Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Sunday, October 14, 2007

Eu e Jimmy* (trecho)

Lembro-me ainda de Jimmy, aquele rapaz de cabelos castanhos e despenteados, encobrindo um crânio alongado de rebelde nato.

Lembro-me de Jimmy, de seus cabelos e de suas idéias. Jimmy achava que nada existe de tão bom quanto a natureza. Que se duas pessoas se gostam nada há a fazer senão amarem-se simplesmente. Que tudo o mais, nos homens, que se afasta dessa simplicidade de princípio de mundo, é cabotinismo, e espuma. Se essas idéias partissem de outra cabeça, eu não toleraria ouvi-las sequer. Mas havia a desculpa do crânio de Jimmy e havia, sobretudo a desculpa de seus dentes claros e de seu sorriso limpo de animal contente.

Jimmy andava de cabeça erguida, o nariz espetado no ar, e, ao atravessar a rua, pegava-me pelo braço com uma intimidade muito simples. Eu me perturbava. Mas a prova de que eu já estava nesse tempo imbuída das idéias de Jimmy e sobretudo do seu sorriso claro, é que eu me repreendia essa perturbação. Pensava, descontente, que evoluíra demais, afastando-me do tipo padrão - animal. Dizia-me que é fútil corar por causa de um braço; nem mesmo de um braço de uma roupa. Mas esses pensamentos eram difusos e se apresentavam com a incoerência que transmito agora ao papel. Na verdade, eu apenas procurava uma desculpa para gostar de Jimmy. E para seguir suas idéia. Aos poucos estava me adaptando à sua cabeça alongada. Que podia eu fazer, afinal?

(...)

Minha avó, uma velhinha amável e lúcida, a quem contei o caso, inclinou a cabecinha branca e explicou-me que os homens costumam construir teorias para si e outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de uma pausa e um suspiro, esquecem-nas exatamente no momento de agir... Retruquei a vovó que eu, que aplicava com êxito a lei das contradições de Hegel, não entendera palavra do que ela disse. Ela riu e explicou-me bem-humorada:

- Minha querida, os homens são uns animais.

Voltávamos, assim ao ponto de partida? Não achei que esse fosse um argumento, mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não há mesmo nada a fazer senão viver. Só continuava a me intrigar a mudança de Jimmy. A teoria é tão boa!

*publicado na Folha de Minas. Belo Horizonte, em 24 de dezembro de 1944 - conto antigo reproduzido no jornal sem autorização da autora.

Thursday, October 11, 2007

"A opinião dos outros interessa em parte. Só a parte que interessa".
eu mesma em 2001


O QUE EU QUERIA TER SIDO*
Clarice Lispector


Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de "a protetora dos animais". Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.


E eu sentia o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. Em Recife eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir. Em Recife, onde morei até os doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender os direitos dos outros.

No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.


*Pag. 46, Aprendendo a viver, Rocco. Seleção de crônicas antes publicadas em A descoberta do mundo (Rocco), escolhidas por estarem todas na primeira pessoa, uma não-ficção, discutindo filosofia de vida e a tentativa de compreender o mundo.

Monday, October 01, 2007

Vi um imenso mar azul, ainda de longe. Vi que a indignação está presente em poetas. Ouvi seu canto de silêncio e sorriso. As fronteiras que ultrapassamos com o acelerar do batimento cardíaco são bem maiores que as fronteiras que nos separam. Indignação em canto: de quem chegou ao ponto essencial da compreensão do sentido profundo da dimensão idílica e erótica da vida.

Venho apenas dizer da calma que dá compreender. A busca de uma alegria. O caminho para estar e ser feliz. Eliminando com habilidade fronteiras. Veloz, escolher rumos e direcionamentos da vida com firme poder de decisão.