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Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Saturday, May 24, 2008

No livro de Robert Mauzi, L'Idée de bonheur dans la littératura et la pensée fraçaise au XVIIIe. siécle, Albin Michel, 1979, pp. 261/262. Está a seguinte citação que em 1738 Mirabeau faz em carta ao amigo Vauvenargues, sobre os princípios que norteiam a sua conduta:

- desfazer-se de preconceitos,
- preferir a alegria aos humores,
- seguir as suas inclinações... Ao mesmo tempo em que as expurga.

A fora o entusiasmo juvenil, Mirabeau reinventava a felicidade do homem de sua época. Antes dele, outros fizeram muito mais preocupados com a salvação da alma. Vide Santo Agostinho. Como bem descreve Pascal Bruckner em seu A Euforia Perpétua, "no seu tempo... enumerava nada menos que 289 opiniões diferentes sobre o assunto, o século XVIII consagrou-lhe cerca de 50 tratados e nós não cessamos de projetar sobre os tempos antigos ou sobre outras culturas concepções e obsessões que só a nós pertencem."Pascal pontua, desde o início (p.13) os lugares onde nós situamos essa felicidade:

"Tanto existe felicidade na ação como na contemplação, na lama como nos sentidos, na prosperidade como na penúria, na virtude como no pecado." E relembra Diderot:"As teorias sobre a felicidade, mais não explicam que a história daqueles que as elaboram. É uma outra história a que nos interessa: a da vontade de felicidade como paixão própria do Ocidente desde as revoluções Francesa e Americana".

Para logo depois destacar os paradoxos que enfrenta o projeto de ser feliz:

1. Versa sobre um objeto de tal modo fluido que se torna intimidatório dada toda sua imprecisão

2. Desemboca no tédio ou na apatia a partir do momento em que se realiza (no sentido de que a felicidade ideal seria uma felicidade sempre saciada, sempre renascida que evitaria a dupla pena da frustração e da plenitude).

3. Enfim, ilude o sofrimento ao ponto de se encontrar desarmado perante ele a partir do momento em que surge.

Pascal desenvolve cada um desses tópicos: "No primeiro caso a própria abstração da felicidade explica a sua sedução e a angústia que origina. Não somente desconfiamos dos paraísos pré-fabricados como nunca estamos seguros de sermos verdadeiramente felizes. Querer saber se o somos é já sinal de o não sermos.

Daí que a predileção por este estado se encontre também ligada a dois comportamentos, o conformismo e a inveja, as doenças conjuntas da cultura democrática: o alinhamento pelos prazeres majoritários, a atração pelos eleitos que a sorte parece ter favorecido".

O segundo tópico, Bruckner entende o conceito na sua forma laica, mais contemporânea, usando a Europa como ambiente, nominando o efeito de "advento da banalidade":

"esse regime temporal que surgiu com o dealbar dos tempos modernos e viu triunfar a vida profana, reduzida ao seu prosaísmo, após a retirada de Deus.

A banalidade ou a vitória da ordem burguesa: mediocridade, sensaboria, vulgaridade."Finalmente, examina o 3o. Ponto: a dor.

"Por último, tal objetivo, visando eliminar a dor, substitui-a apesar de tudo no âmago do sistema. Ainda que o homem de hoje igualmente sofra por não querer mais sofre, como também se pode adoecer à força de procurar a saúde perfeita.

O nosso tempo conta-nos uma estranha fábula: a de uma sociedade dedicada ao hedonismo, para a qual tudo se torna causa de irritação e de suplício". E sentencia:"A infelicidade não é só a infelicidade: é, ainda pior, o fracasso da felicidade".

Pascal Bruckner conclui então, com o que compreende por "dever de felicidade":"essa ideologia própria da segunda metade do século XX e que conduz a tudo avaliar sob o prisma do prazer e do desagrado, esse convite à euforia que lança no opróbrio e na dor os que não lhe correspondem.

Duplo postulado: por um lado, tirar o melhor partido da vida; pelo outro, afligir-se, penalizar-se por tal não ser conseguido."Além dos múltiplos significados do Bem Supremo e idéias fixados (saúde, riqueza, corpo, conforto, bem-estar e outros "talismãs"), Pascal lembra que "contrariamente ao lugar-comum sem descanso repetido desde Aristóteles não é verdade que todos nós procuraríamos a felicidade, valor ocidental e historicamente datado.

Outros existem como liberdade, justiça, amor, amizade que ganham supremacia sobre ela".E ainda pergunta:"E como saber o que todos os homens procuram desde a origem dos tempos sem cair em generalidades vagas?"

RESPOSTA: "Não se trata de estar contra a felicidade mas sim contra a transformação desse frágil sentimento num pensamento coletivo estupidificante perante o qual todos se deverão inclinar nos aspectos químicos, espirituais, psicológicos, informáticos, religiosos. Os saberes e as ciências mais elaborados devem confessar a sua importância para garantirem a felicidade aos povos e aos indivíduos".

Ao jovem Mirabeau e seus "postulados", segue o recado subversivo: "amo demais a vida para não querer ser feliz!".

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