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Friday, March 27, 2015

O dia em que li Galera



A experiência de abrir um livro de Daniel Galera pode ser comparada a um soco no estômago. Para Machado como definição, o bom do conto. O fato de "O dia em que o cão morreu" ser do gênero romance, não mudou a sensação. 

A capacidade despretensiosa de envolver, a trama casual do casal, depois de Galera, como narrador, me abandonar,  propositadamente, no seu momento conclusivo não evitou a explosão, Sou do tempo de quem morre, mas não diz o final. Que preserva o leitor da entrega do creme do creme.

Não sei, até agora,  se contar o final da história de "O dia em que o cão morreu" pouparia algum leitor desavisado (ou espectador, já que pode ser conferida também em forma de filme). Aposto que não.

De São Geraldo a Leônia.


"A vitimização dificilmente humaniza suas vítimas. Ser vítima não garante um lugar nos píncaros da moral". Zygmunt Bauman

Como essa regra se aplica na cidade de São Geraldo, inventada por Clarice? O que entendemos por felicidade? Na cidade de Clarice, “Tudo que se via se tornava real”. Em carta à irmã Tânia, de Berna, na Suíça, falou sobre este que considerou o livro, que começou a ganhar forma no mês de julho do ano de 1948,  “mais difícil de escrever”, sob a explicação de que “existe uma exegese que eu não sou capaz de fazer. É um livro... eu estava perseguindo uma coisa e não tinha quem me dissesse o que é que estava perseguindo”.  Essa leitura minuciosa da intenção original não será mesmo feita por Clarice.

Segundo relato da biógrafa Nádia Battella Gotlib, de início não foi bem recebido. Mas alguns críticos que não gostaram dele logo, depois mudaram de opinião. Cita na biografia “Uma vida que se conta”, Santiago Dantas, que entende por relato da própria Clarice abriu o livro, leu e pensou – Coitada de Clarice! Ah! Caiu muito! Meses depois – ele teria contado a Nádia – considerou-o um dos melhores da autora.

Denso, fechado. Trata da formação de uma cidade, da formação de um ser humano dentro da cidade. Um subúrbio, em processo de crescimento. Ainda movido a cavalos. Por outro lado, onde se construiu uma ponte, se construiu o todo, de modo a não ser mais um subúrbio. Que é justo quando a personagem dá o fora.

Porque daria o fora o personagem quando a cidade cresceu e modificou. Justo quando não estava mais detida graças à presença das pontes? Porque o ser humano parte? E se exclui de um processo de crescimento num lugar para o qual foi destinado? Para Zygmunt Bauman “A derradeira sanção do poder soberano moderno resultou no direito de exclusão da humanidade”. Ele explica que poucos anos depois de Kant publicar suas conclusões sobre os destinos guiados pela razão, produziu um documento, mais curto, chamado a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”.

Zygmunt lembra que Giorgio Agamben foi quem observou duzentos anos depois, “não estar claro se “os dois termos – homem e cidadão – deveriam identificar duas realidades distintas” ou se, em vez disso, o primeiro deles sempre quis dizer “já contido no segundo “ – ou seja, o portador dos direitos era o homem que também fosse (ou na medida em que fosse) um cidadão. Hannah Arendt também teria identificado a falta de clareza e suas consequência, num mundo que “rapidamente se enchia de pessoas deslocadas”;

Será que não é justo sobre o sentimento de exclusão e de “estar deslocado” que trata o livro “A Cidade Sitiada”. Clarice conta na carta do dia 06 daquele julho de 48 que precisa que o livro saia dali:

“Você dê ao Lúcio Cardoso para ler. Ele talvez arranje editora para mim. Se não arranjar não tem importância. O que quero é que este livro saia daqui. Melhorá-lo é impossível para mim. E, além disso, preciso com urgência me ver livre dele. Quando você der o livro ao Lúcio, não fale para ele arranjar editora. Eu mesma escreverei talvez uma carta dizendo. Nem tenho coragem de pedir a você que o leia. Ele é tão cacete, sinceramente. E você talvez sofra em me dizer que não gosta e que tem pena de me ver literariamente perdida.... Enfim, faça o que você quiser, o que lhe custar menos. Espero um dia poder sair deste círculo vicioso em que minha “alma caiu”.

A história de Lucrécia Neves começa em São Geraldo, mas inclui um deslocamento.  Ela, filha de Ana, e ambas, tem por ofício o bordado e a costura. Ela, amiga de Perseu, sairá daqui porque vai casar com o estrangeiro Mateus. Escreve Clarice:

Suponho que a ligação de Perseu com o resto é que ele não precisava, como Lucrécia, de procurar a realidade – porque ele era a realidade, ele fazia parte da verdade”.

O livro ainda tem outros personagens como o pai, o médico Lucas, Efigênia. E uma que aparecerá depois: a mulher de preto. Que bem poderia ser a própria Lucrécia Neves, ao retornar a São Geraldo. Num reencontro com o amigo Perseu. 

Ainda na carta, Clarice relata: “A mulher de preto sentiu que ele era assim, e que era inalcançável por isso, como uma criança. Perseu era o que Lucrécia não conseguiu ser”.

A pesquisa de Nádia Battella ainda aponta para a análise que a autora faz da personagem dela, Efigênia. Pela qual Clarice manifesta entusiasmo dado traço de personalidade que lhe é caro: a personagem é. Em vez de pensar.

“Quanto ao fato de Efigênia ser invejada como pessoa, apesar de ser rústica – é mesmo pelo fato de ela não tomar parte no progresso de São Geraldo que ela adquire importância aos olhos dos outros. Os outros sentiam o perigo em São Geraldo progressista, e já tinham um pouco a nostalgia da volta à rusticidade. 

O trecho em destinado a Efigênia, além do mais, serve como preparação ao que vai se seguir: é um exemplo de uma pessoa que é a realidade, em vez de pensa-la. Ser a realidade é o máximo de espiritualidade, é "o único modo de como o espírito pode viver”.

Ora, uma percepção lógica da condição óbvia de que a vida para ser real, ela precisa ser vivida e não pensada. Hannah Arendt também cita Edmund Burke e sua antiga premonição, genuinamente profética, de que o maior perigo para a humanidade era a abstrata nudez de “não ser nada além de humana”.

O que a cidade de Leônia tem a ver com São Geraldo? Leônia, uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino, entre os seus habitantes, ergue-se sobre a lógica de que a paixão comum é “desfrutar coisas novas e diferentes”. Lucrécia, em São Geraldo, vive apenas de olhar as coisas. Mas essa forma de vida será rompida por um fato novo e marcante. Um casamento que salvará a família da falência e a levará para longe de São Geraldo.

Antes que isso lhe aconteça, e a obrigue a viver dessa decisão, e da paralisação que se segue, e que a levará a procurar o doutor Lucas, usava o próprio olhar para modificar as coisas. Fazia com a loja do pai, o primeiro andar, a fonte no centro da Praça de São Geraldo. “As coisas pareciam só desejar: aparecer – e nada mais. “Eu vejo” – Era apenas o que se podia dizer.

“Gostava de ficar na própria coisa: é alegre o sorriso alegre, é grande a cidade grande, é bonita a cara bonita – e era assim que se provava ser claro apenas o seu modo de ver. Até que, uma vez ou outra, via ainda mais perfeito: a cidade é a cidade. Faltava-lhe ainda, ao espírito grosseiro, a apuração final para poder ver apenas como se dissesse: cidade”.