De Luís Fernando Veríssimo: Clarice!
Em 1953 meu pai foi dirigir o Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos.
Fomos morar em Wahington, uma aborrecida cidade burocrática, no começo da era Eisenhower. O diplomata Mauri Gurgel Valente e sua mulher Clarice estavam lá com os dois filho, Pedro e Paulo, e foram os primeiros brasileiros a dar as boas-vindas aos recém-chegados. Eles seriam os melhores amigos dos meus pais nos quatro anos em que ficamos em Washington. Clarice e minha mãe, que não poderiam ter personalidades mais diferentes, tornaram-se amigas de infância. E sem que houvesse qualquer cerimônia, meus pais foram designados padrinhos extra-oficiais do filho mais moço dos Valente, o Paulo.
(Uma vez fui levar a Clarice e os dois meninos em casa de carro na chegada o Paulinho perguntou: "Não quer entrar para tomar um cafezinho?" Grande surpresa. Ele mal começara a falar, era provavelmente a primeira frase inteira que dizia.) Várias fotografias da Clarice, inclusive algumas que têm saído na imprensa, foram tiradas pelo meu pai durante o convívio dos dois casais naqueles anos americanos. Também houve uma designação do meu pai como fotógrafo exclusivo extra-oficial da Clarice.
Eu tinha 16 anos quando chegamos a Washington e a minha primeira impressão da Clarice foi a de todo mundo: fascinação. Com a sua beleza eslava, os olhos meio asiáticos, o erre carregado que dava um mistério especial à sua fala, e ao mesmo tempo com seu humor, e seu jeito de garotona ainda desacostumada com o tamanho do próprio corpo. O fato de que aquela Clarice era a Clarice Lispector não me dizia muito. Eu sabia que era uma escritora meio complicada, nunca tinha lido nada dela. Só quando voltamos ao Brasil li O Lustre, Perto do Coração Selvagem e, depois, os contos, extraordinários. "A Legião Estrangeira", "Amor", "Uma Galinha", "Macacos", "Laços de Família", "Festa de Aniversário" e tantos outros, e o melhor conto que conheço em língua portuguesa, "A Menor Mulher do Mundo". Em 1962 saí de Porto Alegre e fui morar com a minha tia, no Rio. A Clarice, que então já estava separada do Mauri, era sua vizinha no Leme e pude conviver, e me fascinar, um pouco mais com ela.
Agora, folheando alguns livros da Clarice antes de escrever isto, dei com uma dedicatória dela em A Maçã no Escuro para "meus queridos Erico e Mafalda".
Uma dedicatória brincalhona, datada de julho de 1961, em que ela destaque que o preço do livro nas livrarias é de 980 cruzeiros e que portanto está lhes dando um presente valiosíssimo, e recomenda que ele seja protegido com uma capa colante, do tipo que gruda na mão e "prende" o leitor. No fim há um adendo que eu ainda não tinha visto: "Luís Fernando, considere este livro seu também, por favor. Divida 980 por três e você terá preciosa parte. Sua Clarice." A lembrança da Clarice vale bem mais do que 980 cruzeiros, mesmo com todas as correções monetárias acumuladas em 47 anos.
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