Espelhos
Sempre me perguntam, quando sabem da minha afeição pelos escritos de Clarice, se li também Cecília. Sim, bem menos do que gostaria, é verdade, mas fiquei pálida e opaca muitas vezes diante de suas franquezas. É límpida, para dizer o mínimo. E inspira.
Gosto, em particular, da idéia de não se reconhecer diante do espelho e das crônicaas "Ilusões do Mundo":
Moça procura emprego em particular.
"A história (que) começa no sertão com um casamento de amor. O homem é um ingrato, na verdade, mas é a fina flor da elegância e da sedução jamais desabrochada léguas e léguas em redor... Dessa perfeição de homem lhe nascem muitos filhos, dos quais sobram apenas uns dois ou três barrigudinhos, que ela não pode alimentar nem vestir, porque o pai não se considera responsável pelas despesas da casa. O que ganha gasta consigo, pois é pessoa muito exigente: só anda de terno branco, muito bem engomado, chapéu Panamá, sapatos de camurça e óculos ray-ban..."
E continua:
"Um tipo irresistível. As mocinhas correm atrás dele, desfolham-se aos seus pés. Ninguém acredita que não seja rapaz solteiro".
Vamos com essa franqueza até na conclusão do perfil da personagem em questão.
"Mas esse homem fabuloso, que até parece um artista de cinema, é injusto e desigual: fora de casa, todo açúcar, fala tão bonito que parece um doutor. Dentro de casa, espanca a mulher e os filhos que, afinal, apavorados, mal o vêem assomar ao longe, pulam a janela para se esconderem no mato".
E vaí por aí, nessa simplicidade, o enredo da tal moça que cansa dos saltos, entrega as crianças a avó e passagem num caminham. Acaba indo pro Rio, onde consta há empregos para todo mundo e arranha-céus de graça para os pobres. Que ela não encontra para si, mas lugar um moço da sua terra, muito bonzinho e não tão elegante, mas que trabalha de dia num bar e estuda numa escola noturna. Casa à moda dos pobres, sem papéis ou cerimônia. Por derradeiro tem como qualidade aceitar os filhos do outro.
Mais que motivo para ela botar dinheiro em casa. Consegue contando sua história a ajuda de uma dona que aposta na sua sinceridade e devoção aos barrigudinhos e de quem não quer abusar da bondade do marido. Logo descobre que tudo naquela terra difere do seu sertão de onde adquiriu o costume de ir "munida de um embrulhinho amarrotado, com a sua farrinha-d'água: como se fosse para uma expedição. Só não traz a carne de cabrito 'ainda pulante' porque não é coisa que se encontre por aqui". Enquanto trabalha comendo sua "bendita farinha" dá-se a quebrar bicos de bules e asas de xícaras, beiras de copos epratos...". Ainda tem por defeito, no auge do entusiasmo, assoviar... Resultado:
No fim do mês já penas em pedir férias pois está morta de saudade. Passaram-se somente duas semanas e tudo está mudado... "A carne de cabrito já não era pulante; o café sabia a ferrugem; a farinha
"Só as crianças continuavam amarelas e barrigudinhas. A velhota muito cansada. E o marido, a viajar pelos sertões, namorando sempre, à sombra do chapéu e dos seus óculos..."
Ao final, Cecília, nessa simplicidade e franqueza conclui descrevendo que segue a vida voltando ao serviço pensando em ir para a escola noturna aprender a ler melhor, e arranjar um emprego público. Todos lhe dizem que é o emprego melhor e mais fácil do Brasil!
Esta é a doce e terna professora Cecília.
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