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Thursday, August 23, 2012

A espera e a recompensa


Dia de sol é injeção de ânimo. A alma, quando percebe toda a luz e energia brilhante que se espalha lá fora das quatro paredes onde se mora, fica acesa e iluminada também. Então sai assim. Colorida, com os ombros de fora, hidratei e protegi a pele para a caminhada até o de trabalho. Blusa branca, esvoaçante, espécie de mini vestido, sobre o jeans surrado. Sapatos confortáveis, cabelos soltos e brincos de palhinha dourada. Um mimo. E eu tão alegre a tagarelar tolices.

Feliz por entender estar construindo algo novo. Um sonho de novo lar, com mais espaço, mais história, mais tons que o preto e branco de agora. Cometi um erro apenas. Uma bobagem: Tão confiante que estava na harmonia promovida pelos raios solares. Crente de que todos os outros seres humanos estariam também investidos dessa energia positiva. De tanta fé na vida, não escondi o entusiasmo por estar viva.

Para minha surpresa, não havia explicação para as esquisitices que sucederiam, já a partir da primeira esquina: Um passarinho morto, de asas fechadas, na calçada em que caminhava. Como pode um ser que voa, que habitualmente se encontra nos céus ou galhos de árvores, ali no chão, como algo empalhado. Talvez tenha sido pelo eletrocutado ao pousar distraído na fiação de alta tensão. Estranha comunicação aquela do Universo. O que Deus estaria querendo dizer com aquilo?

Logo depois, uma senhora, de idade, cabelos grisalhos, numa distinção de sabedoria negra, fazia repetidas vezes o sinal da cruz voltada para a Estrada do Encanamento. Debaixo da sombra das árvores do Sítio da Trindade. Como poderia decifrar, ainda estava sob efeito do espanto, a desconexão entre seres tão livres quanto pássaros, embora mortos, e o sincretismo religioso daquela senhora negra como a noite mais feliz?

O fato seguinte, foi abordagem de um senhor de olhar confuso, perguntou sobre acesso ao "Espinhadeiro". Seria o bairro do Espinheiro? Questionei sem esperanças, na expectativa de poder ajudar tola e superficialmente indicando trajeto à Tamarineira, impregnada pelo efeito da palavra e pela confusão que vi nos olhos dele. Se as letras estavam trocadas, imagine quantas ideias o confundiam. A forma de perguntar foi tão pouco convidativa, com mãos e braços exasperados em minha direção, para voluntária ajuda a um estranho, que dessa vez não parei. Com medo e a certeza do fracasso, desculpei a mim mesma porque não ter a informação.

Continuei caminhando refletindo sobre a tal quinta-feira tão ensolarada e, ao mesmo tempo. treze. Carregada de símbolos que não compreendia, nem decifro agora mesmo. Depois do que achei, seria tudo, três homens queriam tomar de assalto, sobre o viaduto. A construção liga o bairro do Parnamanirim à Torre e onde foi erguida para favorecer supermercado de nome francês. Dou a eles ouvidos moucos, talvez porque levava comigo  a única máquina que restou nos últimos anos de trabalho. Nela mais de 300 textos, contra três míseros homens? Barbada. Não pensei duas vezes. Nem hesitei em atravessar o lugar reservado aos carros. Não dei não a bolsa.

Dei de ombros àquela ordem com um desdém danado, dizendo "dou nada" e expressando a minha fúria com uma deselegante exibição do meu dedo de dimensão máxima. Arrisquei sim, durante o ocorrido, por duas vezes, a vida e o resultado de tantos anos de dedicação e escrita talhada em teclas suaves, num teclado como este, circunscritas. Primeiro por ter cruzando a pista, sem olhar se os carros vinham. Depois pela ousadia de chegar tão perto, tentando apressando o passo deles com o barulho de um jornal sobre a mão ora aberta ora fechada.

O que eu sabia, e eles nem desconfiavam, é que ali, naquela bolsa, estava a década que não foi perdida. Um dos homens, achando que eu temeria uma frase, praguejou: "vai morrer atropelada". Não foi dessa vez. Não morri porque não me usurparam ali, no viaduto, sob o sol das dez da manhã, de uma quinta treze linda, a máquina e o celular com infinidade de contatos irrecuperáveis e mensagens guardadas. Voltei pra casa. Acomodei em local mais seguro a bolsa com a máquina. Renascida e motivada pela violência, voltei a escrever. Depois de estar tão morta por meses, que pareceram anos, pelo menos para mim.

O final desta história é ainda mais feliz e justo ao saber que eles ficaram esperando que eu atravessasse novamente o viaduto, para na segunda vez bem suceder no assalto. Vão esperar para sempre, porque o medo de encontrá-los novamente, fez afinal minha mente se convencer de abrir mão das caminhadas em quintas-feiras ensolaradas e descobrir horário e ponto de partida do coletivo que diariamente faz viagens  com passageiros talvez mais avisados do que eu, com o mesmo destino que escolhi. Se não descobri isso antes, foi por impaciência mesmo. Porque se as empresas divulgassem o trajeto dos ônibus e horários certos da passagem pelas paradas, tudo seria bem mais simples. E seguro.