Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.

Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz

Friday, May 28, 2010

As Risadas de Irene

Quando a gente é criança, ainda, algumas memórias parecem grudar. É feito superbond! A imagem, por exemplo, de uma borboleta em seu colorido dacordafelicidade... Mesmo sem saber falar direito, a gente vai arriscando: bo - bo - le - ta. Até o "r" chegar. "R", por esses acasos, de "risada".

Memória que eu tenho, entre as tantas, é da risada de Irene, a levada! Titia Irene era aquela tia que sempre trazia de presente pra gente uma piada nova. Um a tirada dos fatos corriqueiros que ela dizia e a gente ficava. Com a sacada e a risada de Irene. Risada boooa, Sonora! Zunindo no ouvido.

Como quando era chegada a hora do banho da criançada. Ela dizia: "minha filha, vai dar banho na borboleta, não?" E não tinha como não abrir um meio sorriso de surpresa, enquanto ela franzida a sobrancelha, se ria... E a risada zunia enquanto a sugestão se cumpria.

Consigo ouvi-las agora mesmo. As risadas. E lembrá-las. Memoráveis tiradas de Irene. No último dia das mães, ela ali sentada miudinha com seu humor enorme, de repente teve um passamento. O primeiro dia foi de susto. Os outros seguidos de tormento.

Enquanto era levada para o hospital, titia Irene fazia esforço para levantar os olhos e fitar os sobrinhos netos a carregá-la, às pressas. Eles a socorriam e ela recobrava os sentidos. Foi só resgatar-se um pouco e logo que perguntaram "tá melhor tia, tá sentindo alguma dor?". Ela ainda pálida, abatida, respondia: "só no olho do porco. E aquele batimento na perseguida".

Borboleta de Irene, ali estremecida, foi mesmo perseguida por Severino. E acabou sendo por ele "possuída", como dizia titia. Fugiram juntos aos poucos anos de vida. Ali, naquele momento em suspenso, Tio Severino em seus passos lentos fez todos os movimentos na direção de Irene. Corpo espichado, braços e mãos estendidas. Seus olhos pareciam perguntar: "para onde estão levando a minha alegria?" Até que da boca sai a frase afinal: "me levem junto, me levem com Irene".

A cena partiu o coração do parente mais indolente. Enquanto esperava para ser atendida na emergência do hospital Irene se refazia. Mas o humor não perdia: "pra quê tanto sangue seu moço, da veia dessa velha tia? Vai fazer uma cabidela é?" E o enfermeiro - até então absorvido pela correria - se ria: "essa vai sair logo daqui. É só dar um jeito na anemia"... A gente também tinha certeza que irene logo dali sairia, em dois ou três dias. Tempo previsto para exame que - segundo o médico - diria se Irene corria ou não risco de novo infarte.

N'outro lugar do mundo titia Irene não esperava. Mas como foi tudo mesmo por aqui, o tempo que demorou numa cadeira na emergência Irene fez os pacientes esquecerem suas dores e tristes memórias recentes. Se lá vinha mais uma injeção, em seguida vinha mais uma tirada de Irene: "tá bom enfermeiro, não tem mais nem onde furar. Só onde meu velho já passou e aí eu não dôo". E a risada se ouvia. Um instante de alegria feito tábua de salvação naquele rio de dor perene.

Quando foi, finalmente, transferida para um leito na enfermaria, a emergência do hospital, que nem tio Severino, sentiu. Estendeu-se em reclamações por perder as tiradas e as risadas de Irene. Já imaginou? Naquele mundo de espera insólita e barulhos de sirene, que delícia! ouvir as risadas de Irene...

E ela brincando com tudo aqui, dizendo: "Se aperrei não minha gente, é só um pulinho ali nas Europas". A última notícia que tive foi de que precisava de sangue. Nem deu tempo das furadas por agulhas que serveriam a Irene, infelizmente. Minha tia tinha tantas tiradas, mas sangue dos outros, mesmo carecendo, não mais precisava.

Restou agora essa lembrança grudada. Feito superbond. Efeito borboleta. Batendo feito asas no juízo da gente. Em sua vida de gente humilde, sacrificada, titia Irene deixou uma lição que sustente! Faz fazer uma pergunta que já tem resposta: "por que será que entre tantas memómiras sonoras, a risada de Irene é a que mais fica presente?"

Pra dar a resposta sem rodeios, mesmo enxergando do lugar do meio, estou certa do porquê: Irene sempre escolhia em meio às tristezas, aperreios e fatos corridos da vida fazer piada com eles. Tudo sempre foi receita para uma risada nova!

Fico olhando pros filhos, netos, sobrinhos que Irene deixou me perguntando qual deles herdou seu talento? A verdade é que agora que a borboleta de Irene voou, a família ganhou mais uma tirada de Irene. Até na sua retirada partiu vinte anos e um dia depois que a mãe Joaninha. Depois de um passamento em pleno festivo dia das mães.
Refogado

Tremo e não é de frio ou de medo. É de raiva. Sim, pelos sustos que tenho com o mundo... Tremo de frustração e de angústia. É raiva contida. Pelo meu modo simples. Tremo de horror e de revolta. Infantil demais?

Sim. A minha criança anda mesmo muito comigo, ultimamente. E é por tomar, vez por outras, seus olhos emprestados que vejo o mundo em susto e horror. O que enfrentam esses pobros olhinhos infantis nos dias de hoje... Minha criança, por fortúnio, não está sozinha. Anda na companhia do meu adulto. Por isso não há em seus olhos traço de sentimento pior: o abandono.

Mesmo com a voz ainda presa, o adulto fala por ela, quando é necessário. Embora nem sempre seja preciso. Mesmo em espírito deformado, por trêmulo, esse adulto está sempre com ela na lembrança e em sua presença vem socorrê-la. E vice e versa.

Mesmo no caos que se apoderou desse adulto, os pensamentos se organizam pela companhia da criança. Diante de quaisquer sentimentos, os pensamentos se organizam. Com raiva ou desesperança, o adulto se organiza diante desse destempero. Dessa destemperança.

Esse adulto que também sou enfrenta ainda com alguma coragem por estar perto da criança. Os horrores que, por desventura, se atrevem a atravessar em seus caminhos. Para proteger a criança, o adulto se organiza e mentaliza. Age com a mente. Com a razão. A união vai diluindo a raiva e revisa os fatos. A situação é cortada em pedaços feito carne para refogado. Tudo que escapou no momento do enfrentamento é fatiado.

Nesse mesmo instante revejo de um lugar mais alto. O que está mesmo em questão não foi ainda revelado em meio ao picadinho de frases em fúria, mal postas na mesa.

Wednesday, May 19, 2010

Recife Inverno


"Aceita um café? Vou buscar! Talvez tenha adoçado demais...". Bebo em solitude. Às vezes o Recife é tão triste quanto um pão francês dormido e mofado. Ali abandonado em seu saco de papel escuro de quem não serviu a banhar-se em leite e ser tornado fatia parida. Como diriam em mesas de natais; "feito rabanada"! Seu inverno é úmido e abafado.

Não fosse tão úmido e verde escuro estaria agora polvilhado em açúcar e canela. Serveria mais se fosse apenas um Recife duro. Faria sorrindo em rodelas a alegria de meninos e meninas em cafés da manhã de ternura, em festa! Com presença de carinho de mãe no jarro de vidro sobre a mesa.

Mas no seu inverno o Recife não é assim... É cigarro molhado, feito charco de cinco mil substâncias para matar ratos e baratas. Socorrer por baratos o sujeito incauto em beco coberto de marcas. É mais triste que abandono de recifense esquecido na parada pelo último ônibus que passa apressado.

É noite de perigo e o Recife nunca pôde dar abrigo definitivo aos que vão se desmanchando feito papel pelas encostas. Recife nunca pôde se dar de presente em caminhões de lata para crianças que aprendem cedo a brincar com aquilo que mata. Meninos e meninas que guardam seus desejos, sonhos de brinquedos, por minguados que faltam. É overdose de desespero, de pancada, de dor que não passa...

Recife, no inverno, às vezes não vai nem com o café mais adoçado do amigo vigilante que me espia escrevendo em bloquinhos no assento do carro. Não Recife, não bastará teu carnaval para me fazer feliz. Rezo pela cartilha de Neruda que me diz do homem, da mulher, do pão e do vinho. Da mesa, da morada...

Homeless que sou, me abrigo em lugares distintos. Um dia um, n'outro outro. E assisto a seu modo o Recife oferecer um sorriso ao me olhar no rosto, feito reconhecimento, e a um só tempo, me expulsar. Justo em momentos que nos faríamos quites. Não, eu não entendo. É meu amigo vigilante quem vem e consola minha fragilidade de osso exposto. De criatura feita de mola.

Eu que ora sou espicho, ora rolha. Espicho e encolho. Numa hora pingo, mergulho e afogo. Quem dera não tivesse sequer encharcado... Podeira apenas dizer como imagem da minha tristeza que me sinto um desses pássaros capturados, logo de manhãzinha, nas matas atlânticas de teus arredores, Recife.

Cruelmente, esses homens que não têm o que fazer, nem se darão ao trabalho, usam outros canários para atrair suas presas. É assim no sexto e em outros quilômetros da Aldeia. Testemunho em gritos de buzina para espantá-los. Mas a verdade é que não vou conseguir socorrê-los ou fazê-los correr dali. Fugir das arapucas montadas em cercas rentes ao pasto.

Capim que sou só me resta acender esse cigarro molhado, sacar o bloquinho enquanto espero o ônibus. Meu único brinquedo. Eu que perdi meu caminhão de lata... E beber com alguma alegria matutina o café "talvez adoçado demais" do meu amigo vigilante. Para quem agradeço num cumprimento tímido, sem abraço.

Thursday, May 13, 2010

Grão de Razão


É tamanha solidão que expõe ao risco de perder-se. E no entusiasmo semelhante ao de uma criança, na euforia por algo novo mesmo que não seja bom ou real, nisso está a chave de acesso ao perverso.

Sem segredos a vida vira uma sucessão de fatos banais e de atos insólitos. A incredulidade de quem guarda um segredo faz dessa pessoa algo que se pode tocar. Como uma peça de madeira maciça.

A busca que hoje move a existência procura por um espaço onde não enxego palmo de mão diante do nariz porque fixo os olhos no chão. Não compreendo e por isso fui me tornando mais real. Por que há ganhos em não compreender? Quando compreender era ainda tudo o que queria. A intensidade é de um desconhecimento absoluto. Não posso ser atingida senão pelo caminho oposto da razão. São os instintos que me guiam nesse escuro. A luz acessa vai tornando meus sentidos despertos e os instintos desérticos.

Estou terna comigo mesma no dia de hoje porque espero pela aparição de Fátima. Não me obrigo mais ao silêncio. Não há mais imobilidade em mim. DOu-me ao desejo como um reflexo. Repetidas vezes te quero olhar de corpo inteiro. Até a exaustão. Não abandono mais o querer-te.

Meu desejo motor me tira do nada. Do meio do oceano. Do meio da estrada. Caminho certa por entre retrovisores ou navego por entre as ondinas do alto mar. Só desaparecerei por obra de uma tempestade descomunal. Sei que não há recompensa. Há o perigo ou a mansidão. Escolhe o primeiro.

Como um ser humano cheio de necessidades. Necessidades e vicissitudes que não se encontra no mercado. Nem se poderia guardar num armário. Não diminui minha existência. Meu mistério é que não está mais ao alcance de mim. Meu senso de direção foi afastando-me dele. COmo uma bússula confusa. Ao mesmo tempo em que expresso apenas o que está no desejo de compreensão do outro mais abandono a complexidade do pensamento e me aproximo da inteireza da vida. O imenso agora é apenas um grão de areia que machucava a retina. Eu grão de feijão.

A mesma ternura que guardo para meus filhos vem se traduzindo em mim na aceitação do amor. E o que sempre foi meu maior medo transforma-se em minha grande liberdade de viver. O que me causava susto e temor agora me dá asas. Logo elas que me abandonavam no primeiro piscar de olhos da pessoa amada.

A crença na minha inutilidade é o que está me fazendo servir a senhor que antes eu não me atreveria. Se há mesmo um Deus sobre todas as coisas ele não deve apenas escrever certo por linhas tortas como também desenhar seu plano em páginas sobrepostas.

Seu roteiro surpreende os desavisados que confiam sua pena à mão solta do coração. Enquanto estou faminta alimento meu espírito com teu timbre sonoro. Chego a entender a loucura de um maestro que harmoniza tantos instrumentos. Escapou um assovio de pássaro do campo.