Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Tuesday, May 31, 2011

Enlouquecendo Jandira


Num dia estava tão pensativa e acertiva. Dizia frases perfeitas como num sopro de eternidade. Como Bertolucci, em Beleza Roubada. No outro, estava tão desastrada - inclusive com palavras. Sua fala inteira era triste. Como tivesse sacado o parágrafo de um poço sem fundo de mágoas.

Isso ia enlouquecendo o menino lobo homem, que de tão polido foi dado a ser educador. Ao lado dele, ela não sabia mais pensar. Era tão espontânea que não media mais nada. Nem o falar. Seus pensamentos saíam como bichos soltos numa selva.

A pergunta que me faço agora é: se não tinha controle do que lhe saía pela boca, imagine o balé de corpo e as transpirações de Jandira!
Impressão


A frase grudou nela. Mudando seu modo de ler signos. A novidade ficou impregnada nela. Como um incômodo e irreconhecível gomo. O mundo agora era outro. Há frases assim. Qual a surpresa? Fixam e nunca mais conseguimos nos livrar delas. Pensamentos que nos mudam. Pela raiva ou angústia. Mesmo para quem é dado a reagir, tem frase que buzina. Tortura. Azucrina. Quem fixa e é dado a impressões na vida, se sente sem o direito à voz. Todo o entorno vai se transformando num caos sem fim. Atendo às nossas idéias que – como pedras – nos puxam para o abismo. E seguimos no absurdo. O que fazer, então, do futuro? Pular o muro.

Porque quando avós começaram a sair de suas casas, de madrugada, pra trabalhar até o dia ficar escuro - numa máquina de costura - tudo mudou. Minha mãe, aos nove anos, tecia florzinhas na ponta dos dedos até fazer calos. Bolhas inteiras a atormentar a sensibilidade e beleza de suas mãos. Esse tempo chegou e interferiu na próxima geração. O calo no dedo, a perda da aura da flor de tecido fixou como um fato real na insensibilidade. Faltou dor para reconhecer antes mesmo o momento de ferir. Restou nos curar. O que fazer então com a leveza de teclas de um computador? Com toda essa liberdade? O que nos motivou a chegar aqui? A linha da máquina e do tempo... Segui?

Juro que não quis dar um tom maior a essa impressão. A pergunta era sobre o futuro e sobre sua motivação. Quem sabe minha dúvida não se junta à sua? Quem sabe agora a frase não modifica o entorno e o modo deixa de ser alheio porque está também em tanta gente. Deve estar no lugar do meio. A resposta está sempre posta em brechas e brota. Porque existe a verdade das coisas. E ponderar sabendo da infinidade de pontos entre um e outro marco será sempre um recurso. Mas não se pode calar. Quando cedo um pensamento, transformo o mundo. E devo refazê-lo. Antes mesmo que solidifiquem a mentira por expor tão bem seus termos. Mesmo que tenha aprendido a suportar tão bem a dor.

Monday, May 23, 2011

Reflexo


O céu fechou-se em nuvens escuras. Melhor esperar pela chuva. Ver cair cada partícula em sua certeza de tocar o chão. A espera precisa. O salto sobre a poça d’água do homem em suspenso. Bresson é um intervalo de espaço no silêncio. O modo de manter-se noir.  Preto e branco num mundo tão colorido é um alento. Uma memória que socorre aura do não tempo. Daquela caixa que emitia luz e reflexos de nós mesmos. Porque vingança de chuva é molhar a terra.
Para o EnContos:



Fernando fechou a porta da casa. Ficou feliz por rever Renata. Conheceu-a num Reveillon. Na casa de praia em Parati de uma amiga da época da Escola. Estela era o nome dela. Estela tinha um irmão mais novo. O nome dele era Caio. Cabiam numa mão as qualidades de Caio: era o caçula, metido a capeta, cabra cabreiro, estilo caveirinha e cabeça dura feita cascalho. Caio caiu num buraco. Do buraco em que estava Caio pensava. Na época em que passava essas temporadas na casa da praia. Lembrou que nunca mais encontrara as melhores amigas da irmã Estela. Caio caiu de amores por uma delas. Do buraco onde estava, Caio caído de amores como há anos atrás lembrou dos cabelos dourados daquela amiga de Estela. Às vezes, a memória brincava de apagar o nome dela. Mas do buraco onde estava Caiu soltou alucinado, o apelo que lhe apertara por tantos anos o peito, qual um urso urrando, soltou o grito: Cadê Denise?
Pixotes e mortais

Pés e cabelos e roupas molhadas. Banhavam-se no rio. Doce das últimas lembranças. As melhores das que guardaram em memória. Impregnadas lembranças desses meninos cheias de germes em suas roupas e cabelos e pés e peles. Mergulhavam num braço d'água de esgoto e rio. Aos corpos franzinos deles, não faz mal.

Flexeiros, piruetas, saltos e mortais. Pixotes aos bocados aos pinotes no canal. Dinheiro nenhum para a condução. Também lhes falta pão e educação. Na volta pra casa querem morcegar nos ônibus dos homens e mulheres que lhes olham com delação. Condenação. Sem proteção. Os passageiros reprovam. Os motoristas impedem. Os cobradores relepem. É uma avenida de asfalto e água fluida onde possam arremessar o corpo num salto. Fatal impacto.

Pixotes aos pinotes em pés e cabelos e vestes encharcadas de germes e vermes. Rio Doce são as melhores lembranças que trarão na memória da história que construirão.


Visita inesperada

Revi seu rosto com tanta surpresa! Não havia mais aquela fragilidade de sempre. Era um rosto lunar e rubro em maçãs. A forma - que aqui chamamos de corpo - tinha outros contornos. Era maior. Aparentava um metro e oitenta. Não era mais franzina e miúda. Pequena e magra como conheci. Estava em vestes brancas e face rosada. Alta. Bem mais alta que qualquer humano que conviva. Estava acompanhada de dois guardiões. Quem entendi do assunto diz que é sempre assim. Que são guias e não ingressam nos mesmos ambientes. Masculinos no que compreendi. Roupas confortáveis e claras. Entrou no meu quarto, observando cada detalhe de sua simplicidade de cama, janela e roupas em sacolas e malas. Prontas para viagem. Elegante, austera. Ela me olhou com certa preocupação, de início. Curiosidade sobre um amuleto no banquinho que eu mesma fiz. Era do amante que tornava aquela noite menos vazia que as outras noites dos últimos meses. O amuleto que trazia em seu pescoço e eu mesma abri obedecendo o pedido mudo dele. Olhou com ar de aprovação. Sorriu e saiu.

Acordei no instante seguinte. Todos haviam ido. À exceção do amante que continuava ali. O que restou em mim foi uma sensação de calma. Boa companhia. Um certa tranquilidade por sempre reprimir movimentos assim. Logo mais à tarde, pude reler cartas antigas. Cartas que nunca mais havia tocado. Menos ainda com tamanha ternura. Sua imagem em companhia de seus guias não me sai da cabeça. Minha avó paterna está em plena harmonia. Ela que ousou ficar sozinha num tempo em que matrimônios não se desfaziam. Quem sabe também alguma paz será reservada a mim, que como ela, depois da benção em testemunhas, rompi. 

Ela inovou muito mais. Temperava a carne com hortelã. E seu último pedido à nora foi uma cerveja gelada. Quando todos os móveis foram levados pela cheia só falava feliz do moço bonito do corpo de bombeiros que a salvou e a trouxe para um lugar seguro, nos braços. Criava galinhas, comia ovo de capoeira e fazia uma delícia de sobremesa com grão de milho batido em pilão com açúcar e canela chamada "tabaco 60". Uma casa simples que dividia com o filho, que fora seminarista e formou-se em duas faculdades com quatro pós graduações. São muitas lembranças que trago. Ficaram maiores ainda com a visita inesperada.