Fotografia de tio
Olho para a janela do quarto e lá está ele. Em sua hospedaria dos Tempos Perdidos. Esse tio me ensinou a amar os livros, além do amor que já estava em mim. Ensinou-me o primeiro sentido sobre a leitura. Concordo ao ler seu amigo com nome que lembra “coquetel” escrever sobre sua cadência. Um escritor que se submete apenas à noite e ao mel. Com um desejo de felicidade cego, insensato e frenético. Que ora soa como hino, ora como elegia. Este é meu tio!
Em sua escrita identifico a sua busca por uma canção suprema. Sem precedentes. Um auge de beatitude. Em outros instantes percebo que se doz de forma a ensinar o valor da dor. Do empenho, do trabalho árduo, do sofrimento. A felicidade que só brota do grande esforço da semente e desabrocha como um poema lírico a invadir a floresta encantada da recordação.
Seu duplo impulso de felicidade ligou – me ao essencial. Conectou – me ao mais profundo da compreensão daquilo que pode habitar o pensamento em sentimentos humanos de suas próprias memórias. Descreve a alegria de esconder –se por trás da página até ouvir sentenças como “feche o livro, é hora do jantar”. O mesmo sentimento de grande esforço me invadia. Eu me escondia, meu querido tio. Procurava a árvore mais esquecida, subia nela. Ou ia até a torre erguida no terreno da casa e deixava que chamassem meu nome.
Como sua escrita como um biscoito agora, ao ouvir suas histórias de cocheiro e bebo o vinho tinto quente que quase derrama em meu colo no vai e vem da carruagem. Atravesso em sua companhia a ponte do nosso sonho em comum. Não é idêntico, mas semelhante.
Suas palavras em textos tecidos são a manta que me aquece agora. Nessa noite fria de nenhuma outra parecida. Não canso de preencher minha mochila de boas leituras como as tuas. Tecer bonitos bordados das melhores lembranças desenhadas por ti. Chego a sentir novamente o sabor do vinho quente com biscoitos que me ofereceste tão ternamente em noites frias.
Enquanto chacoalha a diligência que guias em terreno de sobressaltos sacode meu raciocínio e fico às voltas com o reconhecimento da ausência de um número. Sua paixão pelas figuras mais ternas também não me escapa. Não são comensais, mas as mais penetrantes e íntimas estruturas humanas que se confundem com as folhagens dos palacetes. Hipnotiza – me com a descrição dos ambientes em que diverte –se com o gosto por cerimônias e outros lazeres em suas colocações irônicas.
Seu apreço por descrever os prazeres desse grupo pequeno e organizado. Duro e simples em sua lógica dominante, que meu querido tio critica e analisa de forma verdadeira porque identifica seus defeitos e preconceitos em esnobismo. A tolice dos seus pressupostos. Amo sua liberdade e seu esforço de resistir à falta de fôlego. Suas crenças, sua atitude isenta em desenhar revelando o que está por dentro de todo esse ambiente em que viveu e reproduziu.
Deu – me a chance de mergulhos profundos em seus momentos de reminiscências de belas imagens. Quando também pude comer até o caroço de suas lembranças como a uma fruta doce que saboreei até o grão.
Castanha do pé de caju do sítio onde morei em tenra idade. Suas imagens me levaram a Paris várias vezes. Tanto que impregnaram em minha imagem e muitos me reconhecem como alguém que já havia estado na cidade. Até hoje ainda duvidam quando afirmo conhecer bem meu país. Foram os cenários que tão bem descreveste e comi. E impregnaram em mim.
Como cheiros e perfumes. Bebi como um recém – nascido bebe o leite saído do peito da mãe. Gostoso inesquecível a alimentar minha vida, então, tão insípida e abstraída de outros prazeres. Queira entender de tais prazeres e odores e a aura de abstração criada por ti encaixava em mim. Como uma manta me aquecer e cobrir meu corpo de menina aos onze anos.
Partilho hoje da tua falta de fôlego, meu terno tio. Porque, apesar de tudo, também me ergui e amei nessa vida. Também me dei aos tombos, aos valores perdidos de palpitações sinceras. Frases pensadas e não menos legítimas. Quanto pensar contigo aprendi. Ao ingressar no teu universo de dedicação ao indizível aprendi a conter a respiração e segurar pelo tempo que pudesse.
Tudo para recriar a realidade dos homens. Comungo da certeza de que também o fôlego me faltará no instante da morte. Também meus pulmões e todo meu sistema respiratório. Meu corpo inteiro não poderá conter o sopro intenso do desejo de recriação do mundo.
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