Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Friday, June 30, 2006

Café com Letras

O homem espreme os peixes roubados do rio, no meio fio.
A pedra que usa, martela o asfalto, sobre o chão cobalto
A comida, espremida, espalha um cheiro de morte,
no Recife do meio - dia. E de um indigente e sua falta de sorte
E sua morte mal nascida.

O rio é o mesmo - O Cão sem plumas - de João Cabral de Melo Neto
E sua morte severina. O Recife, também é o mesmo.
E a ponte Maurício de Nassau não cumpre papel abissal.
É palco da podridão, de carne viva queimando ao sol.

O peixe morto é esmagado, e o rio morto é espelho
que ainda reflete a mesma dura sina dura vida severina
sem confete ou serpentina, ou brilho ou plumas
apenas escamas opacas e águas fétidas, de uma manhã sem rima.

É também a mesma ponte, do mesmo Recife, em que Clarice
Ainda menina, festejava em Felicidade Clandestina
Ao abraçar o livro de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho
E levá - lo para casa. Tê - lo pelo "tempo que quiser"
Para, logo em seguida, deitar com ele na rede...

Por que o poeta ainda existe ?
Por que insiste em surgir das águas sujas do Rio ?
Ou das pontes e ruas que cortam o Recife ?
Por que não é possível esquecer o que Cabral escreveu
Ou Clarice desvendou...?

É no desvelar que se encerra a obra
No descobrir um país novo, afeito às letras
Às idéias, palavras, e seus significados
Às obras de seus mestres e até a um pouco
de Filosofia, quem diria...

O café está servido. E dessa vez,
Não com o pão de todo dia.
Mas com Letras. Idéias, vastidão.
Não são rosas ainda, ou apenas.
Mas, informação. Aquela que não ultrapassa
A cortina de fumaça que cegou meios de comunicação.

Wednesday, June 28, 2006

O Imperador de Joelhos

Do fim para saber dos meios. A cena é de uma força colossal. Estampido de tiro no ouvido da arma apontada para as costas, você protegido pelos filhos. Cena do filme Crash. A bala, ainda bem, é de festim. Não é simples o que sinto. Se o duelo é no território de brutos, inteligência não vale. Apita de imediato o juiz da partida. A mistura do que somos será sempre melhor que a essência pura. Raça pura é raça que se experimenta e vai promovendo combinações inexatas. A superação do humano é simples. Só se quer amar e ser amado. Talvez, alguns sim, queiram mais: reinar!.

E o imperador proibido de cenas, por causa de um pequeno constrangimento que em geral nasce na culpa dos atos. Tua fama precede até a franqueza dos fatos. Pressuposto é sempre o caminho do inexato, mas são reflexos que falam. E tudo muda. Reflexos treinados ajudam...mas às vezes, atrapalham. Se a fama não for boa, atrapalham. Mas quem é rei não perde a majestade, e desistir é para os fracos. Mesmo quem parece não querer ser violento não controla a sua superioridade em campo. Chupeta aos que não mamam. E a deformação é clara. Vai saltando aos olhos como o gesto impiedoso de quem se perdoa e tem sempre razão. Primeiro ela, a razão. Seu maior álibe serão sempre os momentos em que impera a razão.

Mas deixemos a Imperatriz de lado, por um pouco. Aqui, a cena do Imperador é que impressiona. Impregnou na retina como Amor mal resolvido fica remoçando o coração. Não sai de lá e fica estampado como uma coisa só até o final dos tempos. Mesmo que mude. Que se transforme completamente. De joelhos. A Montanha jamais se curva. Nem mesmo diante do Imperador. E quem nasceu para fazer sua parte, contribuir, brilhar que nem estrela não perde essa luz própria, senão na morte. O Imperador acertar os ponteiros de um embate, um duelo de fortes, - com que joelho ? "esquerdo" - tinha que ser o esquerdo! e foi inacreditável.

Aliás, é de momentos de inteira tensão e verdade que alimentamos nossa memória e, por conseqüência, nosso imaginário e a construção da História. É também de uma inteira alegria ou tristeza que sentimos há anos, o que alimenta a memória e faz do princípio o verbo: "lembrar"... dos dias vividos em passado tão presente. Não é saudade, senhor! É lembrança. Saudade continua na gente. Dizia Pinto do Monteiro. Vontade de fazer em alguns instantes de glória, visível, notória, pública, solução para os problemas...o que não cabe em anos de desarrumação e luta corrupta. Tenta, falha, desiste, mela tudo, estraçalha. Conquista, joga cuspe em cima, desfaz. Refaz, reinventa.

Arrebenta cordas de coração e de chapéus de couro de quem parecia tão valente. Hoje, a gente mente que é feliz e pinta de verde amarelo a derrota de uma nação vermelho frustação. Lição número um : Não torça contra um "hermano"...se sobraram europeus... por que vibrar com a saída dos penúltimos sulamericanos ? Vencer é para os frios e não merece o Amor, quem morre de medo do ridículo. Entre a dose letal e o remédio, ficamos adoecidos. Paralizados, burocráticos, ridículos, insensíveis à própria dor, em Lá Maior.

Monday, June 26, 2006

Papel Filme Dourado

"Para melhor entender a natureza das idéias, é preciso tratar da variedade dos conhecimentos. Quando posso reconhecer uma coisa entre as demais, sem poder dizer em que consistem suas diferenças ou propriedade, o conhecimento é confuso. Assim, às vezes conhecemos claramente, sem dúvida alguma, se um poema ou um quadro está bem feito ou mal feito, porque há um "não sei quê" que nos agrada ou nos irrita. Mas quando posso explicar as notas que tenho, o conhecimento se chama distinto. É o caso, por exemplo, do conhecimento de um contraste, que distingue o ouro verdadeiro do falso, por meio de certas provas ou sinais que constituem a definição do ouro." Gottfried Wilhelm Leibnitz (1646-1716)

Abro devagarinho uma das extremidades de papel colorido. Sai de lá uma luz que acendeu no século XIX e não apaga mais. O que tem dentro é de um sabor misterioso. Lembra infância, é doce feito chuva em dias de chocolate. É mole: fluido...Chama - se conhecimento. Mas o saber tem suas variedades. É necessária uma tarde inteira para saborear esse pedacinho de segredo. Mais de três horas se foram. A distância foi junto. Deixando mais perto. Será que estou sonhando ? Será que estou firme, estou de pé ... no sonho, tudo é possível. Os meus parecem papel filme dourado. Transparentes e furtacores. Lá ficam impressas todas as sensações estranhas e digitais. O indecifrável nascer do dia. Certas provas ou sinais me deixam claro. Vou sonhar com você, na certa. Certeza eu tenho nenhuma, mas você parece sempre estar certo. Feito ou mal feito, há sempre um "não - sei - quê" que nos agrada ou irrita...

Abro ou não abro. Desvelo o que está ali, retido ? Você, já outro universo inteiro, comemora apenas o fato de passar pela primeira etapa. Retiro o que disse ! Agora é tarde... Era para ser, mais em segredo, esse cantinho aqui. Não tenho mais leitores afinal. Você era o único crítico que permitia me analisar. Sou tão sem parâmetros que não levo nem o sério, a sério. Nessas horas sinto vontade de maquiar. Por que será que não aprendi ? Vou despertando pétala por pétala. Me chamo de flor em meio à uma plantação de feijão. Você escuta e mede com palmos de distância o resultado.

Sei sofrer mais que isso, não. Publicar, então, é demais. "Das ist mir zu viel!". Exagero brasileiro. O que eu sei é que com essa vontade de escrever vou trilhar mais de um milhão de quilômetros até chegar na calma que eu preciso. Por que será que me sinto em canto nenhum da casa ? Por que é mesmo que sempre volto ouvindo a mesma música, e penso na mesma tecla, e ouso a mesma melodia, todo dia, todo dia, todo dia... Estou em círculos e ainda nem reiventei minha roda. Pés descalços e a vontade no chão. Por isso vivo aos saltos ! Perco sapatos em pleno show, sandálias no meio da rua. Ponho aqui e ali uma pequena distância da minha própria felicidade. Ser feliz para quê ? Se vivo nessa aventura ? Completar o quê ? Satisfazer a quem ? Sentir prazer...Muito prazer...você não me conhece para falar assim de mim. Não sabe do que eu sou, além da promessa que acabei de fazer, capaz de dizer.

E esse é o texto sem margens que escrevo. No papel filme dourado. Espero aprender a fazer promessas e a descumprí - las também. Não sei o que me dá mais nos nervos, se é não sair do lugar ou ir sendo levanda para não sei onde, por quem ainda nem conheço, nem um tantinho assim. Olha bem nos meus olhos. Olha bem minha carinha de anjo bobo. Todos os projetos e sonhos e ousadias deixei lá nos meus 25 anos. O grão ajoelhou e não vingou na terra adubada com Amor.

Alguém falou que ia me dirigir. Não é isso. Não é esse o meu filme. Não dei a você o papel certo. A cada frase ouço folhas que estalam secas. Não, ainda não chegou o Outono. Há de ser Primavera para que eu descubra um sonho novo e acredite agora em mim, depois em você. Não sou igual a quem eu era. Mudei. O rio por onde passei também mudou. E faz tempo que ninguém me escreve cartas. O conhecimento é confuso, Leibnitz! E como "reconhecer" - diferenciar ? - uma coisa entre as outras, sem dizer em que consistem suas diferenças e propriedades. Lina sempre alertou para a necessidade de ler Guimarães Rosa: "todo Amor é uma forma de comparação!"

Li tantas palavras completas: ninho, passarinho, carne assada! "Assado no mais preto das minhas lembranças" não fui eu que escrevi. Fazia parte de um plano secreto. Um segredo que durou anos e de repente se foi assim. Não esqueci. Mas não é essa a fotografia que quero revelar mais. Chega. "Agora é tarde". Você quem disse!. Não é esse o filme que tirei da máquina. Não era assim que tudo deveria terminar. Chega de misturas e traduções, fotografias envelhecidas. Saudade de sentir vontade além da confusão no pensamento. Porque dou sorte mesmo. Pareço um barco a esmo para você vir me remar ? Sem fundamentos tudo isso que escrevo... Quem mandou misturar no papel numa mesma canção Vinícius, Tom Jobim e João Gilberto. Precisa de tanto artista para quê ? A música não é uma ? A moça num é a mesma ? Para que toda essa tristeza de ficar juntando pedacinho, fazendo do coração de papel, banquinho de madeira, ou balão colorido! Ficar experimentando cores, nacionalidades, barulhos e estampidos!

A cabeça que é boa não sabe da missa um terço. E você, que não é de ferro, para subir não demora e para afundar é na hora ! Feito caldo de cana espremida para matar a sede de quem toma café sem açúcar. Se depender de mim, contar histórias assim... Vou botar uma cria debaixo de cada asa e alcançar o pontinho final da estrada. Contando vantagem. Fazendo viagem. Só sei que o que eu quero aprender não se ensina ainda. Que é uma vontade danada de viver. Toda vez que eu cruzo o sinal, o carro que passa parece promessa de encontrar os sapatos perdidos naquela noite que conheci você. Cada vez que o relógio bate meio dia, eu me lembro do que não vou encontrar para comer. Ou quando encontrou, vai ser demais. Estarei sozinha. Acabo pedindo salada e o menor de todos os pratos é maior que a minha vontade. Da bolsa tira a caneta e escrevo em guardanapos. Brancos, não dourados.

Papelão ! O texto reescrevo num papelão. Não fosse tão grande não cabia, depois que dei para essa mania de esperar cair do céu a palavra que vai mudar minha vida. What is gilden, not gold. What is gilden, not gold. Velejo até encontrar palavra que vem vem vindo feito sopro de vento e me salva. Feito bote. Pulo nela e cravo unhas, canela e dentes. Fico roxa. Invariavelmente asfixiada. Salvo surpresa que nem tu, minha vontade de dar risada, estava perdida.
Ainda escrevo sobre Geologia. Massa Vulcânica. Uma tolice completa, afinal! Vermelha e incandescente. Sim, fogo é vermelho em ouro incrustado.

Sunday, June 25, 2006

A Música, A Dança, O Corpo e tremo de frio !

O que ouço não parece apenas um piano triste. É também uma melodia cega. Acerta meu peito e alguém passa e fica. Quadrado em forma de mesa e os lados são quatro. É em mim que surge. Em mim que a força se levanta: uma, duas, três vezes. Não ligo. Conecto. Recebe às seis e meia da manhã o primeiro aviso. Todo esse excesso de cuidado tem feito estragos. Estragos bons. A alegria de todos. Até quando se pode guardar um segredo ? Porque os segredos e as certezas nos enchem de Força. Quando é cedo, o maior de todos os obstáculos é o medo. E depois ? A vida continua sim, e é preciso saber o que fazer com essa feliz idade...Porque não há mais o medo, há a força e o desejo de continuar vivendo. Um vontade de vida pé - de - feijão. No verão, se põe apenas de joelhos. No inverno, vai às alturas. Se depara com um gigante de nome: Desire! E tudo é tão grande como era o medo.

A dança que invade o espaço de quatro paredes é tão delicada e suave como um paginar de livros. Pontas de dedos que vejo em desenho de criança maiores que os ouvidos. E o ritmo, o ritmo, o ritmo, o ritmo de quem quer se achar. E se encontra em perfeito estado de sentidos à flor da pele. Macia e suave. Se uma ubigüidade incomoda muita gente, imagine duas ubigüidades e ubigüidades presentes. Três ubigüidades incomodam muito a gente. Quatro ubigüidades incomodam, incomodam, incomodam, incomodam muito mais. Até caminhando deslizo, continuo a mesma gazela disforme com peso do olhar seco e frustado nos quadris. São meus olhos ou ombros que me trazem.

O corpo está feito de idéias e leituras sofisticadas de revistas de moda. O modo é pura perfídia. Meus tristes (e doces) anos de medo não voltam mais. Não no corpo certo. Milimetricamente suave. Sei tão pouco de ti quanto de tuas omoplatas. Examino e examino, ferindo, puxando pêlos com strass esmeralda. Meço cada centímetro de palavra que escrevo para que não saiba que vôo, que vivo no espaço. Entre o um e o dois existe uma infinidade de pontos. Entre dois corpos, não pode haver mais nada. Mens sana, corpore in sano. Homens e mulheres cheios de saúde e idéias na cabeça. Minha câmera secreta te observa. Vejo por todos os lados. Peixe que sou. O cítrico e o ácido. Suor e lágrimas e sangue e pulsos. Santo sacro em que deslizam os dedos de pontas pulsantes.."soy todo corazón!".

E eu aqui ! Tremendo de frio e sem medo. Com tanta esperança de viver mais...Muito mais. Com tanta certeza de que meu destino é voar por caminhos tão pouco habitados. Com nenhuma dúvida que descubro aos poucos a vida em quase todos os livros. Nos poemas que recitas. Nos versos que vêem os olhos cegos de dúvidas ao longo dos anos. Da sua pouca vontade de me ver por inteiro. Do meu completo cansaço em saber mais de mim que do Amor. E do calor que não volta. A primavera não dura pra sempre. E essa Deusa arrastada para as profundezas da terra floresce apenas alguns meses. Depois... depois ? Estará de volta à sua paixão verdadeira. O encontro marcado consigo mesmo. Também comigo mesma, porque sou eu que escrevo.

Não chores, passarinho ! Teu vôo é certo e preciso. Viver não é assim. Sabes do tempo o estrago que faz. A dúvida não deixa espaço nem para o orgulho. Saber viver é ser também rápido. Como Mercúrio. Curar feridas. Preencher o vazio requer saber dizer sim ao "sim" e não ao "não". Meu gigante me espreita dia e noite. A cada tecla que abandono pela letra seguinte. Meu caminho cheio de curvas é perigoso e infantil. Não quero mais que brinquedos nessa aprendizagem ou no livro que escrevo. E isso é somente literatura burra, burrinha mesmo. Porque não é novo não dizer pelo avesso. Sei do pouco que mereço, mas a cada livro que finda, é Primavera de novo. Subo, respiro, depois regresso para uma origem cheia de Amor. Amor proibido. Nascer com defeito, que não esqueço.

E nunca fui ou serei tão simples como agora. Queria eternizar o instante. Eternizei a hora. Minha hora suave do dia. A hora em que escrevo para quem lê agora. Séculos depois estou morta. E não se morre para uma criança. Para você, eu afirmo, garanto, ninguém nunca morre se quiser mesmo estar vivo. Você vai viver para sempre. Escrevi, está dito. Você viverá para sempre. E seremos felizes. Felizes para sempre.

Saturday, June 24, 2006

A Mala Hora

A esposa ficou olhando serena para a porta que acabara de fechar. O marido se foi. Foi sem lhe "atender" ao chamado naquela manhã quente, de lua fértil. Deu de ombros. Foi porque estava realmente na hora de ir. E ele costumava ser pontual e intolerante. Um homem, portanto, coerente. Não estavam lá muito próximos por estes dias... Mas, não foi mesmo, por nenhum desafeto que imperou a negativa. Ficariam à noite. Hora boa do dia. Hora em que não seriam interrompidos pela chegada da ajudante. Ou pelo despertar de niños. Estavam novamente de mudança. Mais uma vez de mudança. Ainda não havia cama, nem móveis nos lugares devidos. Colchões espalhados pela sala. Eletrodomésticos encaixotados. Sossego perdido. Não haveria tempo para ouvir bossa nova, nem rock 'n roll. Não haveria um pingo de Amor. Secaria e depois morreria. O medo furou - lhe como um tiro seco.

Ele foi sem culpas. Com a certeza de que poderiam superar, sem danos, ou perdas, a má hora. Esperando pelo momento ideal. Ela, mesmo levantando para acompanhá - lo até a porta e despedir - se com um beijo morno, viu que as almas continuavam lá. A parte da sua estava pronta para o desbunde. Boliu - se por alguns instantes. Erguer - se contorcidamente demorou mais que de costume. Durou enquanto lia um clássico assinado por Willian Shakespeare. Depois de instantes levada, imóvel, decidiu! Era hora de levantar. Aquela inércia começava a lhe dar nos nervos.

Tomou uma boa ducha, lavou bem os cabelos. Impregnou - os do cheiro de algas marinhas. Limpou bem a pele do rosto. Olhou - se no espelho liquefeito. Tocou a extensão de cada poro, esfregando com as pontas dos dedos cada centímetro de pernas entre as coxas até as costas. Hidratava - se. Por completo. Usava no corpo um creme com essência semelhante ao perfume que lhe cobria nas partes mais delicadas. Uma ponta de vaidade. Um pingo suspiro evaporava do pescoço comprido. Vestir - se era fácil. O despojamento de sempre. Só. Era assim que se achava bonita. Saiu para reabastecer a casa de coisas que encontraria no mercado...

Procurava em meio às folhas. Legumes... Nos mais frescos se deixou levar. Colhidos ali, há pouco. Pensamentos sobravam e soprava uma brisa leve que nem fios de cabelo soltos da cabeça em movimento. Ventos derrubam casas e pontes até. Já vi tetos desabarem. Alumínio leve é breve e certo. Ventos concêntricos viram furacões. Pés de vento levantam folhas nos parques durante o outuno. O vento levava os cabelos e junto iam pensamentos. Levantava a saia num balanço leve. No mercado, via - se ela levitar por entre balaios de laranjas vibrantes. Um colorido cítrico de mercado vivo.

Ouvia o ruído suspensa em dedilhado de ouvidos, rumores incertos para os quais não tinha sentidos. Parecia estar numa terra distante dali, ouvia um derramar de água cristalina. Ia esquecendo de tudo...Despertou do devaneio quando um rapaz de alguma idade observava pasmado a graça com que a moça flutuava entre lugares de frutas rotundas. Bem distribuídas. Puxou de assunto, a qualidade das laranjas. Não se podia comparar àquela hora do dia frutas tão vigorosas e ao mesmo tempo maduras. Sugeriu que desse também importância, além da aparência, ao teor das vitamina e ao sabor das frutas.

O fato é que, as duas dúzias viraram pesadas sacolas que ela, agora, precisaria de ajuda para levar. Até o final do quarteirão. Não foi com presteza que ele se ofereceu. Mas com naturalidade. O mesmo faria se fosse uma senhora de uns setenta anos. Ela não havia chegado aos quarenta. E apesar de toda reserva, não via, de onde estava, qualquer ameça à rotina. Aceitou a gentileza. Sem dar muito espaço para os cuidados que denunciam os culpados. E levaram - se pelo caminho em conversas sobre frutas frescas até onde o carro estava parado.

Coincidência, a casa dele ficava ali ao lado. Fazia pesca submarina. Na verdade não era do contexto do mercado. Ofereceu - se ao peso das sacolas por estar capturado pela "corrente azul" que nela balançava. "Gostaria que levasse com você o livro". Que livro? Sobre frutas saídas do pé e frutos do mar...Entrou no apartamento de autonomia simples e independência franciscana como o dono. Estudante de pesca submarina (sic). Aceita uma água ? "Gelada!", ela respondeu sem nem pressentir. Embora o rosto já estivesse aquecido em maçãs. Vermelhas. Na boca ia um gosto antecipado de fruta madura... Foi também pela simples "cidade" da palavra dita: Amsterdã! Vieram de Amsterdã. Viu os lábios delicados balbuciando frase sem querer que fosse e que ao mesmo tempo era: extremamente sedutora.

E aquele calor que não abandonava, agora perseguia. Em geral não devia começar porque o primeiro piscar de lábios puxava outros seguidos. E a dificuldade traduzida em capítulos inteiros do romance inglês, agora era energia que fluia simples e líquida. Feito água aquecida. No copo abraçado com as mãos e na passagem estreita prima irmã dessa rima. Pesca. Submarina. Repetia sem pensar. De pesquisar o Universo Marítimo faria - se o novo mundo. Esqueceram - se das horas, desembalaram as frutas e ouviram longe o barulho do mar. Quietos, em silêncio profundo. Céu inteiro lá em cima, sol em frestas, mar em absoluto silêncio profundo. Como em cantos de sereia foram vindo vozes, de mitos: Ray...Peyroux...Nina... Ela fruta colhida, doce. Feito Mimo. Ele, aos bagos. Abriu com a mão tangerinas. Comeram tudo. Em dias corridos. Sucessivos. Com o passar de noites, contadas em mil e uma, foram descobrindo mistérios do mar e dissabores delicados da fruta.

Friday, June 23, 2006

Hit the road, Jack and don't you come back no more, no more, no more,
no more...
Hit the road, Jack
And don't you come back no more

- What you say, Ray?

And don't come back no more, and don't come back no more...
And don't come back no more...


It's me on the road, Jack, Ray, Louis, everyone more! Don't come back. I don't come back. I know!

You can't mean that!
Don't you come back no more
Oh, now baby, please!
Don't you come back no more
What you tryin' to do to me?
Don't you come back no more
Oh, don't treat me like that!


And I know is not good. My bad mood. No more! No more! (What you say?, Ray) I don't come back. I will be sad if I come back. No more! Never more! What you tryin' doing to me...No more! No more!...You'll never treat me like that again.

Well, I guess if you say so
I'd have to pack my things and go (That's right)


What you say? Y didn't like what I said. I'm sad...just that. But I'm happy now. You know nothing about me. No more. No more. You won't know nothing more about me.

So, I'd have to pack myself and go, on the road. And I don't come back no more.

Festa estranha. Eu verde. Sorriso amarelo. Gente interessante. Futebolfrenia.
Gol. Goal. Go. Go...

You come ? I don't go.
Never mind. I will say
Thousand milles away
From here

Keep on the road
Keep on the road
Keep on the road

- Ray, say to me!

Keep on the road
Keep on the road
Keep on the road

Handle my wrist and see
Jack, Ray, may I say I'm...
twist? I don't come back from this risk
I keep on myself on the roadway

Wednesday, June 21, 2006

Força, certezas dão força!

Estou indo certo. Caminho eu erro, mas estou no rumo certo. O avião decola e é céu claro. Nuvens ? Só de algodão...Aliás, sonhos são todos feitos de nuvens. Brancas, cinzas, cor - de - chubo. (Cor de sangue é o barro). Para realizar sonhos é preciso cruzar nuvens fluidas de vapor em algodão. Difícil é alcançá - las. Lançar - se tão alto assim, é para os que voam. É para quem tem asas. Bater asas é um mistério que requer força e vazio nas "veias", nos canais abertos por dentro.

Minha cabeça não dói nunca mais. Eu vi mais de um milhão de cabeças cortadas. A minha também. Eu vi meu corpo tremer. De frio de fome de sede de sol de tanto Amor. Ela, minha cabeça, não dói nunca mais. Tudo é matéria que aceito sem dor. Sem náusea sequer. Não quero cansar você. Kerouac me cansou um pouco...O óbvio me cansa um pouco. Todo viajante é um solitário. Não sou só. Não estou à procura. Tenho medo. Descobri que tenho medo, quanto não estou certa. Não sinto nada se estou certa que sou. Perdôo quem sou numa fração de segundo e não temo turbulência nem pouso em pista molhada.

Estou certa e "reta como uma seta", eu vou. Na dúvida, tudo dói. Não tenho mais limites para abrir a cabeça. O corpo está fechado. Na Bahia, fecho todos os caminhos por onde entrei. Não volto mais. Sigo rente com fé na garganta e imagem de gente que é mais valente que eu. Na Argentina, casaco se chama "abrigo". Em mim, certeza é tudo que eu tenho. E memória...talvez por isso a cabeça não dói. Gavetinhas ordenadas de informações bem guardadas na memória. Isso pode mudar o mundo. "Me organizando, eu posso...". Posso Science, posso Gonzaga, posso Ambrósio, posso, posso ? Não pude. Ficou para depois estar a um só tempo em 196 países. Estou na rede e quem enxerga garante, não é de aço.

Vento do vale de seu Bernardino, café com muita borra para fazer fácil leitura de dona Luísa, risada de dona Joana e eu aprendendo a ser gente. Porque só escolho você, porque sei, não gosta de mim...assim é mais fácil. Se gostasse demais, me amasse, não queria. É amargo, eu sei, que nem folha de oliveiras. Mas não sei de encrencas, não sei. Sei de mim voando sem culpa. Medidas, malas, metros...sem culpa. Certeza que vai dando coragem de saber que eu sou.

Viajo, viajo. Eu sei. Extraio com sorriso palavras. Vontades. Formulo o meu e ensino o outro a formular também: desejos. Porque sei de mim quando nem mais desejo se tem. Limites...você me ajude, por favor, a entender. "Sem exageros", ouvi. Não sei. Certezas são pedras guiando o caminho de quem bate asas com os vazios por dentro desentupidinhos...trânsito. Transito com amor e destreza. Não esqueci da tristeza que trago comigo. Quem sou é meu casaco. É meu abrigo.

Saturday, June 10, 2006

Dia e noite. Noite e dia. Dia e noite. Noite e dia...

“A Terra, mãe universal de todos os seres, nasceu imediatamente depois do Caos. Desposou Urano ou o Céu, foi a mãe dos deuses e dos gigantes, dos bens e dos males, das virtudes e dos vícios...” (Mitologia Grega e Romana, Ediouro, pág.24)

It’s much better to you see: what is gilden, are not gold.

Capoeira, senhor. Quando é de cair, cai bem... A hora é chegada de uma vez para sempre. Confiança não se adquire sem o empenho de um vida inteira, e para desfazer o que levou anos, basta um dia. O milagre da terra é tornar o canto triste em engenho. Tirar o doce da cana. É preciso força. A Terra adubada que surge depois do deserto, não é filha do Caos, como a Noite. É mãe acolhedora, de braços abertos, e como destina - se a água do Rio pro Mar, segue em sua direção de rota tranqüila, chegam todos os dias até Ela, os raios solares. E ainda a suave companhia da Lua.

“I wait I wait so patiently. I’m quiet as a cup. I hope you’ll come and rattle me. Quick come wake me up “. (“Lucy Harmon” – Stealing Beauty - Bernardo Bertolucci)

Por que o vidro partiu a transparência e só as crianças apontam com sabedoria a verdade de uma rainha nua ? Maestria, senhor. Só os adultos namoram. Quando é de se vê, tudo há de se enxergar... “verdade” tem tantos lados que é figura inteira sempre fragmentada, composta de pedaços. Quando é de se dizer, tudo há de se ouvir...Impulso que não pára de buscar água limpa e pura para beber. Até a certeza desmonta no sopro de brisa que não levanta nem punhado de cabelo. Sopro de criação é que dá vida. O que ouço me faz prenha, pelos ouvidos. Esqueça.

“Algumas vezes a Terra é representada pela figura de uma mulher sentada num rochedo (...) coroada de torres, empunhando uma cornucópia cheia de frutos. Outras vezes aparece coroada de flores, tendo a seu lado o boi que lavra a terra, o carneiro que se ceva e o mesmo leão que está aos pés de Cibele. Em um quadro de Lebrun, a Terra é personificada por uma mulher que faz jorrar o leite dos seus seios, enquanto se desembaraça do seu manto, e do manto surge uma nuvem de pássaros que revoa nos ares.”

Há de falar também em fé e crença. Em “Gioya”. Alegria de um sentir fácil e descrever tão difícil e mesmo com todo labor incompleto. Escorrem do sorriso o mel que procuram pela selva. Da pedra não sai leite, sai pedra. Das provas de Amor firma – se um mundo inteiro.

“There is no Love. There are only proves of Love”.

Porque é na busca pela construção da imagem, difusa, vista com os olhos de quem está fora, que construímos o nosso modo de ser gente. Três lâminas de espelho e partículas coloridas formam imagens completas no caleidoscópio da vida. A imagem do que sou é apenas uma parte de mim que é então vista. Colhendo afetos e juntando caquinhos de atenção de outros que tanto interessam, ou naquele momento se interessam, por nós. O instante costuma passar rápido. O aviso é para os navegantes. Roupa de Rei costuma alimentar ratos. Não seja ela refeita pelo Sol.
Eu acredito em duendes e bruxas. Em gnomos e fadas. Em mitos e na coragem que levo sempre comigo. A vontade que habita meu peito.

“É preciso ser leve como um pássaro, e não como a pluma” (Paul Valery)

Às vezes o desejo se basta na construção movida pela frivolidade dos moribundos. Às vezes é hora de pousar. Tomar acento. Fazer e refazer a própria imagem e idéia do gosto da vida, do caminho, do destino, da trajetória de uma história cheia de provas por construir. Provas de que ficará por mais alguns anos. Por isso vale tanto o medo da morte e a Arte de torná – lo música, verso, palavra – frase – livro, vontade pela vida.

“All of me, why not take all of me... Take my lips, I want to loose them. Take my arms, I never use them.” (Billie Holiday) My long hands...throw away from me...

É quando a imagem consolida um conjunto de memórias e idéias e certezas ou dúvidas que na ausência ou vazio do outro se completa. De onde surge a prática do Amor. A teoria é vivida em passos de acaso em acaso. De impacto em impacto. De acertos e erros...Ahhhhhh, como é preciso perdão (suspiro). Como é preciso um profundo e delicado conhecimento de si mesmo. Sorrir é por completo. Como é certo que não estarão mais no mesmo lugar conceitos, preceitos e preconceitos na sucessão de segundos do dia, tão curto, da noite, tão longa, da semana tão todos os dias. Maiores são aqueles em que estou contigo. Menores os que não me deste abrigo de desfrutar do meu sorriso. E eu, da tua cabeça tão cheia de idéia. Tua fúria incontrolável de ser ou não ser. Por que a gente escreve ? Por que corre perigo ? Por saber que a única certeza da vida é a morte. E que o instante que passa se não for “recolhido” é instante morto. Como Engenho, onde morre o fogo.

Queria dizer do tanto que aperta o peito por não saber como será amanhã. Como se confunde em dores a vida que esconde do triunfo e da queda sofrida. Como não passam os dias em que chora calada a morte e prazer da morte. A felicidade adiada não está nunca depois, está aqui. O ponto marca saída. Largada. Marco histórico que é a certeza de quem teme volúpia e mudança de mês em mês e de um futuro que pode não ser tão sábio crítico ou ter o modo de investigação como praxe, característica. Bueno, versar não é fácil, quem falou que era, mentiu. Quem de fato é. Se sabe porque se sabe que é. É. A palavra mais completa, Clarice, que espera ouvir um mulher. Não são necessárias cambalhotas, os seres completos não existem mais num só corpo, embora viva que neles acredita.

A certeza de quem fica acordado é as horas passam, e não voltam. Não ficam. Ficou no passado o que é lembrança. No presente, o que carrego comigo é saudade. De Pinto do Monteiro, de Flaubert, de Lou Andréas Salomé, de Nietzsche, de Hilke, de Sócrates, de Baruch Spinoza, de Guimarães Rosa, de Shakespeare, de Simone de Beauvoir, de Ana Cristina César, de Katherine Mansfield, de Kafka, de Bertold Brecht, de Hess, de Florbela, de Cecília, de Clarice - às vezes parece ainda vive um tanto em mim - de Machado, de Luzilá, de Érico Veríssimo, de Calvino, de Garcia Márquez, de Neruda, Thomas Hard, de Tolstoi, Bashô, Leminsky, Vinícius, Chico, Galeano, de quase todos os livros que li, enquanto era eu. E um eu que não volta mais. (Saudades também do meu avô).

Saturday, June 03, 2006

Romance Agalopado

O que surge é uma mistura do som e da imagem. Chega e é resultado de instantes distintos. Finalmente sai da cabeça. É som de guitarra equalizada e distorcida por efeito de equipamento eletrônico. "Som sincopado", imagem difusa. A batida é raivosa, brutal. E rápida. Tudo é muito rápido. Ao mesmo tempo é bem pensada e estuda cada passo. Quantos botões são necessários para afinar a compreensão de um homem sobre o bicho – mulher ? Explode um repicar de rabeca saído do sertão sem chuva e pôr do sol alaranjado e descoberto. A lembrança vem em flashes. Acendem e apagam no pensamento. Cruzamentos de dados e sentimentos que ficaram muito longe. Dez eles eram ao todo. Entre meninos e meninas de onze e dezessete anos e "quase dezoito". Interrompe o reco – reco. Barulho de folhas secas pisadas, cocheira fedendo a bicho que vive numa paz que o humano desconhece. Walt Withman diria desse finito sossego que carregam, quase em oração:

"Creio que poderia transformar - me e viver com os animais. Eles são tão calmos e donos de si. Detenho - me para contemplá - los sem parar. Não atarantam nem se queixam da própria sorte, não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. Nenhum deles se mostra insatisfeito, nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas. Nenhum deles fica de joelhos diante do outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo".

Lampião e seu bando rezam. A cartilha é mostrada em tela grande. Do que me lembro foi mais ou menos assim: juntos sairiam numa cavalgada. Não havia cavalos e éguas para todos. Uma estava “prenhe” – avisou o cocheiro. Apontou para a efígie ovalada de fêmea quase castanha erguida incrédula sob os cascos. Alguns resolveram – se em pares. Mas o espírito de ventura não permitiria que ela fosse apenas na garupa do namorado. Namorado, além de peixe, é resultado de paciente “pescar”. Mais paciente e espera que pesca. Captura. Escolhem, mas porque foram domados pela beleza ou ingenuidade alheia. Mais rede que pescaria...No saciar ou fartura de um julgar que adio. Viviam compactuando com a felicidade de par há ano ou mais. Ela mais nova que ele. Ele menos bravo que ela. Aquele episódio deixaria marcas. Reproduziria nela uma viva captura do instante. Do medo que não tinha nenhum e de um adaptar – se habilidoso que fazia dela sempre pronta, sagaz.

Ele admirava em silêncio de menino oprimido, em vias de virar opressor..."Não é assim com todo menino!" Tia dora diz que não. Mas Diadorim foi morto e o romanceiro poeta afirma quando lhe matou:

“O senhor talvez até ache mais do que eu,
a minha verdade.
Fim que foi.
Aqui, A estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.”

Guimarães Poeta Rosa ela lia dúzia de anos depois. “E aquela era a hora do mais tarde”, em que nascera e tantos têm horror. E quem veio baixando foi a mão, para deslizar num céu de nuvem branquinha de algodão e apertar com dedos longos as partes de parir o romance de então. Findo o prólogo vem o verbo de desapontar cocho, homem seco, mulher vesga e varão. Ao ler a frase “sabendo somente no átimo em que eu também só soube...” vibram as cordas minúsculas tocadas por dois dedos em cuspe. “Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...Estarreci”

Com esse impulso satisfeito pela escrita versada de Guimarães, ouvia o som rasgando em cordas de metal a sofisticação da máquina. E a lembrança presa há seis dias, saia, porque era nove e não sabia fazer do outro inspiração perdida. Reproduzia em círculos concêntricos e maiores a cada dia, o que vivera em tarde de menina que nem os 18 anos ainda trazia.

Subiu com coragem e nenhum mito de dor ou queda na cabeça a égua prenhe, proibida. Tirava – lhe da cocheira em hora que o animal marrom que nem seus cabelos esperava estar apenas a espera da hora de seu potro. Saia com coragem cega de quem tem impulsos maiores que as mãos, de pianista, diziam...Sabia dela e do seu talento de adaptar – se a qualquer forma, da flexível maneira de cruzar os pés nas costas e de deixar rente ao chão, os joelhos para fora quando os calcanhares alcançavam a virilha fazendo das pernas cumpridas asas de borboleta. Medo sentia somente agora enquanto escrevia e discorria em estilo que ainda não conhecia, como bicho desabalado corria os dedos em teclas de letras e de palavras vazias de significado. Mas a imagem já lhe possuía, a idéia de livrar – se dela dominava conversas e tardes inteiras de alegria em estar com os amigos. Não suportava mais a idéia de repetir uma vez que fosse que ali ainda estava presa a idéia de soltar todo o ritmo da história que lhe prendia.

O círculo talvez fosse o derradeiro da pedra jogada no rio de sua vida pelo primeiro namorado. Uma promessa que durou três anos inteiros e a devoção à compreender mecanismos espíritas. Provou de marcas delicadas e escurecidas nas extremidades do seu peito, onde carregava o coragem puro e cheio de sonhos honestos, infantis e também medonhos. Somente de conhecer o mundo, de sair por aí cavalgando. Não aceitou a garupa, porque não aceitaria. Mesmo que não tivesse surgido dela a idéia para o passeio, da oportunidade de respirar ar puro no campo em cima do bicho suando suas pernas e joelhos, acentos e selas. Sentia – se um mesmo animal subida neles. Talvez também porque tivesse a mania de levantar o queixo quando o vento batia em seus cabelos. Lembrava que ele, o vento, vinha viajando de longe, como um dia também gostaria e faria. E o fez. Em pequena medida de cidades do interior, de onde o vento não soprava para ela no litoral. Foi para onde podia mandar notícia aos que ficaram.

Subiu na égua prenha. Todos se acomodaram sozinhos e aos pares nos animais e seguiram passeio como quem seque viagem. A aventura jovem, iniciada em horas de meia tarde. Sentia sua égua mais macia, redonda, ovulada. O bicho que carregava na barriga não se mexia, já estava em momento de encaixe na bacia. Maduro feito fruta que aparece brilhando em galho mais alto da árvore. Sabia da ousadia que cometia a cada passo da cavalgada. Foram na frente ela e a égua pré – parida, para logo ficar para trás. Bem atrás. O namorado não se conformava, ofendido dela não aceitar a anca do quadrúpede que comandava. Ele, desde menino, gostava também dos bichos, e melhor que todos os amigos montava neles num dos poucos traços de segurança de menino autônomo, o que não se parecia em nada o que era em outras horas da vida que levava. Pais que brigavam, irmãs que tinham direito a dança e cursos de línguas, ele mais velho, tinha as chances, e desperdiçava. Ali não, sentia – se seguro, cavaleiro e já estava para se tornar o que todos esperavam.

Ela já na Universidade, ele a caminho, e ali nos caminhos estreitos de terra batida no campo, comandando o bando de meninos e meninas, ela na égua prenha atrás da turma inteira que só galopava. Voltou um par de vezes acelerando o animal com o passo do outro que montava. Não tinha jeito. A égua a cada passo mais pesada. Já iam em meia volta do trajeto costumeiro, no cruzamento que alongava o passeio, aconteceu o que cocheiro avisou com resultado de desobediência. No instante em que o animal percebeu que a tortura ia ser prolongada, mexeu a cabeça puxando os arreios, dando salpicos com as patas traseiras até se transformassem em pinotes que a turma ia identificando aos gritos da “amazonas” montada. Disparou o conjunto de três seres vivos numa campina sem árvore nem sombra. A égua ia que ia que ia, desembestada. Até a chegada do estábulo na fazenda contava – se uns cinco quilômetros. Metade de tudo somado em menos de alguns minutos tinha sido devorado pelas patas ligeiras do animal que queria voltar para casa. Isso acontecia a todos eles quando reconheciam o caminho, mas aquela fêmea já estava indisposta desde a hora que o passeio começara.

O namorado já vinha no encalço a um par de quilômetros, parecia mais o zorro, herói de história em quadrinhos, foi emparelhando o cavalo e a égua, justo na hora que namorada já tinha dominado o susto do disparo e o movimento disforme impresso pela velocidade. Estava agarrada ao pescoço da égua, diminuiu o atrito do vento e os cabelos ainda voavam às chicotadas na cara. Sabia que tinha feito errado. Compreendia agora a pressa do animal que queria parir sossegada e se juntara a égua como parceira pelo único jeito que se dava, agachando o pescoço também longo, parecido com do animal, amarrando na fêmea os braços compridos e finos, feito pele revestindo osso puro. Ainda tentou olhar nos olhos da égua, sentiu que suas forças quase acabavam, mas aprendeu com ela naquele minuto como é que não se desiste por nada debaixo do céu e em cima do mundo que bicho desconhece igual a água, que quando quer escorre e invade.

Emparelhados os dois animais, o ritmo já não era mais o mesmo, o namorado puxou as rédeas juntando bem o cavalo na égua e gritava vermelho com a veia pulando do lado da boca que ia sentindo o gosto de sangue saído de joelho ralado. Os joelhos permaneceram intactos, mas os calcanhares que roçavam no estribo saídos dali mais carne viva e cor – de – rosa, igual a porco em dia de festa em família. O único jeito que havia era soltar o pescoço da égua e agarrar do mesmo modo o corpo do cavaleiro que naquele exato instante, sem saber exatamente porque ela odiava mais que nunca e era obrigada a saber que deveria também amar mais que tudo e que todos que naquela vida dela passaram. Passou – se para o animal comandado pelo comandante de tudo, o controlador da situação que parecia construir para ela mesma fim trágico, e foi fechando os olhos para não enxergar mais o branco dos olhos esbugalhados em caras perplexas de meninos e meninas amedrontados.

Aquele jeito que ele deu, ela não daria. Daria o jeito dela, isso sim. Pensou antes daquilo tudo que contaria a aventura em estribilho de vitória dela mesma, uma vez que chegaria sã e salva na fazenda da tia. Ele estragou tudo, estragou a história que contaria aos netos da irmã em algazarra de domingos. Nas rodas de amigos, nas páginas dos jornais quem sabe um dia. Agora, o havia um herói. Como em todas os contos de fadas que a mãe lia. E desde os treze anos entendera que vinham de uma época em que só homens escreviam. Diferente do livro escrito pela menina Judia, com mesma idade que ela tinha quando leu o livro, e que não sobreviveu à guerra feita contra a raça humana sem hegemonias.

Chegou na fazenda minutos depois da égua vingada já na coxia. Ela na garupa do namorado herói, que sorria e sorria e sorria. Ouviu mais de mil vezes a história ser contada e recontada. Não esqueceu nunca mais, e guardou bem guardada a certeza de que ele tiraria dela a vitória de chegar primeiro em casa, mesmo que aos bofes na boca, refeita do pensamento de um erro, pois o risco valia a pena pela aventura vivida. Um algo que conquistara com teimosia e a presença de uma coragem desinformada. Sabia que poderia contar diferente essa e muitas outras histórias se virasse jornalista. E faria. Atrás do páreo com o espírito de engenheiro mecânico e machista vinha o namorado, porque também escrevia o danado, mas por aquela família não passaria alguém de profissão tão tola, tão artística!

E está recontado o primeiro instante, o círculo concêntrico que deu origem a tudo que vem vivendo nos dias de hoje a menina de sobrenome "ousadia". Essa corrida desembestada de quem pariu e foi sendo deixada por outro que escolheu, tinha que ser também. Alguém novo por quem decidiu - se “porque estaria acompanhada”...

Risadas do destino escuta até hoje, e que não quer ser mais perturbada. Continua subindo sozinha em selas que encontra pelo caminho, trazendo à tona apenas a voz fina da avó materna que desde pequena ouvia dizer: “quando o cavalo selado lhe aparecer, não pergunte para onde ele vai, não queira saber. Suba sem nenhuma dúvida, depois, com as rédeas na mão, domine o destino, o futuro. Não dê ouvidos para o que vão dizer. Não abra mão nunca da aventura de quem quer muito mais nessa vida saber”. E vem ficando cada vez mais atenta aos mascarados desse mundo. Esses heróis que ficam guardados anos e anos em homens que ainda eram meninos quando a vontade nasceu. De salvar a “donzela” em grande perigo. De bancar o todo – poderoso de um destino e “um cavalo” que nem é seu.

Uma “corrida” que pertenceu a uma menina, uma adolescente, é justa e destinada a uma mulher crescida que aprendeu a encontrar na descarga de adrenalina a exata medida do controle da situação, de um medo do escuro que houve apenas até a primeira infância, de uma vontade de aventura que não estanca e enche de saliva a boca. Molha os dentes, a garganta. Ela é invada nos pulmões, coração, cintura, quadris, e vai deixando as pernas rentes com o dorso do bicho que lhe carrega, furando feito tronco crasso o túnel de um tempo que ainda não está aqui. Num modo “agalopado” de trazer o futuro, fazer de si mesma um erro calculado responsável pelo surgimento do homem adormecido no que antes era menino assustado. Fazendo brotar do músculo sem sangue e acovardado, uma coisa pulsante, que ergue troféus, deixando - o sentindo na boca antes seca: um gostinho de vitória.