Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

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Friday, April 16, 2010

A Mala Hora


A esposa ficou olhando serena para a porta que acabara de fechar. O marido se foi. Foi sem lhe "atender" ao pedido de um carinho naquela manhã quente, de lua fértil. Não havia mais o que fazer. Deu de ombros. Vai ver ele se foi porque estava realmente na hora de ir. Costumava ser pontual e intolerante. Um homem, portanto, "coerente", diriam os amigos. Mas a verdade é que não estavam lá muito próximos por estes dias...

Mas, não foi mesmo, por nenhum desafeto que imperou a negativa. Apenas um simulado desprezo. Ficariam à noite, prometeu ele. Hora boa do dia. Hora em que não seriam interrompidos pela chegada da ajudante ou despertar dos niños. Estavam novamente de mudança. Mais uma vez de mudança. Ainda não havia mesinha de cabeceira ao lado da cama, nem móveis nos lugares devidos. Colchões espalhados pela sala. Eletrodomésticos encaixotados. Sossego perdido.

Aos sobressaltos ela notava que havia tempo não paravam para ouvir bossa nova, nem rock 'n roll. Não haveria mais um pingo de Amor? Secaria e depois morreria? Naquela manhã, o medo furou - lhe como um tiro seco.

Ele foi sem culpas. Com a certeza de que poderiam superar sem danos ou perdas, a má hora. Esperando pelo momento ideal. Ela, mesmo levantando para acompanhá - lo até a porta e até despedir - se com um beijo morno. Olhou atenta e achou que suas almas continuavam uma mesma. Por muito tempo ainda estariam ali.

A outra parte da sua preparou-se aos pouco para o desbunde. Boliu - se por alguns instantes. Erguer - se contorcidamente demorou mais que de costume. Durou enquanto lia um clássico, Willian Shakespeare. Depois de instantes levada, imóvel, decidiu! Hora de levantar porque a inércia começava a lhe dar nos nervos.

Tomou uma boa ducha, lavou bem os cabelos. Impregnou - os do cheiro de algas marinhas. Limpou bem a pele do rosto. Olhou - se no espelho liquefeito. Tocou a extensão de cada poro, esfregando com as pontas dos dedos cada centímetro de pernas entre as coxas. Do começo até o fim das costas. Hidratava - se. Por completo. No corpo um creme com o perfume que lhe dedicava às partes mais delicadas. Uma ponta de vaidade. Um pingo em suspiro evaporava do pescoço comprido.

Vestir - se era fácil. O despojamento de sempre. Só. Era assim que se achava bonita. Saiu para reabastecer a casa de coisas que encontraria no mercado... Começou a procurar em meio às folhas. Legumes... Nos mais frescos se deixou levar. Colhidos ali, há pouco. Pensamentos sobravam e soprava uma brisa leve que nem fios de cabelo soltos da cabeça em movimento.

Ventos derrubam casas e pontes até. Já vi tetos desabarem. Alumínio leve é breve e certo. Ventos concêntricos viram furacões. Pés de vento levantam folhas nos parques durante o outuno. O vento levava os cabelos e junto iam pensamentos. Levantava a saia num balanço leve. No mercado, via - se ela levitar por entre balaios de laranjas vibrantes. Um colorido cítrico de mercado vivo.

Ouvia o ruído suspensa em dedilhado de ouvidos, rumores incertos para os quais não tinha sentidos. Parecia estar numa terra distante ouvindo o derramar de água cristalina. Ia esquecendo de tudo... Despertou do devaneio quando um rapaz de alguma idade, que a observava a se rir da graça, como a moça flutuava entre as frutas rotundas. Tão bem distribuídas em seus balaios.

Puxou de assunto, a qualidade das laranjas. Não se podia comparar àquela hora do dia frutas tão vigorosas e ao mesmo tempo maduras. Ao que ela lhe sugeriu que desse importância, além da aparência, ao verdadeiro sabor de cada fruta. O fato é que, àquela altura, as dúzias escolhidas viraram sacolas carregadas, que pelo peso, ela precisaria de ajuda para levar. Só até o final do quarteirão.

Não foi com presteza que ele se ofereceu, mas com naturalidade, a mesma que se estivesse ali para aquilo. Ela não havia chegado aos quarenta. Pedir ajuda fazia se imaginar aos setenta. Mas não viu, dessa vez, qualquer ameça à sua solitária rotina. em aceitar a gentileza. Sem dar muito espaço para os cuidados que denunciam os culpados levaram - se pelo caminho em conversas sobre frutas frescas até onde o carro estava estacionado.

Coincidência, a casa dele ficava ali ao lado. O rapaz fazia pesca submarina e não era do contexto do mercado. Ofereceu - se ao peso das sacolas e por estar capturado pela "corrente azul" que nela balançava. Ao ouvir isso, uma corrente submarina invadiu-a de imediato. A moça aceitou dessa vez o gentil convite "quer conhecer meu quarto?"

- Aceita uma água ?
- Gelada!, ela respondeu sem nem pressentir que não demorava. Embora o rosto já estivesse aquecido em maçãs. Vermelhas. Na boca ia um gosto antecipado de fruta madura... Foi também pela simples palavra dita e os lábios delicados do moço balbuciando qualquer que fosse a frase.

E aquele calor que não a abandonava, agora perseguia. Em geral não escolhia começar porque o primeiro piscar de lábios puxava outros seguidos. E a dificuldade traduzida em capítulos inteiros do romance inglês, agora era energia que fluida simples e líquida. Feito água aquecida. No copo abraçado com as mãos e na passagem estreita prima-irmã dessa rima. Ela virou pesca submarina. Repetia sem parar no pensamento. Ele retrucava sem medo que de pesquisar o mundo marítimo seu universo se faria.

Esqueciam - se das horas, e volte e meia desembalavam frutas ouvindo o barulho do mar. Quietos, em silêncio profundo. Céu inteiro lá em cima, sol em frestas. Mergulho absoluto em cantos de sereia. Ao passar dos anos foram vindo vozes sobre o barulho bom: Ray...Peyroux...Nina... Holiday.

Ela fruta colhida, doce. Feito Mimo. Ele, aos bagos. Comiam-se em dias corridos. Sucessivos. Com o passar de noites, contadas em mil e uma. Quando somente, então, foram descobrindo que há mistérios no mar e dissabores delicados na fruta.