Um pequeno trecho da página 28, do romance A Maçã no Escuro, faz refletir sobre quem são os personagens da trama de Clarice:
"O pássaro tremia todo (no parágrafo anterior confessara que seria negro e estava pousado num ramo baixo, à altura de seus olhos) na concha da mão sem ousar piar. O homem olhou com uma curiosidade grosseira e indiscreta a coisa na sua mão como se tivesse aprisionado um punhado de asas vivas. Aos poucos o pequeno corpo dominado deixou de tremer e os olhos miúdos se fecharam com uma doçura de fêmea".
O parágrafo continua. Mas eu precisava vê-lo encerrando aqui. Mas continua:
"Agora, contra os dedos extremamente auditivos do homem, somente a batida diminuta e célere do coração indicou que a ave não morrera e que o aconchego a resignara enfim a descansar".
Mais ainda. Sempre para o alto:
"Espantado com a perfeição automática do que lhe estava acontecendo, o homem rosnou olhando para o pequeno bicho - a satisfação fê-lo rir alto, com a cabeça inclinada para trás, o que fez sua cara defrontar o grande sol. Depois deixou de rir como se isso tivesse sido uma heresia".
Certo. Estou acompanhando serenamente:
"E compenetrado com sua tarefa, a mão semicerrada deixando de fora apenas a cabeça dura e aguda da ave, o homem recomeçou a andar com muita força tomando conta do companheiro. A única coisa que nele pensava era o ruído dos próprios sapatos ecoando na cabeça que o sol agora tranquilamente incendiava".
Se não estar a pensar na plenitude do ser. Na completude do espírito, sobre o quê Clarice está a perscrutar?
"E em breve, com a sequência dos passos, de novo o gosto físico de estar andando começou a tomá-lo, e também um prazer mal discernido como se ele tivesse ingerido uma droga afrodisíaca que o fizesse querer não uma mulher, mas responder ao tremor do sol".
Vamos compreender agora o valor que está no humano e para além do humano:
"Nunca estivera tão perto do sol, e andava cada vez mais depressa segurando à frente de si a ave como se fosse levá-la antes que o correio fechasse. A vaga missão o inebriava. A leveza que vinha da sede, de repente tomou-o em êxtase:
- É, sim! disse alto e sem sentido, e parecia cada vez mais glorioso como se fosse cair morto".
Já na página 29, sinto que brinca comigo:
"Então repetiu com inesperada certeza: "é sim!" Cada vez que dizia essas palavras estava convencido de que aludia a alguma coisa. Fez mesmo um gesto de generosidade e largueza com a mão que segurava o passarinho, e magnânimo pensou: "eles não sabem a que estou me referindo".
(riu Clarice - risos)
Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.
Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz
Tuesday, December 18, 2012
Monday, December 03, 2012
Górgias e a Retórica (por Sócrates)
IV — Sócrates — Então, comecemos. Já que te apresentas como entendido na arte da retórica e também como capaz de formar oradores: em que consiste particularmente a arte da retórica? Assim, por exemplo, a arte do tecelão se ocupa com o preparo das roupas, não é verdade?
Górgias — Sim.
Sócrates — E a música, com a composição do canto?
Górgias — Sim.
Sócrates — Por Hera, Górgias! Tuas respostas me agradam; mais concisas não poderiam ser.
Górgias — Eu também, Sócrates, acho que estou respondendo como é preciso.
Sócrates — Dizes bem. Então, responde -me da mesma forma a respeito da retórica: Qual é o objeto particular do seu conhecimento?
Górgias — Os discursos.
Sócrates — De que discursos, Górgias? Porventura os que indicam aos doentes o regime a ser seguido para sararem?
Górgias — Não.
Sócrates — Logo, a retórica não diz respeito a todos os discursos.
Górgias — É claro que não.
Sócrates — No entanto, ela ensina a falar.
Górgias — Sim.
Sócrates — E, por conseguinte, também a compreender os assuntos sobre que ensina a falar.
Górgias — Como não?
Sócrates — E a medicina, a que nos referimos há pouco, não deixa também os doentes capazes de pensar e de falar?
Górgias — Necessariamente.
Sócrates — Sendo assim, a medicina, ao que parece, também se ocupa com discursos?
Górgias — Sim.
Sócrates — Os que se referem às doenças?
Górgias — Exatamente.Sócrates — E a ginástica, não se ocupará também com discursos relativos à boa ou má disposição do corpo?
Górgias — Sem dúvida.
Sócrates — O mesmo se dá com as demais artes, Górgias, ocupando-se cada uma com
discursos relativos ao objeto de que seja propriamente arte.
Górgias — É evidente.
Sócrates — Então, por que não dás o nome de retó rica às outras artes, se todas ela s se
ocupam com discursos, e chamas à retórica arte dos discursos?
Górgias — É porque nas outras artes, Sócrates, todo o conhecimento, por assim dizer,
diz respeito a trabalhos manuais ou a práticas do mesmo tipo, ao passo que a retórica nada
tem que ver com a atividade das mãos, sendo alcançados por meio de discursos todos os seus
atos e realizações. E por isso que eu considero a retórica arte do discurso, e com razão,
segundo penso.
(...)
Górgias — O fato de por meio da palavra poderem convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política. Com semelhante poder, farás do médico teu escravo, e do pedótriba teu escravo, tornando-se manifesto que o tal economista não acumula riqueza para si próprio, mas para ti, que sabes falar e convencer as multidões.
VIII — Sócrates — Quer parecer-me, Górgias, que explicaste suficientemente o em que consiste para ti a arte da retórica. Se bem te compreendi, afirmaste ser a retórica a mestra da persuasão, e que todo o seu esforço e exclusiva finalidade visa apenas a esse objetivo. Ou tens mas alguma coisa a acrescentar sobre o poder da retórica, além de levar a persuasão à alma dos ouvintes?
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/gorgias.pdf
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