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Wednesday, September 12, 2007

Clarice: O Xamã de Fogo

A crítica Lúcia Peixoto Cherem, em dossiê apresentado no começo deste ano, na revista Entrelinhas, escreve que “Tanto Hélène Cixous quanto Claire Varin têm de Clarice Lispector uma leitura bastante subjetiva”. Relação que se diz perigosa, facilmente apreendida na leitura de Clarin Varin. O que deixa professores de metodologia científica de cabelos em pé e aconselhar ao iniciado: “afaste-se de Clarice!”. A pergunta é: Como? E é um mistério responder. Se a força descrita nas palavras desse “Xamã” da atualidade, nos transporta para uma vida pré-humana divina “de uma atualidade que queima” é “de uma certa alegria cega e já feroz que começava a me tomar. E a me perder”.


Nas palavras G.H., e supõe-se a personagem mais distante do leitor da própria Clarice. E diz-se Xamã no sentido que diz Joseph Campbell; “homem ou mulher, que no final da infância ou no início da juventude, passa por uma experiência psicológica transfiguradora, que a leva a se voltar inteiramente para dentro de si mesma... Experiência xamânica ao longo de todo o caminho que vai da Sibéria às Américas, até a Terra do Fogo”. Desavisado, o jornalista Bill Moyers pergunta: “E o êxtase faz parte dela?” Para a afirmativa de Campbell. Em Clarice, há o êxtase no todo.


Línguas de Fogo - De Claire Varin


“Línguas de Fogo: Ensaio sobre Clarice Lispector”, da canadense Claire Varin, (Editora Limiar, 2002) revela as relações que a autora ucraniana, naturalizada brasileira e de origem judaica mantinha com o Português e outras línguas, não apenas as européias, durante o tempo que morou no exterior com o marido diplomata, como também o Iídiche (língua que já foi falada por 11 milhões de judeus no mundo, já naquela época, restrita a comunidades ortodoxas).


Claire Varin, nascida em Montreal, no Quebec embarca na viagem de refazer os lugares por onde esteve Clarice. Conquistou a confiança de Elisa Lispector, a irmã mais velha e também escritora, já falecida. “Clarice não falava outra língua além do português em casa?”. Não, lacônico, é a resposta de Elisa que acaba por revelar, que os pais falavam iídiche em casa e conceder-lhe o manuscrito: “Vivo ‘de ouvido’, vivo de ter ouvido falar”.


De onde pode afirmar que Clarice Lispector “sonha acordada com as palavras”. Prova com trecho do livro Perto do Coração Selvagem em que a personagem Joana confidencia ao seu amante que Lalande é dessas “inventadas”. Diz que gostava de brincar com elas tardes inteiras e que a tal palavra “é como lágrima de anjo” e “é também mar de madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia, quando o sol nasceu”. Para Varian, Lalande é o lugar de origem da menina que ouvia o iídiche, é “a terra mãe desconhecida, sentida e reconhecida”. Cita, então, “terra” em várias línguas: “land alemã e inglesa, lande francesa onde só crescem certas plantas selvagens e dos land, o pais nomeado na própria língua materna de Clarice”.


Revelação que está na página 27 (fazem bem os atentos aos números) como pedra de toque do seu livro que cita uma a uma os passos e obras de Clarice detalhando datas e outros números, bem mais específicos. A obra de Clarice é composta por oito romances, uma novela e oito livros de contos. “Línguas de Fogo: Ensaio sobre Clarice Lispector” ajuda o leitor a identificar a construção das seis pontas da estrela judaica pela exatidão dos intervalos exigidos para que cada livro seja publicado. Ou mesmo no número de páginas para compor cada conto, muitos com a ajuda de Olga Borelli.


Embora fossem as referências da menina, a escritora ocupou-se em domar a língua portuguesa, para Claire numa ansiedade de estrangeira que emprega a língua de adoção, “exigindo desta o máximo de adequação a seus pensamentos e sentimentos”. Pensamento reiterado nas palavras da própria Clarice; “Tentativa de sensibilizar a língua para que ela trema e estremeça e meu terremoto abra fendas assustadoras nessa língua livre – mas eu preso e em processo de que não tomo consciência e ele segue sem mim”, no livro Um Sopro de Vida. E que o máximo desse “cavalgar”.


O repertório da crítica literária traz análises de todas as obras, explorando trechos de “Perto do coração selvagem”, “Um Sopro de Vida”, “Descoberta do Mundo”, “A paixão segundo G.H.”, “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”, “Água Viva”, “A hora da estrela”, além dos contos. Dedica um capítulo à paixão de Clarice Lispector pelos números. Do testemunho de Olga Borelli de que, ao se tratar de um conto, dizia; “Dê um pouco de espaço para não passar da página 13”. E da ordem dos números na construção de autora que “no espaço entre seu 7º. E seu 17º. Anos amadureceu o primeiro de seus sete romances, numa década, símbolo da criação universal, segundo os pitagóricos”.


Dos dezenove capítulos da vida de Joana que irradiam fora do tempo cronológico, o que Varin explica em nota: A soma dos dois números (1+9) que compõem o número de capítulos é igual a 10, que nos leva novamente à totalidade, ao retorno à unidade após o fechamento do ciclo. Assim o décimo e último capítulo da segunda parte de Perto do Coração Selvagem intitula-se “A Viagem”; mostra-nos Joana ao cabo de um outro círculo de vida, sozinha sobre um barco “forte e bela como um jovem cavalo”.


É espantosa e finamente tensa a relação do detalhamento do texto e contexto de Clarice nas línguas de fogo de Varin. Não é possível evitar a sensação da extrema presença como na obra da escritora e professora da Sorbonne, Hélèlen Cixou, uma das grandes responsáveis pela maior recepção de Clarice nos outros países.


Claire Varin preocupa-se também com o universo ao redor que influencia e é influenciado por Clarice, que vai curando o Brasil do que Autran Dourado chamou de “solidão lingüística”. E que estamos distantes não apenas da Europa e da África, mas separados do resto da América do Sul hispânica. “Clarice não escapou à regra” – “Depois de ter bebido até se saciar nas fontes da cultura do Velho Continente – entre suas paixões literárias: Emily Brontë, Fiodos Dostoievski, Julien Green, Herman Hesse, Katherine Mansfield -, ela põe em destaque a questão das literaturas nacionais,”. Afirma que põe de lado a palavra vanguarda no seu sentido europeu, pensando, por exemplo, se o nosso movimento de 1922 seria considerado vanguarda por outros países.


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