Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Tuesday, June 19, 2012

Sobre o amor    
                            
O fato é que é preferível a verdade, faça sofrer ou não, que qualquer "bem intencionada" mentira. Até mesmo porque o Amor só existirá no instante depois. Pelo menos é o que preferimos nós filósofos. Sobre o amor, Barthes já observava: o amor é um assunto mais obsceno, para nossos contemporâneos, do que o sexo. Mais incômodo. Mais íntimo. Mais difícil de dizer, de mostrar, de pensar. Digamos que a sexualidade tornou-se uma espécie de regra, à qual não há como não se submeter. O amor seria antes uma exceção. A sexualidade faz parte de nossa saúde. O amor seria antes uma doença, em todo caso um distúrbio. A sexualidade é uma força. O amor seria antes uma fraqueza, uma fragilidade, uma ferida. A sexualidade é uma evidência; o amor, um problema ou um mistério. Pode-se duvidar, inclusive, de sua existência ou, no mínimo, de sua verdade: e se fosse apenas um sonho, uma ilusão,uma mentira? Se por toda parte existisse apenas o sexo e o egoísmo?

Se o amor só existisse, como sugeria La Rochefoucauld , na medida em que falássemos dele? (…) Amar é poder desfrutar ou regozijar-se de algo ou de alguém. É, portanto, também poder sofrer, já que prazer e alegria dependem aqui, por definição, de um objeto exterior, que pode estar presente ou ausente, dar-se ou recusar-se. “Em relação a um objeto que não é amado, escreve Espinosa, nenhuma querela nascerá; não sentiremos tristeza se vier a perecer, nem ciúmes se cair em mãos de outro, nem temor, nem ódio, nem perturbação da alma…”, Estamos longe disso, e basta dizer que o amor nos prende como a ele nos prendemos. Se nada amássemos, nem nós mesmos, nossa vida seria mais tranqüila do que é. Mas é que também já estaríamos mortos.

Não se pode viver sem amor, explica Espinosa, já que é o amor que faz viver: “Em razão da fragilidade de nossa natureza, sem algo de que gozemos, a que estejamos unidos e por que sejamos fortalecidos, não poderíamos existir.” O amor é uma potência – potência de gozar e de regozijar-se – mas limitada. Por isso ele marca também nossa fraqueza, nossa fragilidade, nossa finitude. Poder gozar e poder sofrer caminham juntos, como a alegria e a tristeza, e é o que significa e ao temor, ao gozo e à falta, enfim ao trágico e à insatisfação. (…) O que é o amor? Espinosa dá esta bela definição: “O amor é uma alegria acompanhada da idéia de uma causa exterior.” Amar é regozijar-se de. Mas, e se a causa faltar? Resta, então, apenas a mágoa ou a falta. É onde se pode pensar a relação entre duas definições do amor, que dominam toda a história da filosofia.

Há a de Espinosa, que já era, no essencial, a de Aristóteles: “Amar, dizia este último, é regozijar-se.” E há em seguida a de Platão, que parece dizer bem o contrário. O amor, para Platão, não é primeiramente um alegria. O amor é falta, frustração, sofrimento: O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor.” São dois amores diferentes, que os gregos designavam por duas palavras diferentes: philia, para a alegria de amar, e eros, para a falta.(…) A falta e a alegria, Eros e philia, não são menos diferentes um do outro. Eros é primeiro, claro, já que a falta é primeira: vejam o recém-nascido que busca o seio, que chora quando lho retiram. É o amor que toma, o amor que quer possuir e guardar, o amor egoísta, o amor passional; e toda paixão devora. Te amo: te quero. Como este amor seria feliz? É preciso amar o que não temos, e sofrer com essa falta; ou então ter o que não falta mais (já que o temos) e que por isso amamos cada vez menos (já que só sabemos amar o que falta). Sofrimento da paixão, tédio dos casais. Ou então é preciso amar de outra maneira: não mais na falta, mas na alegria, não mas na paixão mas na ação – não mais em Platão mas em Espinosa.

André Comte-Sponville descreve longamente, sobre o amor, deseperadamente: "Te amo: sinto-me feliz porque existes". Todo casal feliz, e apesar de tudo existem alguns, é uma refutação do platonismo. Eros é a falta e a paixão amorosa: é o amor que prende ou quer prender. Philia é a potência e a alegria duplicada pelas do outro: é o amor que regozija e compartilha. Olhem a mãe e o filho. O filho toma o seio: é Eros, o amor que toma, é a própria vida. E a mãe dá o seio: é philia, o amor que dá, graças ao qual tudo continua e muda. Pois a mãe foi primeiro um filho: como todos, começou tomando. Mas aprendeu a dar, pelo menos a seus filhos, e é o que se chama um adulto. No início existe apenas Eros (há apenas o isso, como diz Freud), e talvez disso não escapemos: cada um começa tomando e não pára nunca. Mas, enfim, trata-se de aprender a dar, ao menos um pouco, ao menos à vezes, ao menos àqueles que amamos àqueles que nos fazem bem ou nos regozijam (…) Dar sem tomar? Regozijar-se sem querer possuir nem guardar?

Seria philia liberada de Eros, seria o amor liberado do eu, a alegria da falta, e foi o que os primeiros cristãos- quando foi preciso traduzir para o grego a mensagem do Cristo – chamaram ágape, que pode ser traduzido indiferentemente por amor ou caridade. É o amor liberado do eu, e por isso sem fronteira, sem margem, sem limite. Que deles sejamos capazes, duvido muito. Mas, enfim, isso indica pelo menos uma direção, que é a do amor: o amor não é o contrário do egoísmo; é seu efeito, sua foz - como um rio se lança no mar -, enfim seu remédio ou, como diria Espinosa, sua salvação. Vais passar toda tua vida a buscar um seio, ou a querer guardá-lo, ou a dele sentir saudades, quando há um mundo inteiro a ser amado? Nunca se ama demais. Ama-se mal e mesquinhamente. O amor é falta ou plenitude?"

Amor e demência




      Amor é uma espécie de demência. É preciso abstrair opiniões sobre fatos para amar alguém. Porque a pessoa não virá em constituição de leis, artigos, emendas. Ela virá incompleta e imperfeita, sem seguir qualquer regra, por mais disciplinada que seja. Porque demência, ao pé da letra, quer dizer diminuição da mente. Perda progressiva da capacidade cognitiva. E, pelas anotações que faço, por puro reflexo condicionado, posso identificar que é contagioso. Sempre que sinto, mesmo sem querer, repasso.

     Porque amar é um estágio de demência. Ele passa, mas enquanto dura pode fazer tudo funcionar ao contrário do esperado. Vide Romeu e Julieta. Não entendeu? Eu explico, acompanhe comigo: É provável que o objeto amado ganhe mais nuances em cores berrantes das imperfeições ou incompletudes do que almeja, justo porque seu olhar sobre ele seja assim rigoroso e atento a tão mínimos e pequenos detalhes. Por isso que, quando se quer amar a mesma pessoa, é preciso sentir, mas quando vir, não olhar. Expliquei ou falei do contrário? Será que estou por amores a você?

     Amar exige essa espécie de demência. Porque o demente não percebe o ambiente em tudo que ele representa. Talvez atenha, inclusive, a um detalhe que lhe agrada e amplie na tela como se faz agora com polegar e indicador juntos nos aparelhos mais espertos. Tem que olhar a ética que o outro inventou para ele. e suportar, aceitar. Mas isso já não seria amar. Porque se amor é admiração, como se pode amar sem admirar? Então a gente quer opinar, corrigir e isso já não é mais amor. Não quando se quer mudar. Fazer ouvido de mercador - para negociar depois - às frases extremistas, radicais, invertidas, subversivas, carregadas de boicotes em si mesmas. Tem que fazer vista grossa aos maus humores. Talvez por isso interesse você, que eu amo, nem gostar de mim.

     Amar amar mesmo, em dedicação contínua de atenção, exige um bocado de demência, de limitação. Acredito por leitura, e opinião amalgamada por experiência e conveniência, que tenha mesmo apenas três anos de duração esse efeito. As reações químicas por todo o cérebro e corpo não duram para sempre. Agora, que passou um ano, posso dizer que amor é o tipo de demência que se instala na pessoa e sai quando quer, porque não entende qualquer ordem ou obediência. Amar é uma demência. Que seja passageira. Porque amor mesmo, é o que vem depois.

Um bom vinho

Ali na prateleira estava seu sonho. Seu vinho português preferido: Carcavelos. Não por acaso, produzido numa das menores regiões demarcadas de Portugal. Ainda, localizada na costa de Estoril, próxima da Foz do Tejo. Ex – Costa do Sol. Distante apenas dez quilômetros de Lisboa. Tudo na história daquela garrafa interessava a Marta.
Interessava, por exemplo, que Carcavelos fora demarcada em 1908, que fora o Marquês de Pombal seu principal defensor. Seu modo de estar, plenamente, rodeada de urbanizações. Mas, principalmente, pelo fato de produzir um vinho generoso. Feito em bica - aberta. Tal como outras regiões esta corre sérios riscos de extinção.
Marta era uma mulher severa e muito sozinha. Tinha hábitos que remetiam as pessoas mais antigas. De uma organização simples, quase franciscana. Mas com este requinte. Gostar de origens. Ter um apego às coisas com significados e tradições. E coincidências como datas. Quer saber uma que pegou Marta? Ela nasceu no mesmo dia em que a região de Carcavelos foi demarcada. Exatos dois séculos depois que o Marquês do Pombal, enviou vinho da sua quinta Oeiras, para a corte de Pequim, na China.
Isso foi em 1752. Ela se pergunta se, naquela época, era mais fácil conseguir uma garrafa. Por ser uma região ocupada pela vinha muito pequena, e, por esta razão, o Carcavelos dificilmente se encontrar no mercado. Para que todos entendam melhor a grande afeição de Marta, preciso dizer que trata-se de vinho licoroso, de graduação alcoólica com variação de 18º a 20º e que alguém já tomou como melhor indicado enquanto aperitivo ou vinho de sobremesa, pelo grau de doçura.
Assim como é a própria Marta, que produz mais pensamentos livres de impurezas que doçura, em suas dores caladas. Por empenho e força de buscar as infindáveis características da bebida preferida feita em uvas pisadas. Sobre seu vinho, costuma dizer para amigos que carrega suavidade em tema e paladar aveludado. Só esconde saber do seu envelhecimento rápido. Pelo tempo de dois anos em casco, bastante para introdução da rolha e para que seja engarrafado. Selado. Identificado por uma família com rótulo. Para, então, ser comercializado.
Carcavelos vem com ligeiro tanino e é rico em álcool natural. Tudo que aprendi com Marta. Que conheceu Carlos, por intermédio de Fátima, depois de Marta lhe apresentar ao vinho. Formam, hoje, dois casais. Completos em suas essenciais parcerias para todo o sempre.           
Como no último final de semana em que estivam juntos. Marta, Carlos, Fátima e uma rara garrafa de Carcavelos. Conversaram muito, ajudando a compreender seus mistérios. A preencher seus vazios. Reviram aflições que só solidões despertam. Numa daquelas interações de seres mais completos. Foram duas noites indescritíveis. Como fossem pintadas por Monet. Uma bela lua, vento soprando cabelos na varanda. Até o vinho Carcavelos, presente fisicamente em todos. Nos copos e nos corpos, deixaram espreguiçadeiras balançando, em direção à leve noite de sono. Em abraço ampliado.
No sonho de Fátima, sem qualquer explicação, estava a imagem de Carlos. Não como o amigo de sempre, porque nunca esteve interessada amorosa ou sexualmente nele. Marta despertou estranhando a sim mesma. E serviu um café da manhã, mais forte que o de costume, para existências agora incompletas e confusas, espectros difusos.
Chegou à conclusão de que, embora gostasse muito da amiga Fátima, naquela troca, tomaram muitas liberdades. E que agora, o melhor mesmo seria uma amizade à distância. Para que o vazio deixado, Fátima fará que seja preenchido por novos parceiros. Escolhidos para a ocasião, como vestidos, ou como são, por Fátima, os vinhos. Ambas sentem falta de ponderações ajuizadas em cumplicidades de amizade de tão longa data. Mas, ao mesmo tempo, tanto para Marta quanto para Fátima ficou a lição, de que não se pode ter tudo, ao mesmo tempo na vida. Ou bem um homem, ou bem um bom vinho.

Saturday, June 16, 2012


Bloomsday!!: 


Para além dos Dublinenses, livro pouco comentado de Joyce, no Brasil, é a coletânea de contos, pela Coleção de Clássicos Modernos, da Ediouro, com tradução de Hamilton Trevisan. Apenas quatro deles apenas: A pensão, Os Mortos, Eveline e Arábia. 

O mais comovente e envolvente, na minha opinião, é mesmo o primeiro, sobre o drama da personagem Polly, filha de madame Mooney, ex-mulher do açougueiro e dona da pensão. Mas neste dia, gostaria de ressaltar trecho do segundo conto. E destacar da história trecho da conversa entre dois personagens do animado e controverso grupo participante da quadrilha - dança típica irlandesa. Molly havia-se dito "envergonhada" ao descobrir de quem se tratava o pseudônimo G.C. E, em tom sério, toma satisfações sobre o amigo de longa data escrever para um jornal "anglófilo": 

"Gabriel estava perplexo. Era verdade que escrevia a resenha literária semanal do Daily Express recebendo para isso quinze xelins. Mas, por certo, não fazia dele um traidor. Os livros que recebia para comentar davam-lhe muito mais prazer que o ínfimo cheque. Gostava de sentir as capas e virar as páginas dos livros acabados de imprimir.

(...) 

Não sabia com enfrentar aquele ataque. Queria dizer que a literatura estava acima da política, mas eram amigos a muitos e muitos anos e suas carreiras - primeiro na Universidade, depois como professores - tinham sido paralelas: não poderia arriscar uma frase grandiosa com ela. Continuou a piscar os olhos," 

(Contos, Os Mortos, James Joyce, tradução: Hamilton Trevisan). Boa leitura!


Nota de rodapé: na foto, que bem serviria para anunciar o dia de homenagens a James Joyce, é um instantâneo (anterior ao instagram) de autoria de João Valadares, na companhia do amigo de longa data, também jornalista, não colaborador de algum jornal "anglófilo", que eu saiba, Lula Portela. http://www.ufrgs.br/proin/versao_2/joyce/index.html