Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Thursday, August 05, 2010

Atire*




- Atire! Bem aqui. – E abriu o plexo, apontando para o peito.

O assaltante congelou. Por um segundo reviu todas as mortes de sua autoria... Todos os dias milhares morrem assim. Ela era só mais uma. A diferença é que essa aí, na sua frente, queria.

- Por favor, eu lhe peço, aperte logo o gatilho... Meta logo. Vamos com isso!

Um movimento de dedo apenas e ela cairia estendida. Não respondeu. Não quis dessa vez.

- Lapa de doida... Onde já se viu? Passava vinte reais. Dá vinte pedras, sabia? Disse o comparsa.

- Matar a pedido sai mais caro, dona. – E foi baixando o cano.

- E por que não mata? Vai ser menos um jornalista.

- Até matava de graça. Mas já que a senhora pediu, só pagando.

- Vamos embora daqui. – Olhou para ela como quem reconhecia – É aquela mulher da televisão... Deixa pra outro. Ela é cana certa.

- Covardes!

- E a senhora é lá corajosa...?

Ironia. Foram embora não sem olhar para ela nos olhos.

...

- Não levaram sequer os vinte reais?

- Era tudo o que tinha. Dinheiro, aliás, que acabamos de beber depois de mais essa cerveja...

Já estava na mesa do bar de sempre e repassava o episódio entre conhecidos. Sua ‘mesura’ não saia da cabeça. Onde foram parar as ligações que tinha. O amor que sentia pelos filhos adolescentes, ainda, e pais em idade avançada? Não sabia. Tudo que sabia é que não conseguia voltar para casa. O dinheiro era para o taxi. E não mais o tinha. Não teria também onde morar dali a dois meses. Morar na casa dos pais nessa idade? E todos os horários de colégio, atividade extraclasse, terapia...?

Estava n’outro beco sem saída muito pior que aquele de onde os assaltantes evadiram. Onde sua morte não se deu. E não virou notícia de pé de página de algum jornal da cidade. Ainda não compreendera o desprendimento, tamanho desapego e aquela ousadia... O certo é que funcionou errado. Diferente do que queria. Ia ter que enfrentar a mudança. As contas e o imposto de renda até o final do mês que nunca soube mesmo, no seu caso, para que servia.

Nenhum bem. O carro vendeu para pagar outras dívidas há uns de sete anos. Divorciada. Porque é mais chic que ser separada. Dois filhos e uma coleção de relações desastrosas. Findas em noites de discussões descabidas. Ainda tinha que terminar de empacotar os livros. Depois de dez caixas preenchidas, havia mais. Discos, um mesa, um computador. Uma tevê dos bons tempos. Um guarda-roupa novo, do ponto vermelho. Fogão e geladeira da época do casamento. E uma tuia de quadros, fotos, álbuns, recortes de jornal e coleções de revistas de moda e decoração. Fortuna nenhuma. Poupança nenhuma! Esperava pelo seguro desemprego e pela primeira vez estava há quatro meses sem nenhum ‘trampo’. Nenhum ‘freela’. Nada que pagasse a subsistência. E se pintasse algum talvez sobrasse para pôr comida na dispensa, pagasse a conta da luz e os cigarros que cada vez consumia mais e mais.

Em outras épocas, depois de uma situação daquelas, loucamente ligaria para os filhos. Diria: “Como estão meus amores, mainha pensa muito em vocês”. E com a voz disfarçando o medo, segurava o choro e o desespero porque no fundo queria mesmo estar viva para vê-los formados, trabalhando no que escolheram. Quem sabe até encontrando um amor de verdade. Vestiria azul nos quinze anos da filha. Ou calçaria havaianas na festa de enlace que fariam à beira mar em homenagem a Lorelai. Não pensou em nada disso.

- Vamos logo com isso. – Lembrou que insistiu.

- Ia precisar de algumas sessões de terapia para compreender seu impulso. Seu desapego chegara nesse nível? Por quê? Quais os motivos? Não deveria ser uma questão isolada. Se fosse, teria assumido essa dimensão na sua vida para querer dar fim a ela? Não justifica reagir a um assalto... Quanto mais pedir para ser morta. Ainda bem que estava sozinha. Não comprometera a vida de ninguém mais. Alguém que, certamente, nunca a perdoaria.

- O que torna tão difícil estar viva?

A terapeuta perguntava sem grandes entusiasmos pela aventura que a paciente acabara de contar.

- Ou ainda, do que você está querendo fugir?

- Não sei mais o que pode dignificar ou corresponder ao que já fui um dia.

- Não me diga que não tem mais nenhum sonho. Não preparou seu plano?

- Talvez não. Talvez seja um sonho de brasileiro mediano. Como esperar pelo carnaval e pintar o rosto. Talvez pintar a cara da morte na minha cara triste.

- Não me parece totalmente triste. Sua ousadia é destrutiva, um bocado, mas isso é porque acha que pode. É sua aposta. Muito alta, mas é uma aposta.

- Não foi por empáfia. Saiu como um bicho de dentro de mim. Um animal sem controle.

- Embora isso tenha lhe oferecido o controle da situação...

- Ainda não havia pensado por este lado. Daí dizerem que os humilhados serão exaltados. Ação e reação e direito de réplica, tréplica...

- A ofensa é movida pela descrença na reação do outro.

- Talvez esteja também ansiosa?

- Posso saber pelo quê? Se o desejo era a morte, o que estaria esperando?

...

Saudade do futuro? Desejo de reencontrar o passado. Perder a linha é como ser devorado por seu próprio Minotauro.

- Por que, às vezes, o que era estrada vira labirinto? Não minto que deixei para depois. E fui ficando sem o olhar que é meu mesmo. Adotei o do outro, que nem sempre compreende. Atire-se, deveria ter sido a frase. Ao invés disso...

- Atiro-me!



*texto que espero ver publicado no portal http://www.interpoetica.com/

2 comments:

janecavalcanti said...

Estou impactada com o realismo da narrativa!!!
Ela traz as angústias e medos da mulher contemporânea numa expressiva veracidade.
Alma nua e crua, rasgada, exposta...
Parabéns!!!
Jane Cavalcanti

Geórgia Alves said...

Agora vi:) Adorei a análise. Grata pelo comentário! beijo