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Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Wednesday, May 19, 2010

Recife Inverno


"Aceita um café? Vou buscar! Talvez tenha adoçado demais...". Bebo em solitude. Às vezes o Recife é tão triste quanto um pão francês dormido e mofado. Ali abandonado em seu saco de papel escuro de quem não serviu a banhar-se em leite e ser tornado fatia parida. Como diriam em mesas de natais; "feito rabanada"! Seu inverno é úmido e abafado.

Não fosse tão úmido e verde escuro estaria agora polvilhado em açúcar e canela. Serveria mais se fosse apenas um Recife duro. Faria sorrindo em rodelas a alegria de meninos e meninas em cafés da manhã de ternura, em festa! Com presença de carinho de mãe no jarro de vidro sobre a mesa.

Mas no seu inverno o Recife não é assim... É cigarro molhado, feito charco de cinco mil substâncias para matar ratos e baratas. Socorrer por baratos o sujeito incauto em beco coberto de marcas. É mais triste que abandono de recifense esquecido na parada pelo último ônibus que passa apressado.

É noite de perigo e o Recife nunca pôde dar abrigo definitivo aos que vão se desmanchando feito papel pelas encostas. Recife nunca pôde se dar de presente em caminhões de lata para crianças que aprendem cedo a brincar com aquilo que mata. Meninos e meninas que guardam seus desejos, sonhos de brinquedos, por minguados que faltam. É overdose de desespero, de pancada, de dor que não passa...

Recife, no inverno, às vezes não vai nem com o café mais adoçado do amigo vigilante que me espia escrevendo em bloquinhos no assento do carro. Não Recife, não bastará teu carnaval para me fazer feliz. Rezo pela cartilha de Neruda que me diz do homem, da mulher, do pão e do vinho. Da mesa, da morada...

Homeless que sou, me abrigo em lugares distintos. Um dia um, n'outro outro. E assisto a seu modo o Recife oferecer um sorriso ao me olhar no rosto, feito reconhecimento, e a um só tempo, me expulsar. Justo em momentos que nos faríamos quites. Não, eu não entendo. É meu amigo vigilante quem vem e consola minha fragilidade de osso exposto. De criatura feita de mola.

Eu que ora sou espicho, ora rolha. Espicho e encolho. Numa hora pingo, mergulho e afogo. Quem dera não tivesse sequer encharcado... Podeira apenas dizer como imagem da minha tristeza que me sinto um desses pássaros capturados, logo de manhãzinha, nas matas atlânticas de teus arredores, Recife.

Cruelmente, esses homens que não têm o que fazer, nem se darão ao trabalho, usam outros canários para atrair suas presas. É assim no sexto e em outros quilômetros da Aldeia. Testemunho em gritos de buzina para espantá-los. Mas a verdade é que não vou conseguir socorrê-los ou fazê-los correr dali. Fugir das arapucas montadas em cercas rentes ao pasto.

Capim que sou só me resta acender esse cigarro molhado, sacar o bloquinho enquanto espero o ônibus. Meu único brinquedo. Eu que perdi meu caminhão de lata... E beber com alguma alegria matutina o café "talvez adoçado demais" do meu amigo vigilante. Para quem agradeço num cumprimento tímido, sem abraço.

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