Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Wednesday, October 16, 2013

Dos textos que mais sinto falta:

Na cabeça, um chapéu

     Ali no canto esquerdo, ao lado da janela, Sabrina começava o dia. Ainda quase sem roupa, levanta da cama, estica o braço e pega o chapéu preto, de listras brancas e laço vermelho. No lugar das idéias que a reprimiam, vai o chapéu. Enfeitado. Sabrina charmosa baixa o olhar, o rosto fica enigmático. Puxa a aba um pouco mais para o lado.
     - Alguém tem que ceder para que haja mais espaço.
     Sabrina nunca mais quer saber de soluções prontas, prêmios, loterias, mudanças, inclusive de novos hábitos que evitem o caos em sua vida. Sabrina prefere o caos aos engessamentos, compulsões, desesperos de quem faz de tudo, mesmo sabendo que não vai ser feliz nessa vida. Disso tudo, Sabrina não quer nem ouvir falar. Muito menos conviver com pessoas que funcionam assim, sempre em moeda de troca. Não dão porque querem, mas por interesse. E não perguntam se você quer nem te dão o direito de escolher pelo que vai trocar.
     Sabrina pôs seu chapéu agora e vai até o mercado comprar flores, porque hoje está um dia lindo. Um sol maravilhoso. Sabrina é solteira, maior de idade, trabalha, lê muito, desde menina. Sabe cozinhar, gosta de filmes lentos e difíceis, de um jeito que não consegue nem piscar. Não anda cuidando bem da saúde, mas esperou a idade adulta para começar a fumar ou beber.  Sabrina não tem satisfações a dar. Nem ao porteiro, nem ao padeiro, nem ao cozinheiro, muito menos aos que se dizem seus amigos e fazem perguntas para lhe desagradar.
     Sabrina adora cuspidor de fogo. Vai para o circo vez enquanto porque acha inusitada a sensação de estar sob uma lona, mas nem presta muita atenção nos espetáculos cansados. Passa a maior parte do tempo olhando para cima. A lona repuxada pelos furos deixa Sabrina ver as estrelas! O céu ali como pano de fundo por trás da lona repuxada é o quadro que mais interessa a Sabrina.

     Ela fica ali aqueles minutos debaixo da lona do circo só para ter a certeza da felicidade que vai sentir quando reencontrar o descampado. Sabrina não precisa de lona. Não quer se proteger da chuva. Detesta sombrinhas. Tudo que Sabrina precisa está na cabeça: O céu e o chapéu.

Wednesday, October 09, 2013

Silêncio versus fala

O silêncio, enquanto sinônimo de sabedoria, tornou-se um problema para mim. Por exemplo, preciso de muitas horas a mais de sono para dizer aquilo que ficou guardado durante um dia difícil. Um desaforo, não dito aqui, outro ali, vêm me obrigando a sonhar, e continuar na cama me obrigando a dormir, por muito mais tempo que o normal. Este parece ser o único jeito que arrumei para me livrar das palavras presas. Retidas na boca.

Na minha infância, não era diferente. Tinha sempre algo a dizer sobre o que percebia que não estava correto, e não encontrava as palavras. Não sabia me expressar. Não deve ter sido por acaso que, com um pouco mais de conhecimento sobre a vida, troquei todo um talento por organização de espaços e o desejo de cursar Arquitetura, pelo ingresso na faculdade de Jornalismo.

Precisava aprender a me expressar. Até mesmo nas horas mais definitivas, as palavras não vinham. Nem com reza forte e muito esforço de concentração. Escrever sempre foi salvação para minha lavoura. Porque aquilo que não era bem formulado na fala, quando virava palavra escrita, ganhava outra estrutura lógica, outra perspectiva, e me oferecia outra condição, mesmo em situação desfavorável.

Esta é uma memória que me levará ao céu, Silvina Ocampo? Ou ao inverno? Não parece com leite quente. Mas faz efeitos na garganta do mesmo modo. Ardendo. Foram tantas palavras contidas, engolidas, deglutidas. No café da manhã, almoço, jantar. Muitas vezes sentia como quem quer andar e não tem pernas.

Só porque não tinha as palavras certas. E ficava tudo entalado. Pesando no peito. Ainda tinha uma natural tendência acusatória de quem deveria torcer e cuidar de mim. O que me fez reagir elegendo uma expressão recorrente, desde bem pequena: Não é justo! Era tudo que conseguia dizer. Nem lembro mais onde aprendi. Talvez vendo televisão, ainda em preto e branco.

Então descobri que se pode ferir com palavras. Na primeira oportunidade, vinguei injustiças e acusações levianas. Estava ela a criticar a casa do meu tio, que visitara àquela tarde. E que não tinha arrumação, isso ou aquilo.

- Mas tem televisão a cores – disse num impulso vendo pela primeira vez o silêncio atingir os lábios adultos, que tanto me encarceravam.

Pois é isso. Qual é mesmo a sabedoria em calar palavras? O que há de sábio nisso? Talvez seja preciso ensinar a escolhê-las bem, o melhor que pudermos, desde cedo. Embora muito antes seja necessário ensinar também um senso de ética, justiça e convivência, que estão muito além das palavras. Entranhados difusamente no emaranhado dos gestos e rotinas das famílias.

Sunday, September 22, 2013

A fórmula de Nietzsche

"increscunt animi, virescit volnere virtus"*
         Friedrich Nietzsche


Para viver sozinho é preciso ser um animal ou um Deus - diz Aristóteles - Ainda falta a terceira alternativa: é preciso ser os dois ao mesmo tempo - Filosofo... - completou Nietzsche. Em "Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com um martelo)", O alemão mais universal, mesmo que qualquer presidente do país, faz reflexões sobre o assunto que nós, mortais, entendemos menos que qualquer outra criatura nessa esfera terrestre: o apogeu. Algum estado superior que só atingem aqueles que, extraordinariamente "transvaloram" ao confrontar os valores. 

Melhor que tudo, então, é reproduzir o estudo que se encerrou numa data que bem podia ser celebrada como marco e que se aproxima: 30 de Setembro de 1888, em Turim. Dia em que Friedrich entregava suas conclusões escritas sobre a "Transvaloração de todos os valores". Segue o prefácio:

"Conservar a sua serenidade frente a algo sombrio, que requer responsabilidade além de toda a medida não é algo que exige pouca habilidade: e, no entanto, o que seria mais necessário do que a serenidade? Nada chega efetivamente a vingar, sem que a altivez aí tome parte. Somente um excedente de força é demonstração de força. - Uma transvaloração de todos os valores, este ponto de interrogação tão negro, tão monstruoso, que chega até mesmo a lançar sombras sobre quem o instaura - um tal destino de tarefa nos obriga a todo instante a correr para o sol, a sacudir de nós mesmos uma seriedade que se tornou pesada, por demais pesada. Qualquer meio para tanto é correto, qualquer "caso", um golpe de sorte. Sobretudo a guerra. A guerra sempre foi a grande prudência de todos os espíritos que se tornaram por demais ensimesmados, por demais profundos; a força curadora está no próprio ferimento. Uma sentença, cuja origem mantenho oculta frente à curiosidade douta em sido meu lema: 

"increscunt animi, virescit volnere virtus"*

Uma outra convalescença que sob certas circunstâncias é para mim ainda mais desejável, consiste em auscultar os ídolos.... Há mais ídolos do que realidade no mundo: este é meu "mau olhado" em relação a esse mundo, bem como meu "mau ouvido"... Há que se colocar aqui, ao menos uma vez, questões com o martelo, e, talvez, escutar como resposta célebre aquele som oco, que fala de vísceras intumescidas - que encanto para aquele que possui orelhas por detrás das orelhas! - para mim velho psicólogo e caçador de ratos que precisa fazer falar em voz alta exatamente o que gostaria de permanecer em silêncio...

Também este escrito - o título o denuncia - é antes de tudo um repouso, um feixe de luz solar, uma escorregadela para o seio do ócio de um psicólogo. Talvez mesmo uma nova guerra? E novos ídolos são auscultados?... Este pequeno escrito é uma grande declaração de guerra; e no que concerne à ausculta dos ídolos, é importante ressaltar que os que estão em jogo, os que são aqui tocados com o martelo como com um diapasão, não são os ídolos em voga, mas os eternos; - em última análise, não há de forma alguma ídolos mais antigos, mais convencidos, mais insuflados... Também não há de forma alguma ídolos mais ocos... Isto não impede, que eles sejam aqueles em que mais se acredita; diz-se também, sobretudo no caso mais nobre, : que eles não são de modo algum ídolos...

*"Os valores crescem e a virtude floresce, à medida que é ferida". 

"Mesmo o mais corajoso de nós poucas vezes tem coragem para o que propriamente sabe..."

Há mais de quarenta frases - pérolas. Inclusive dirigidas às mulheres. O que não é de se espantar diante do que passou Friedrich na convivência (e paixão) por Salomé, ao mesmo ao lado da irmã e da mãe dominadora. O texto completo: http://www.espacoetica.com.br/midia/livros/idolos.pdf

Perder o quê?

Amanda. Não sei por que uma pessoa pode ser chamada assim. Por que se escolhe um nome, que é feito para que os outros saibam sobre você, que pode dizer logo tanto do que a pessoa tem que deveria estar no lugar mais escondido. Mas este era o nome da menina: Amanda. Que tinha vocação para ser várias coisas, inclusive todas ao mesmo tempo. E que, por hora, deixou-se apenas ser Jardineira.

E Amanda tinha tudo que uma pessoa precisa na vida: um regador chamado "Coragem". Um leão de pelúcia batizado "Impulso" e um abanador, produzido com palha seca, a quem deu nome de "Entusiasmo". Nos dias frios e cor de cinza, o regador de Amanda precisava apenas de uma faísca de luz, uma chama acessa, para refletir, pelo metal tão bem polido, algum brilho. Logo espantava a preguiça e animava a manhã mais invernosa.

Então, Amanda se ponha cedo para fora da cama e ia, sorrindo, regar as flores do jardim, que ela entendia, não eram delas. Estavam ali para que fossem cuidadas por ela. Como se o Universo tivesse destinado a ela a missão de aguá-las todos os dias. Com aquela alegria tola de Amanda, de quem não enxerga os perigos e tem vocação para escolher palavras que despertam o melhor ânimo. Assim fez com cada petúnia, frésia, gérbera ou magnólia que brotara ali. Flores a quem Amanda insistiu em dar acento, porque bem lhe cabiam. Mesmo quando alguma delas, sem avisá-la, fazia-se chamar sem circunflexo, agudo ou crase.

Nos dias de muito sol, e da iminência da chegada da música nas ruas, por celebração da farta colheita, Amanda comemorou e vibrou pelo tanto de flores nas ruas. Fez tudo que estava ao seu alcance, e até mesmo além dele, para vê-las nos palcos, floreando. Amanda, na companhia de seu leão mais que querido, assistiu a tudo se reconfortando.

Impulso era um bichinho alto, com a juba espessa, loira, que parecia pendões de trigo balançando ao sabor da brisa ou do vento mais forte. Era como um girassol, de tantas pétalas, voltando sua corola para a estrela maior da via láctea. E, por uma inexplicável mágica, os caminhos abarrotados de gente, pelas ruas estreitas da cidade, festejando e dançando, se abriam num simples movimento de Amanda e seu leãozinho.

Outono e primavera passaram sem que Amanda sequer percebesse que as estações mudavam. A companhia da mascote preenchia os dias de forma que Amanda não sentia falta sequer das flores. Até que, de repente, num dia de vendaval, pois era o mês de Agosto, afinal. Amanda recebeu a visita de um carteiro. Uma estranha sensação invadiu o coração de Amanda. Os olhos do carteiro estavam voltados para o chão. E não se ergueram sequer para enxergar se as mãos dele miravam direito onde estavam as mãos de Amanda, para as quais a carta estava destinada.

Amanda não sabia o que fazer. A carta estava endereçada a ela, com seu nome e endereço, mas o que poderia conter de tão trágico ali? O carteiro seguiu o caminho de volta ao portão, sem sequer olhar para o jardim cultivado por Amanda. A menina, que já era moça a esta altura, segurou a carta com uma leve taquicardia. Antes de abrir, pegou seu espanador, espanou bem a poeira da estrada e desprendeu o lacre que, superficialmente, prendia a aba do envelope vermelho.

De dentro, saiu uma nuvem escura, cor de chumbo, carregada de tristeza. A carta dizia que aquele jardim não deveria mais ser cuidado por Amanda. Que tem este nome e nem ela mesma sabe por que ou para quê. Para que serve um nome que já diz de você, aquilo que deveria estar mais em segredo?

Amanda juntou todas as coisas que tinha. Que era tudo o que uma pessoa precisa: um regador, chamado "Coragem". Um leão de pelúcia batizado "Impulso" e um abanador, de palha seca, a quem ela deu nome de "Entusiasmo". E seguiu sua viagem até outro lugar. Outro jardim que se queira cultivar por Amanda.

Além do que a gente já sabe que Amanda tem, ela, às vezes, esquece que ganhou do universo, quando nasceu, a mania de perder. Amanda perde tudo que se pode pegar com as mãos. Então, perdeu aquela carta também. O que mais intriga, até os dias de hoje, já uma mulher, é que a vocação para perder lhe deu a ausência do medo. E isso é difícil de entender. Afinal, onde se abrigar nos dias frios? Sob que teto acolher pensamentos amadores, como estes, pertencentes à Amanda? Pode ter escapado um detalhe: Se perdeu o que tinha, embora reste o que alguém precisa ter, não há motivo para temer.

O fato é que, a mania de perder, tirou tanta coisa de Amanda, tirou tudo! Inclusive o que nem chega a ser bom conselheiro. Agora, que não tem mais motivo, Amanda terá coragem, impulso e entusiasmo para viver a própria vida? Quem sabe o extraordinário seja demais? E Amanda, finalmente aprendeu que o necessário faz viver em paz? Talvez troque flores por livros, e deixe de lado o ordinário e o extra. O que Amanda só entendeu com esta perda é que, para muita gente no mundo, é preciso estar em guerra, permanente, contra quem ama. E isso, está no nome de Amanda. Tem como evitar?




Saturday, July 06, 2013

Por empréstimo a Lorca

Pego, por empréstimo, 
palavras de Lorca, 
traduzidas por Oscar Mendes, 
por me faltarem faz tempo,
como água em regiões do Sertão. 
Na minha filosofia, é de direito
até a palavra alheia 
socorrer o cidadão e a cidadão 
do padecimento tísico 
da abstinência úmida:


Gazel do Amor Imprevisto


O perfume ninguém compreendia
 da escura magnólia de teu ventre. 
Ninguém sabia que martirizavas 
entre os dentes um colibri de amor. 

Mil pequenos cavalos persas dormem 
na praça com luar de tua fronte, 
enquanto eu enlaçava quatro noites, 
inimiga da neve, a tua cinta. 

Entre gesso e jasmins, o teu olhar 
era um pálido ramo de sementes. 
Procurei para dar-te, no meu peito, 
as letras de marfim que dizem sempre, 

sempre, sempre; jardim em que agonizo, 
teu corpo fugitivo para sempre, 
teu sangue arterial em minha boca, 
tua boca já sem luz para esta morte. 

Federico García Lorca, in 'Divã do Tamarit' 
Tradução de Oscar Mendes