Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Tuesday, August 28, 2007

É lindo, comovente, fascinante, perdoem, o "modo" como Clarice cita o Recife com enorme carinho, nos seus escritos. Eu, de minha parte, estou cada vez mais encantada com a seleção de "coisas soltas nas gavetas", ajuntadas no livro Aprendendo a Viver (Rocco,2004).
E, digo logo, 2004 foi o ano em que insisti com a professora Zuleide Duarte, na sala de aula e na monografia, sobre A Felicidade em Clarice Lispector. (Eu e minhas teimosias...).
A querida e muito paciente, professora que tornou-se minha orientadora e generosa ofereceu uma homenagem à Clarice na nossa turma. Zuleide, não posso deixar de dizer - é doutora em Literatura, especialista na obra de Florbela Espanca, merecedora de inesquecível convite do Governo de Portugual para a marcar o centenário da intensa e "tinta" - como maravilhoso vinho raro - de Florbela.

Veja e diga por você, por aí:

VIAGEM DE TREM

Devo ter viajado de trem da Ucrânia para a Romênia e desta para Hamburgo. Nada sei, recém-nascida que eu era.

Mas me lembro de uma memorável viagem de trem, com 11 anos de idade, de Recife a Maceió, com meu pai. Eu já era altinha, e pelo que se revelou, já meio mocinha. Na viagem de ida - quase um dia inteiro - um rapaz de seus 18 anos, lindo de morrer e que comeu no mínimo uma dúzia de laranjas, e que tinha olhos verdes pestanudos de preto, simplesmente veio pedir licença a meu pai para ficar conversando comigo. Meu pai disse que sim. Eu não cabia em mim de emoção: namorarmos o tempo todo sob o olhar aparentemente distraído de meu pai.
Em Maceió, onde íamos ficar um dia apenas, aconteceu outro milagre. Houve uma festa dada para meu pai. E havia lá um menino de 13 anos, considerado marginal. Contava-se que, uma vez, à saída de uma festa, acompanhando uma senhora de noite para casa, beliscara-lhe o braço. Pois esse menino me quis. E me pediu para passeas com ele. Eu era completamente inocente, mas instintivamente compreendi alguma coisa e disse que não. Tomou meu endereço em Recife e recebi dele um cartão-postal todo florido, com palavras de amor. Perdi o cartão, perdi o amor. Ficou-me a lembrança. A volta foi no dia seguinte à festa - todos na estação, inclusive o menino marginal - e sei que alguma coisa aconteceu também bouleversante mas não me lembro o quê.

São memórias, precisas. E segredo, mantido, do "modo" Clarice. O não dito, de tanto valor. Inclusive com o Recife. Reparem, começa a falar pela viagem de trem em recém-nascida. Da qual não lembra, pela condição do recém-nascimento...




Aprendendo a viver (Rocco, 2004, pág.120)

1 comment:

Nata said...

Preciso retomar as minhas leituras de Clarice. Começarei com essa indicação!

Adooorei este espaço! Beijo e boa semana!