sua "casa de revista".

Dia em que vai ao quarto da empregada e se depara com uma barata. Ser pré - histórico com condição que antecede a condição humana. G.H. descobre aos poucos que vai impelindo - a ao encontro do que existe dentro da "coisa" que descobriu: "Ontem, no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia (grifo meu) de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? (quase ouço com sotaque espanhol...) e no entanto não há outro caminho."
É assim, sem qualquer pausa, em um único fôlego, que vai indo:"Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização. E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se , sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema."E arremata, abrindo o leque para o "ser feliz", criando caminhos: "No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido". (A Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector, Ed. Rocco, 1998) De pessoa "difícil" a escritora hermética, Clarice foi vista de diferentes ângulos: obtusos, retos, "escuros". Alguns mais amplos. Hoje, trinta anos após sua morte, pode se afirmar, o que tornou – se o hoje. A vontade de decifrar enxergar Clarice e seus passos em Aprendendo a Viver é um sinal "paginável" desse novo tempo. Passos para a clara evidência da autora, sinônimo de uma literatura densa e intelectualidade extrema.
Clarice jamais abandonou a busca para compreender a condição, como explicou a professora – com o tema pesquisado em Doutorado – Fátima Costa, e estabelecer a partir da solidão o universo próprio a ser inserido no contato com o outro e o mundo. São pistas dessa descoberta, em fio de novelo, possíveis de identificar.
No livro Felicidade Clandestina, o encontro com o "bem supremo", personificado na imagem do livro como foi dito, é adiado com uma ida até a cozinha para se "comer pão com manteiga". Que de Felicidade adiada torna - se clandestina, que a autora assegura já pressentia que assim seria. Um tipo de Felicidade que ultrapassa o sentimento da menina Clarice com o exemplar grosso, "para se viver com ele", Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. E ainda, pelo "tempo que quisesse", como faz questão de dizer a mãe da menina que exercia sua crueldade sobre Clarice por ser filha de dono de livraria. Não há mais como negar - ou espaço para o desenho de qualquer expressão de espanto, srs e sras da Academia -, a existência de "modos" felizes escolhidos por Clarice.
Alegre ainda que por uma "fatalidade", como traduz no conto Águas do Mundo. "Ou que é abolida por uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria", nas palavras da autora no conto Amor. Contudo existente, se motivação para um deixar de existir. Porque a autora e seu amor que a permitiu escrever e salvar sua existência. E de muitos outr@s. Uma alegria contente. De contentamento mesmo. Mesmo no famigerado universo de Macabéa, identificar essa alegria, além de prazerosa tarefa pela sua desafiante escrita, tornou - se ainda tranqüila, depois de codificada a maneira holográfica do riso doído de Clarice. Um ser humano fosforescente (para Heitor Cony, um "peixe fosforescente") "e uma luminescente" (numa palavra da própria Clarice) "autora da Literatura Brasileira. Além de brilhante e às vezes indecifrável". Clarice era também maternal e, em muitos momentos, feliz. Além da vasta e respeitada obra, deixou cinco livros infantis, das vinte e três publicações (Ed. Rocco).
Com a publicação do seu primeiro romance Perto do coração selvagem, em 1944. Quando Clarice tinha apenas 19 anos. Não dá para calcular o tamanho do débito de uma sociedade adoecida na vida daquela jovem escritora. Nascida na Ucrânia, em 1925, e trazida para o Recife com meses de idade, teve problemas com sua nacionalidade, até a idade adulta. Foram necessários vários e insistentes pedidos ao Presidente Getúlio Vargas e ao Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura para regularizar sua situação de "não naturalizada" no Brasil. "Que se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças."
A primeira tentativa de resolução foi através de carta datada de três de junho de 1942, na qual Clarice descreve sua condição de "jornalista, ex - redatora da Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n’A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também. Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo". Ficou no Brasil, casou, teve filhos. Teve amigos, foi morar fora, continuou a escrever em português e foi muito querida, além de respeitada intelectual e pensadora do seu tempo. Versada depois da morte em várias línguas. Uma mulher amorosa que guardava muito desse afeto.
Foi não se dizendo que ela foi. Como deixou gravado na última e única entrevista para televisão (TV Cultura): " Eu não tenho esperança que o que eu escrevo altere alguma coisa. Não altera em nada". Clarice foi se "reservando" aos filhos e livros, ambos nasceram e cresceram em seu colo. Há muitas outras perguntas e análises que ficaram para o futuro. Feliz que próximo. A idéia é satisfazer, mesmo que em pequeníssima proporção, um dos pedidos feitos por Clarice em sua última entrevista. Questionada quem era Clarice Lispector, ela respondeu: Eu sou um ser humano. "O que eu escrevo é muito simples". É inspirado por esse desejo simples que é peciso enxergar Clarice através destes outros ângulos. Mas ainda não é o bastante. Diriam que decifrar essa felicidade clandestina não é tarefa fácil. E não é este o "letmotiv". O importe é saber: há, sempre houve, havia ali. Haverá para sempre.
Já não seria se Clarice fosse um ser humano raso, de obra simples, que dirá com tal grau de complexidade. É claro que é possível de imediato identificar a presença dessa busca em sua obra. A proposta é fazer depois de identificados os conceitos de felicidade. E não encerramos em apenas um. A compreensão é de que há vários deles que se aplicam na obra da autora. É tão somente um olhar sob esse ponto de vista. Com a licença autoral, que plagia Clarice, em sua "alegria livre" - que acaba de ser inventada como o era a verdade da autora - das três epígrafes a seguir. Numa ilustração da proposta do estudo de demonstrar a convivência das diferentes versões do ser feliz num mesmo e único ser humano.
Os caminhos são os da filosofia na identificação e clarividência dos mais variados conceitos de Felicidade na obra de Clarice Lispector. Na construção foram tomadas como "roteiro" quase todas as obras da autora, excetuando - se os livros infantis, por se entender como desafio menor encontrar essa felicidade nesses. Onde Clarice era um pouco mais "fácil" consigo mesma com um "e pronto". A autora publicou cinco deles (Editora Rocco).
A trajetória tem início no último livro da autora (a novela A Hora da Estrela), publicado no ano em que Clarice morreu (1977). Um relato, "cru", e aparentemente, distantes, do sentimento habitual de Felicidade. Principalmente pelo forte caráter de autobiográfico na obra de Clarice, toda marcada pelo traço autoral, onde escritor e obra se confundem em vários instantes. Nas palavras de Benedito Nunes, grande crítico da obra da autora "o narrador de A hora da estrela é Clarice Lispector, e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flaubert foi Madame Bovary".

O aspecto observado na obra é o do riso ou dos instantes em que a autora presenteia o leitor com a mais refinada forma do aspecto dentro do conceito, traduzido ainda em 1900, por Henri Bergson, do mecânico do corpo endurecido ao se confrontar com a fluidez da alma. Ou ainda da alegria que trazia o progresso como previu Condercet oferecendo a todos um novo padrão de conforto e felicidade à massa da humanidade.
Na obra de Clarice há o conto Felicidade Clandestina. Deste o nome a busca pelo "bem supremo" e a felicidade se configuram na relação com a leitura ou na própria imagem do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que Clarice carrega nos braços contra o peito ao atravessar as ruas e pontes do Recife onde viveu quando menina e ao se confrontar com esta alegria adia o encontro tornando a felicidade clandestina e transformando a menina deitada na rede com seu livro no colo, numa mulher com seu amante.
Há como na alegria de escrever, já destacada pelo autor Benedito Nunes em análise do romance Legião Estrangeira e que avaliamos também através das Correspondências de Clarice e "crônicas" publicadas no Jornal do Brasil e outros depoimentos dessa ventura na vida da autora. Além do busca da perfeição, personificada pela personagem de Laços de Família também é incorporado à análise, em momento posterior, pela descrição do cotidiano de Catarina que revela nas palavras da autora um "riso doído que saía pelos olhos". Uma prova da existência de uma felicidade oculta, enviesada. Clarice Lispector sabia que a escolha de sua obra não era psicológica:
"Além do mais a ‘psicologia’ nunca me interessou. O olhar psicológico me impacientava e me impacienta, é um instrumento que só trespassa. Acho que desde a adolescência eu havia saído do estágio do psicológico".
A afirmação é feita pela personagem G.H. em A paixão segundo G.H., (pág.18, Paris/Brasília, Coleção Arquivos, v.13.). E esta afirmação - facilmente encontrada na internet nas referências selecionadas e associadas ao nome de Clarice - é um dos motivos para a escolha do entendimento através da Filosofia deste estudo. Através destes elementos é possível encontrar os instantes da obra da autora onde a felicidade e a busca existe. Como na Ventura ou Aventura do Amor, sentimento necessário à conquista da felicidade. Porque está ligado ao desejo concretizado. A satisfação de um anseio.
Por isso em letras altas e com grifo: HÁ FELICIDADE EM CLARICE LISPECTOR. Assim como cantou Caetano. Há mistérios em Clarice e quais são? Quais são os "modos" de busca que explicou tecendo e destecendo a autora. Como as atenienses de Chico? Não. Como Clarice no sofá, com a máquina de escrever no colo, ao invés - e reveses - das linhas e agulhas.
Se Clarice é uma pergunta, aprendemos. É onde tudo começa. Afinal: O QUE É FELICIDADE?
Não é difícil deparar – se com diferentes definições da Felicidade. E diferentes caminhos para estudar o tema. Aqui, a escolha é compreender a felicidade sob as luzes da Filosofia. O empreendimento mais ousado do pensamento humano, que pretende explicar o mundo e o homem como um todo (Platão). Para isso, serão instrumentos de orientação nessa travessia os livros O Riso e o risível, de Alberti Verena, e Felicidade de Eduardo Giannetti, além A Felicidade - Ensaio sobre a Alegria, de Robert Misrahi. Também conceitos propagados desde o princípio dos tempos por Aristóteles, Platão, Kant, Russel e tantos outros.
Uma reflexão que mistura a visão do início e da atualidade. O entendimento é o mesmo de Henri Gouhier, em Siutación Contemporanea del Mar: "se existe uma filosofia eterna, philosophia perenis, ela não existe historicamente senão através de filosofias atuais; e isto porque as exigências permanentes do pensamento, se manifestam no interior de situações concretas que favorecem, mais ou menos, seu desenvolvimento". O conceito de Felicidade vem sendo estudado pela Filosofia desde sempre (!), da Antiguidade.
Quase não houve (se é que houve) quem não se encarregasse dela. A lista é de um sem fim. Além dos que foram citados: Epicuro, Platão, Tucídedes, Spinoza, Heidegger, Nietzsche, Schopenhauer, Sartre (mesmo que pelo avesso), Ernst Bloch, Pascal, Göethe, a lista é de um sem fim. Robert Misrahi, no livro A Felicidade, explica a existência de duas correntes nos estudos filosóficos para conceitualizá - la.
Uma primeira, que ele critica, que se deteve mais à angústias, trilhada por Heidegger, passando por Sartre, numa teorização do "ser - para - a - morte". E uma outra linha, traçada por Nietzsche onde a "Plena Luz" ou "vida ascendente" estaria estreitamente ligada à dor e ao trágico. Ainda da felicidade adiada entendida por Platão, seguido por Kant, onde o desejável bem supremo só se alcança após a morte.
E a corrente que evidencia como a ser seguida, que começa em Aristóteles, passa por Spinoza e é difundida por Ernst Bloch, da felicidade que deve se realizar neste mundo. Como completa Misrahi: "felicidade concreta pelos prazeres ponderados, espiritual pelo conhecimento e pela filosofia, ativa pela política. Sendo, portanto, a um só tempo, a possibilidade mais perfeita para o homem e sua maior virtude". Baruch Spinoza enfatiza a ligação dos conceitos de Felicidade e Liberdade, entendendo em Deus, a natureza infinita e criando a imagem do "homem livre".
Cartas e cartas para a Felicidade Epicuro, o grande pensador do tema, na sua Carta sobre a Felicidade (a Meneceu) insiste na idéia da felicidade como virtude e ligada aos sentimentos íntimos e atitudes com a definição que "o essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima; e desta somos nós os senhores". Ainda no século III a.C. entende que o objetivo da vida humana é obter a felicidade. E que o meio de alcançar a felicidade é o prazer nascido da satisfação dos desejos. Antes mesmo de qualquer necessidade urgente da criação de um bem sucedido movimento, Epicuro já permitia mulheres em sua escola filosófica, no século 341 a. C..
O iluminismo que trouxe a idéia de que a automatização faria dos humanos mais felizes porque tirariam pessoas de funções aprisionadoras. Idéias como a de Condorcet sobre como "o progresso das artes mecânicas trará um novo padrão de conforto e felicidade à massa da humanidade", que Clarice retrata na personagem Macabéa. Que de tão feliz não tem consciência de sê - lo como é preciso para John Stuart Mill ou mesmo Fernando Pessoa. Na importância destinada ao desejo e à satisfação ou não, dos mesmos, na história da humanidade.
Aspecto abordado por Philipe van den Bosh (A Filosofia e a Felicidade) sob o título de Elogio do desejo: (...) para ser feliz, há que ter desejos e, sobretudo ter o poder de saciá-los Com efeito, um desejo insaciado faz sofrer, ao passo que desejos realizados dão satisfações cujo acúmulo constitui a felicidade. Por conseguinte, o desejo é uma coisa boa: pois, quanto mais desejo tem, mais sou capaz de satisfazê-los, e mais feliz sou.
O mesmo autor lembra que esse elogio do desejo está amparado por algumas filosofias, entre as quais a que fora desenvolvido pelo pensador contemporâneo Gilles Deleuze, que em sua obra escrita junto com o psicanalista Félix Guattari, L’Anti-Edipe (Éditions de Minuit, 1972)... "O desejo é uma potência vital, um dinamismo criador, que nos proporciona alegria". No estudo há vários destes conceitos e aspectos. Na obra de Clarice é possível encontrar quase a todos. Alguns de maneira mais predominante pelo ser da autora, como em Epicuro. Outros por passagens do que está escrito e, em recorte, pode ser comparado ou associado.
Há muitos entendimentos para a Felicidade. Phillipe van den Bosh explica sobre as dificuldades de uma definição da felicidade: "Apresenta-se uma primeira objeção: todos nós sabemos o que é a felicidade, isso é obvio por isso uma definição é bem inútil! (...) uma segunda objeção: a felicidade é algo pessoal, cada qual tem sua felicidade própria, diferente daquela de outrem. Portanto, não se pode dar nenhuma definição universal da felicidade... Há várias maneiras de vir a interroga-se sobre a felicidade e todas elas são crises existenciais".
Oscar Wilde dizia basicamente que há duas tragédias na existência: não conseguir satisfazer todos os desejos e conseguir satisfazer todos os desejos". Segundo o autor para Wilde, a existência é sempre trágica. Para Clarice o desejo saciado não finda numa insatisfação posterior, mas na própria evolução do desejo. Como no exemplo da menina e seu livro. Há um desejo posterior: da mulher e seu amante numa rede. E nisso resume e encerra a felicidade. Com um ponto final. A mesma Clarice que foi capaz de começar um livro (Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres) com uma vírgula.
Encerra seu conto sobre a felicidade (por ela clandestina) com um ponto. Depois de um desejo que evoluiu da garota com seu livro (bem supremo - objeto de desejo) para uma mulher com seu amante. Embora, com unanimidade, se acredite que ser feliz requer a satisfação de todos os desejos. Para Kant, ao contrário de Schopenhauer ou Sartre ("O prazre é a morte e o fracasso do desejo"), a felicidade é "a totalidade das satisfações possíveis". Kant estava no caminho certo.
Como deixa claro André Comte Sponville os SenhoreSS confundiram felicidade com esperança.
Ser feliz significa também não ter nada mais diferente para desejar. Epicuro para concluir: "Com a felicidade temos tudo de que precisamos". Na crítica a Schopenhauer por Philippe van den Bosh "E não se realizamos todos os nossos desejos, depois de imersos uns tempos, na mais completa felicidade, se já não temos nenhum desejo, não corremos o risco de afundar-nos no tédio? Então já não seria a felicidade!" (A Filosofia e a Felicidade.São Paulo. 1998. pág.23).

No entanto, é preciso que a equação da conquista da felicidade se resolva mesmo na sua impossibilidade e contradição. Pois se quando o é, passa no momento seguinte a desfazer - se em tédio (ou a projetar - se em outro desejo). E, portanto, não sendo mais satisfeita. Conquistada. É dessa forma que Clarice soluciona a difícil condição do ser feliz tornando a felicidade clandestina.
Clarice, "como Deleuze, se opõe a toda uma tradição de pensamento moral e religioso, que condena o desejo e mesmo a uma tradição filosófica dominante que, de Platão a Freud, concebe o desejo de modo negativo e infeliz, como uma falta". Palavras de Philipe van den Bosh (pág.30) que bem se encaixa no comparativo do pensador contemporâneo, falecido em 1996, dezenove anos após a autora.
Bosh ainda afirma que Deleuze tenha invocado filósofos mais originais, e em geral julgados escantadosos em sua época, como Spinoza e Nietzsche. Também escolhas comparativas para análise da obra de Clarice Lispector desse estudo. Autora que no conto A Repartição dos Pães (Felicidade Clandestina) diz completamente desse desejo. O seu desejo. Melhor, o dela: "Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gasta - lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo".
Nietzsche que em seu estudo Will to power (§433, p.237, e § 437. p.241) analisa criticamente a fórmula proposta por Condorcet, em Sketch, p.201: Razão = virtude = felicidade. A seqüência constituiria um "elo indissolúvel", como lembra em notas de seu livro Felicidade, Eduardo Gianetti, o próprio faz a sua análise também crítica da associação Kantiana: "Razão = virtude = felicidade?
E se nem tudo o que é prima facie bom e valioso no mundo - o saber verdadeiro, a correção moral, o belo estético, a livre escolha individual, a eficiência econômica e o bem-estar humano - convergir no tempo ou for necessariamente compatível? O futuro despe o passado. Nossas escolhas têm conseqüências imprevistas". Do filósofo Baruch Spinoza (nascido em Amsterdã, 1632 - 1677) vem a melhor de todas as frases e definições filosóficas: "A Felicidade não é recompensa da virtude, mas a própria virtude". Simplificando a relação antes citada como "felicidade=virtude".
Clarice enxerga essa felicidade criando outras relações, como virtude/recompensa, e escrever/felicidade. A frase vem de Auto - retrato I, onde a própria autora fala de si; (Waldman, Berta. 2 ed.1993.Ed.Escuta.p.15) "As recompensas de escrever são as de escrever apenas". Ou seja: recompensa = escrever, quando escrever é a felicidade. Chegando à mesma relação: virtude=felicidade.
É difícil não reproduzir todo o estudo de Philipe van den Bosh para tratar da Felicidade como tema em sua totalidade. Como quanto o autor fala na inversão dos valores da sociedade moral e religiosa que condenava o prazer a partir de 1968. Philipe van den Bosh arrisca uma "hipótese explicativa" para o desmoronamento da ideologia pré - Renascimento, "quando os libertinos se tornaram suficientemente numerosos para produzir uma espécie de contra - discurso também oficial". Quando a humanidade passa a desejar outros objetivos para a existência humana.
Bosh entende como pertinente uma interpretação de tipo marxista e conclui: "Havia uma contradição moral no capitalismo em seu primeiro século: ele prescreve ganhar um máximo de dinheiro produzindo cada vez mais, mas também pelo menor custo, portanto privando a maior parte da população dos meios de aproveitar bens assim produzidos e , em conseqüência, limitando consideravelmente o número de consumidores, portanto freando seu próprio desenvolvimento".
Clarice Lispector fala dessa evolução em sua novela A hora da estrela, que escolhemos para mostrar o trânsito da autora na difícil arte de um elegante e não menos trágico humor. É no capítulo a seguir que se pode constatar a mobilidade de clarice com o riso, diante de uma antiga forma de Henri Bergson, do rígido do humano que onde se adapta a fluidez da alma. A idéia do riso faz parte desse conceito. E como sorriam os olhos de Clarice.
Talvez por isso entenda como possível o riso "que saía pelos olhos", como acontece à sua personagem Catarina, no conto Laços de Família. E como sorriam mais que quaisquer outros os olhos de Clarice... Ela jamais abandonou a busca. Basta um olhar mais atento: observar essa presença nas entrelinhas. Da "personagem" que suporta em silêncio as ansiedades da mãe e as hostilidades entre ela e o marido. "Toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo é, pois, suspeita para a sociedade, por ser o signo de uma atividade que adormece e também de uma atividade que se isola, que tende a se afastar do centro comum em torno do qual a sociedade gravita (...) essa rigidez é o cômico, e o riso é o seu castigo". Henri Bergson, O Riso.
A frase resume o conceito de Henri Bergson sobre o "Riso e o risível". Para ele, o homem é caracterizado pela liberdade. E o que caracteriza a natureza é a necessidade. Apesar disso, o homem só é livre no espírito. O corpo tem algo da necessidade da natureza. O risível, para Bergson, vem do fato de esperarmos do homem o todo da liberdade e não o endurecimento do corpo mecanizado. Portanto, nós "rimos na presença de um contraste entre o que se espera e o que existe, contraste este que se fundamente na expectativa de alguma coisa graciosa, viva e inventiva como a vida e a aparição do oposto, algo de duro, mecânico e desgracioso".
Analisando a novela A hora da estrela é possível identificar o prazer na escolha das palavras empregadas e no fazer da obra da autora. No caso, Rodrigo M., na verdade Clarice Lispector. E entende dever revelar alguns dos instantes do surgimento do riso, na utilização deste conforme definição do cômico por Henri Bergson enquanto "mecânico aplicado sobre o vivo" ("du mécanique plaqué sur du vivant") da série de artigos sobre O Riso na Revista de Paris (1899), e reunidos em livro pelo autor em 1900, sob o título O Riso: Ensaio sobre a Significação do Cômico.
Um dos textos mais conhecidos e citados nas pesquisas contemporâneas sobre o tema.
"Construindo freqüentemente o limite até onde se vai para dar conta de formulações anteriores sobre o assunto. Por isso, suas asserções adquirem quase sempre um caráter de autoridade original". Verena Alberti ao relatar a definição do Riso de Bergson é possível reler a obra de Clarice, não sobre a intenção do seu universo e conteúdo.
Mas sob a compreensão e observação de um "modo" mecânico, aplicado sobre o vivo - ou vida pulsante, em grito - que por sua vez gera os instantes onde a autora, torna o universo magro e de cores pálidas de Macabéia num intrigante caleidoscópio de falas entrecortadas e significações tecidas e retorcidas, com capricho da forma. O texto é de uma dureza incomum, sendo assim se encaixa no conceito do ridículo do estudo de Bergson, conforme observa Verena Alberti:
"Pode se dizer que Bergson redescobre o que era voz corrente há mais de um século na discussão sobre o ridículo e a utilidade de sua aplicação. Cômico e riso, para ele, são, respectivamente, um desvio negativo e sua sanção funcional que restabelece a ordem da vida e da sociedade".
A autora observa, ainda, riscos de tropeços nos argumentos de Bergson, o que (não) nos interessa aqui - insisto - no entendimento da ambivalência da teoria. E continua: "Bergson sempre utiliza a palavra cômico (comique) para designar aquilo de que se ri - por isso vamos preferi - la aqui a "risível". Na frase está toda a diferença necessária para os argumentos propostos nesta etapa do estudo, porque diferencia a intenção e a função do texto de interpretações equivocadas, simplistas e precipitadas...
Referendando a importância da obra e seu papel na sociedade da época, no Brasil do final dos anos 70. A história de Macabéa, uma nordestina de fazer pouca sombra que é levada para o Rio de Janeiro por uma tia, contada por Clarice é a reprodução - ou pretende ser, como propõe a autora - da imagem refletida em espelho manchado de ferrugem dessa que representa tal segmento da população que insiste em resistir, mesmo ao passar dos anos. "Parte daquela raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito". Clarice Lispector, A Hora da Estrela. Como traduz no prefácio O grito do silêncio Eduardo Portella.
"Com emprego de balconista numa grande loja de departamentos para a época, Macabéa é um sujeito - broto do que também podia ser compreendido como estudo da depreciação do humano frente às relações geradas e realidade recriada com o impulsionamento (sic) do sistema capitalista".
Tudo isso a um só tempo.
Estão ali questões também culturais e de gênero. Como se vê na "dignidade" adquirida pelo namorado de Macabéa por trazer uma morte nas costas. Ainda mais, e principalmente, na escolha de um autor (Rodrigo S.M.) para a obra. "Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia". Felicidade Clandestina. Neste capítulo é retratado o encontro de filosofias diversas. Da felicidade adiada, como chamou Robert Misrahi, da Universidade de Paris I, na obra de. Clarice.
O mesmo autor critica o desprezo da filosofia contemporânea ao tema: Segundo Misrahi para Platão, só se poderia ter acesso à plenitude e o esplendor no mundo inteligível, após a morte, já que o desejo de uma felicidade "imortal, presente no amor terrestre, indicava a espiritualidade e o despojamento do corpo como vias privilegiadas para o conhecimento do soberano bem". Esse mesmo entendimento se pode observar na obra de Clarice, como uma solução para o proposto em Felicidade Clandestina.
Mesmo adiando o encontro com o tão desejado "soberano bem" - felicidade personificada na imagem do livro Reinações de Narizinho - a autora soluciona essa espera criando a possibilidade de tornar invisível, ou clandestina. Em A Hora da Estrela há concordância com a teoria Kantiana de que é após a morte que Deus, caso deseje, saberá efetuar essa síntese e conferir à alma imortal uma espécie de perfeição e de santidade " no momento final da história de: "Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte".
Conceito recriado no conto observado neste capítulo onde a autora crê na espera e na concretização do encontro com a felicidade; "Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam". Segundo o escrito poeta argentino Jorge Luís Borges, "uma forma de felicidade é a leitura". Para a autora também. O livro personifica o próprio "bem supremo", que refere - se Aristóteles.
A própria Clarice, enquanto criança que morava no Recife atravessa suas ruas e pontes, incansável, para ter a felicidade (ou o livro "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato - "um livro para se viver com ele") nos braços. E por quanto tempo "quiser", como autoriza a mãe da garota ruiva com talento para a crueldade. Para a autora valia mais do que lhe dar o livro. "Pelo tempo que eu quisesse é tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer".
O que se segue ao encontro com o tão desejado "bem supremo" é um sentimento de estonteamento: "Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo - o contra o peito". Então a autora relaciona o sentimento e a fluidez do que fora conquistado com o tempo: essa constante invariável no relógio criado pelo humano e de uma variação infinita quanto ao verdadeiro sentimento que se tem em relação ao seu compasso em circunstâncias marcantes do viver.
"Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo". E é nesse exato instante que começa a análise de como se relacionaram com o mais completo dos sentimentos, os passos desse encontro: "Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter". Numa surpresa insuspeita, embora caracterizada por um "movimento simulado". E é preciso esperar horas para que o encontro com o "bem supremo", o tal encontro feliz se concretize: "Horas depois abri - o, li algumas linhas maravilhosas, fechei - o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga...".
Momento que merece atenta análise da autora do livro A hora de Clarice Lispector, Hélène Cixous sobre a metáfora da necessidade de nada além de "comer pão com manteiga". Numa fome que ganha nos símbolos escolhidos um nome secreto. Mantém - se sem o verdadeiro nome. O que é dito é que há a necessidade e é necessário comido. É também uma felicidade adiada, até o momento em que a necessidade primeira foi saciada. "... fingi que não sabia onde guardara o livro, achava - o, abria - o por alguns instantes".
Esse tempo calculado, diminuído, de "instantes" é o que autora compreende como o que pode ser permitida para se viver a felicidade. Já não parece mais a descrição do encontro da garotinha com o livro. Mas da própria vivência da autora em relação aos encontros ou "instantes" com a felicidade. A prova é a conclusão de um pressentimento, uma reflexão comparativa, um desabafo:
"Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar. Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada". Então, num "insight" alusivo. Clarice abre o leque das possíveis felicidades e num passar de vírgulas faz do passado, futuro presente. "Às vezes sentava - me na rede, balançando - me com o livro aberto no colo, sem tocar o volume ainda, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante". Então o Amor é essa felicidade. Não é mais o prazer da leitura. Da vitória, da conquista. A grande felicidade, "em êxtase puríssimo", se traduz com a presença do amante. E da transformação da menina em mulher.
BIBLIOGRAFIA
Lispector, Clarice. 1948. Perto do Coração Selvagem (Romance), Rocco, Rio de Janeiro. Lispector, Clarice. 1998. Felicidade Clandestina (Contos), Rocco, Rio de Janeiro.
Lispector, Clarice. 1982. Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres. Rocco, Rio de Janeiro. Lispector, Clarice. 1998. Água Viva: ficção, Rio de Janeiro: Rocco.
Lispector, Clarice. 1999. A Descoberta do Mundo. (Crônicas). Ed. Rocco.
Lispector, Clarice. 2002. Correspondências (Org. Teresa Monteiro). Rio de Janeiro. Ed. Rocco Sabino, Fernando. 2002. Cartas perto do Coração Selvagem, Lispector, Clarice. 2002 Ed. Recorde. Rio de Janeiro. São Paulo.
Lispector, Clarice. 1998. A paixão segundo G.H., (Romance). Ed. Rocco. Rio de Janeiro. Lispector, Clarice. 1977. A hora da Estrela, (Romance), Rocco, Rio de Janeiro.
Lispector, Clarice. 1989. Laços de Família. (Contos), Rocco, Rio de Janeiro.
Gotlib, Nádia Battella. 1995. CLARICE, Uma vida que se conta, (Biografia), Ed. Ática, São Paulo. Russell, Bertrand. (trad.) 2002. A Conquista da Felicidade, trad. Luiz Guerra (2ª. Edição), Ediouro.
Giannetti, Eduardo, 2002. Felicidade (Diálogos sobre o bem-estar na civilização), 3ª. Reimpressão, Companhia das Letras.
Bosh, van der Philippe. 1998. A Filosofia e a Felicidade. Trad. Maria Ermantina Galvão. Ed. Martins Fontes. São Paulo.
Comte-Sponville. 2005. A felicidade desesperadamente. Trad. Eduardo Brandão. Ed. Martins Fontes. São Paulo.
Bruckner, Pascal, 2000. A Euforia Perpétua, trad.António Cruz Belo, 2003. Editorial Notícias, Lda. Heska Portuguesa, SA.
Misrahi, Robert, 2001. A Felicidade - Ensaio sobre a Alegria, (Le Bonheur). trad.Flávia Nascimento. Ed. Difel. 1994.
Alberti, Verena. 1999. O riso e o risível. Jorge Zahar Editor Ltda.ed. 2002.
Nunes, Benedito. 1989. O Drama da Linguagem. Editora. Átila.
Waldman, Berta. 1992. Clarice Lispector. A paixão segundo C.L. (2ª. Edição revista e ampliada). São Paulo. Ed. Escuta.
Helena Lucia. 1997. Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector. Niterói/RJ: EDUFF, 1997.
*Geórgia Alves é jornalista e concluiu especialização em Literatura Brasileira pelo Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco. e pede licença para apresentar aqui apresenta uma síntese.

Wednesday, August 08, 2007


Poucos colheram do "modo" de Clarice em semear o "direito à diferentes felicidades". Muito embora quase tod@s já saibam que o livro "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, conta a história de uma mulher que se chamava apenas pelas iniciais na valise de viagem e que um dia se depara com uma ordem diferente da dela. Perfeita, mas em tudo des - igual (neologismo meu) da sua casa de revista. Dia em que vai ao quarto da empregada e se depara com uma barata - ser pré - histórico com condição que antecede a condição humana. G.H. descobre aos poucos que vai impelindo - a ao encontro do que existe dentro da "coisa" que descobriu. Da página doze à página treze (1998, Ed. Rocco) conta:

"Ontem no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia (grifo meu) de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? (quase ouço com sotaque espanhol...) e no entanto não há outro caminho."

É assim, sem qualquer pausa, em um único fôlego, que vai indo:

"Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explicq que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização. E uma desilusão. Mas desilusão de quÊ? se , sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema."

E arremata, abrindo o leque para o "ser feliz", criando caminhos:

"No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido".

(A Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector, Ed. Rocco, 1998, págs. 12 e 13)

Monday, August 06, 2007

Os infantis de Clarice Lispector


“...é uma coisa escondida sozinha num canto, esperando, esperando. Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo correndo no vento na chuva, molhou o vestido perdeu o chapéu. Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela e ela morre. Me escreva uma carta de 7 páginas, Clarice”. Fernando Sabino.


nota: o escritor já havia terminado sua longa carta, tendo, inclusive, assinado-a. Mas, parece que ao perceber que ainda resta meia folha disponível, lançou-se nesse improviso lírico, assinando-o ao final. Carta manuscrita, enviada de Nova York e datada de 10 de junho de 1946.


Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.

"Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Morou num navio. Atravessou o oceano, morou em Alagoas. Viveu no Recife, escreveu para o Diário de Pernambuco suas primeiras estórias. Mudou – se para o Rio. Morou no Rio de Janeiro, lá escreveu e publicou suas primeiras reportagens. Casou. Mudou – se para Belém do Pará. , tendo recebido o nome de Haia Lispector, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Seu nascimento ocorre durante a viagem de emigração da família em direção à América".

Museu da Língua Portuguesa
“Trinta anos d’A Hora da Estrela”
Jornal de Idéias

Clarice Lispector escreveu livros infantis. Tantos quantos os dedos da mão. Foi Paulo - filho dela - quem provocou Clarice com uma pergunta: por que você só escreve livros para adultos ? Nenhum deles é para crianças..."


Clarice "respondeu" dois anos depois. Com O Mistério do Coelho Pensante (Rocco,1967). E mais dois anos depois, com a frase numa carta: Rio,23/2/1969


"Você é o melhor livro que eu jamais escrevi, issso não tem dúvida".


Livros infantis de Clarice:

O Mistério do coelho pensante – Rocco, 1967
A Mulher que matou os peixes – Rocco, 1968
A Vida íntima de Laura – Rocco, 1974
Quase de verdade – 1978
Como nasceram as estrelas – doze lendas brasileiras – Rocco, 1987
(fonte: http://www.claricelispector.com.br/, onde ainda constam fotos e o trecho abaixo)

A importância da maternidade


“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”


Clarice Lispector



Friday, August 03, 2007


O mar, agora, é tão escuro quanto a mágoa retida pelo insólito desejo de vê - la viver. Tão misteriosa em seu nada quanto uma noite sem lua. Mas a luz ergueu - se sólida e longe. A água fria eriçando pontas de pêlos curtos. Olho distante a cor translúcida das espumas prateadas. Dedos escorrendo entre fios de cabelos de crisálidas. Minha tristeza é como canto de sereia, deixa a voz mais suave, a fala hipnotiza até a mim. Até eu me convenço que não sinto o peito repleto. Luto com a força de uma baleia gigante encalhada na areia. É hora de fechar o que havia aberto em mim. Qualquer coisa, aliás, que se pareça com amor. Somente essa breve solidão me faz livre. Saber que é possível não existir nunca mais é uma terna e irresistível tensão cristã. Vou apenas olhar mais de perto, peixes que vão ao meu encontro. É cada vez maior o desejo de estar em silêncio.