Um sopro levinho de vento paginou as folhinhas prateadas do calendário sobre a prateleira da sala, em frente à janela. Um sopro mais forte, vindo do norte, derrubou a estruturade papelão e couché cheia de fotos de lugares bonitos... Abriu-se no mês de maio como que para sempre. Dali desviei os olhos do romance policial de autora conhecida e enxerguei o que ainda não vira. Já passados vinte e sete dias do mês. Mania triste essa: esquecer de virar as folhinhas!
O dia 25 estava lá. Grifado com uma cor fluorescente. Há 69 anos, uma jovem de apenas 19 (ou 20, quem sabe?) via publicado no semanário carioca Pan, o seu primeiro conto. Era 25 de maio de 1940. Anos curiosos aqueles... E o editor e criador do semanário sabia disso. Italiano! José Scortecci. E foi a partir do dia 26 de dezembro de 1935. Aliás, sobre a revista, tanto se falou àquela época para o tão pouco que hoje se sabe.
Ignorância sobre uma editoria e uma imprensa livre que fez por outra obrigada seu guia a publicar esclarecimentos. Numa elegância também inovadora para o período. Vida a edição publicada em 19 de março de 1936, na qual Scortecci reafirmava: “Novamente nos vemos obrigados a declarar que a revista PAN é completamente independente; não pertence ela a nenhum partido político, não defende, nem ataca idéias de nenhuma índole”.
Com colaboradores como Silveira Bueno (com a coluna "Cartas de Amor" e o pseudônimo de Frei Francisco da Simplicidade e outra chamada "Lições de Português", também ia ar pela Rádio Difusora de São Paulo); o escritor de livros infantis Monteiro Lobato (nas páginas da revista um engajado na luta a favor da nacionalização do Petróleo); o escritor e poeta Menoti del Picchia, titular da seção “O Imperativo da Hora”, com comentários políticos e dos costumes da época.
Além de Benjamin Costallat, numa criativa e ousada investida escrevia sua ” Mademoiselle Cinema”, livro logo recolhido como pornográfico e escandaloso depois de vender 60 mil exemplares. "Sua verve ácida e ao mesmo tempo bem humorada, era a pena que melhor retratava, naquele tempo, as contradições da vida social e mundana do Rio de Janeiro" explica publicação "Amigos do Livro".
Com todos esses e outros mais, o neto de Scortecci, João Scortecci, que foi Diretor da União Brasileira de Escritores, vice presidente da Câmara Brasileira do Livro e conselheiro do Ministério da Cultura, hoja na CNIC (Câmara Nacional de Incentivo à Cultura), filho de Luiz Gonzaga, fã incondicional de coleções editoriais e dicionários e Nilce Scortecci apaixonada pelas obras completas de Carlos Lacerda sobre a publicação - de forma resumida - diz "que teve a honra de publicar o texto de estréia "triunfo" de Clarice Lispector".
O conto foi a primeira visão da expressiva escrita daquela jovem que por tantas vezes tentou implacar suas histórias que nunca começavam com "era uma vez" no Diário das Creanças, do Diário de Pernambuco. Ela que tantas vezes disfarçou a própria idade para ser aceita nesses lugares que, em propriedade, já estavam nela.
Confesso que minha extremada autocrítica ameçou não perdoar-me e entregar o texto, pelos dois dias de atraso. Não fosse aquele vento mais forte derrubando o calendário... Um outro lado meu insurgente argumenta enquanto escrevo essa última linha:"não pode ter se antecipado em um ano?". Outra mania que não gerou em mim, mas em minha entorpecida mãe queixumes dos quais minha memória auditiva tem registro desde a mais doce infância.