dAccordaFelicidade:
Lugar onde se está de acordo com o modo do humano de ser feliz.
Lugar da delicadeza com o outro e com a própria Liberdade.
Onde se está de acordo com o único modo do humano de ser feliz
Friday, October 14, 2016
Alguém me ensine a não amar Bob Dylan
Alguém me ensine a não amar Bob Dylan! (2006) (Muito antes do Nobel)
Aos 16 anos, lembro que, apesar de tão pouco conhecimento sobre fundamentos da Astrologia e as reais características próprias de cada signo, eu já detinha um medo intuitivo de ver meu pobre coração virginiano, naquela época habitante também de um corpo virgem, sucumbir por nascidos geminianos, não por nada, mas pela dualidade. Como dizia Ariano, "dizem que somos dois seres num só, mesmo entendendo que estão nos chamando de duas caras não é tão ruim assim". É Ariano, apesar do nome, era de Gêmeos e de um dinamismo enquanto"filho de Hermes" que dispensa apresentações . Ainda hoje tenho viva a imagem dele caminhando na Praça de Casa Forte. E a que velocidade! Bah, quem dera fazer algo semelhante depois dos oitenta. Mas vim aqui falar sobre outro geminiano. Hoje, muitos anos depois ainda estou apaixonada por Bob Dylan, agora perdidamente. E não tem cura. Ele é a própria definição do termo 'mercurial'. E que modelo de um corpo em ação! Sua maior caraterística, ele mesmo definiu no livro Crônicas, "a velocidade". Bem típico de geminiano. Velocidade em absorver informação, em produzir canções e versos, "de comunicar com pares e público" (Bravo, Maio 2005).
Quero ter medo de Bob Dylan. E ficar longe de seu poder de sedução sobre mim, mas não consigo evitar o atrevimento de desejá-lo, como homem, depois de sentir na pele Blowin' in the Wind, tão velhinha a criação e me pegou jovem. Quando nem era projeto meu a paixão. Quando foi feita eu nem ao menos era nascida. Minha mãe era uma menina ainda em seus 14 anos. Quando Robert Allen Zimmerman fez a canção nascer, ele tinha 22 anos. Bob chegou nesse mundo no dia 24 de maio de 1941. E está na idade certa agora, 65 anos.
- "Mas eu era tão velho nessa época, sou mais jovem que isso agora" (DYLAN, 1964)*
*My Back Pages
(Suspiro)
-AAAAAAAlguém me ensine a não amá - lo por completo e me perder novamente! O problema é que sei amar com tanta força, que me perco. Destempero. Nunca sequer fui boa de cozinha. Queimo até a pizza, quanto mais a linha regulamentar necessária a um bom relacionamento. E mesmo fazendo com requinte um crepe fininho e delicado, erro a mão no sal. Meu jeito de viver, entre livros de Nietzsche e panquecas é puro sal. Não era bem isso que eu queria dizer. Vou tentar novamente. Quero amar pessoas de verdade, com qualidades e defeitos e não amar tão perdidamente Bob Dylan. Quando era criança, vi minha mãe beijar o poster do Roberto Carlos. Não foi só a parede da casa que ficou para sempre marcada. Bob Carlos, ahã. Exatamente. Não quero repetir o padrão. Já basta todo esforço em manter longe dos olhos a memória e da memória as sessões intermináveis de lps na vitrola aos sábados. Mesmo querendo me fazer entender, o caso é outro, não consigo fazer deter o desejo de casar com Bob Dylan. Este é o meu caso.
Alguém me ensine a gostar mais ou menos dele, somente dia sim, dia não...
Percebo que, nem que apaguem de todos os lugares Blowin' in the wind, eu conseguiria. Não fica fácil.
Ainda que todas as páginas configuradas na Internet sejam deletadas não será impossível, aos meus ouvidos parece, ainda mais depois que foi este, por dois anos, o toque do meu celular.
Olho as revistas e encontro com seu olhar distante, misterioso, Bob, na tela do pc, apenas saca o violão e toca (para mim) a canção.
How many roads must a man walk down
Before you call him a man?
Yes, 'n' how many seas must a white dove sail
Before she sleeps in the sand?
Yes, 'n' how many times must the cannon balls fly
Before they're forever banned?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
How many times must a man look up
Before he can see the sky?
Yes, 'n' how many ears must one man have
Before he can hear people cry?
Yes, 'n' how many deaths will it take till he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
How many years can a mountain exist
Before it's washed to the sea?
Yes, 'n' how many years can some people exist
Before they're allowed to be free?
Yes, 'n' how many times can a man turn his head,
Pretending he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
E eu que estava tão triste e tão feliz em passar um tempo sem pensar nele.
Não suporto sentir nada mais que a verdade. E como a vida tem sido
de casos sem altos nem baixos, no meu coração só ficou a marca de Dylan. Uma constância de amor que está me matando. Eu que já fui chamada de benzinho, mon Cher, lady Cat, de Montanha e até de minha mulher, que é legal pelo menos parecia simples.
Estou me desfazendo ao querer amar de verdade o Dylan. Ainda acabo virando pó. Estou certa de que serei eu levada pelo vento!
Tensão de amor de novela. típico paradoxo de desejo fadado ao dramalhão. Falas em pausas, enquanto meu cérebro e coração são dominados como que por refrão. E juntos, de modo uníssono, vão repentindo:
ALGUÉM ME ENSINE A NÃO AMAR BOB DYLAN!!
Saturday, December 19, 2015
Uma crítica para a
viceralidade dos corpos em
“Na Estrada”
“Escrever é
também devir outra coisa diferente de um escritor. Àqueles que lhe
perguntam em que é que consiste a escrita, Virgínia Wolf responde:
Quem é que vos fala em escrever? O escrito não fala disso está
preocupado em outra coisa”.
Gilles Deleuze
RESUMO
Este estudo analisa
a apresentação dos corpos no filme Na
Estrada
de Walter Salles Júnior. A narrativa de inadequação de tais corpos
- enquanto corpos americanos do pós guerra - ao conceito de
sociedade dos anos 50, na obra de Jack Kerouac. O romance estradeiro
serve como metáfora do que a nova geração de corpos humanos deixou
para trás. Ressignificando o conceito de loucura. Redesenhando a
trajetória dos corpos, redefinida pelo formato da estrada, em sua
linearidade do deslocamento.
SUBSTRACT
This study analyzes
the presentation of bodies in the film On
The Road, by
Walter
Salles. The narrative of inadequacy of these bodies - while American
bodies postwar - the concept of society '50s, in the work of Jack
Kerouac.The Roadster romance serves as a metaphor for what the new
generation of human bodies left behind. Giving new meaning to the
concept of madness. Redesigning the trajectory of bodies, redefined
the road shape in its linearity of displacement.
I - INTRODUÇÃO
"As únicas
pessoas para mim são os loucos, os que estão loucos para viver,
loucos para falar, loucos para ser salvos, desejando tudo ao mesmo
tempo, aqueles que nunca bocejam ou dizem uma coisa banal, mas
queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas romanas explodindo
como aranhas através das estrelas "
Jack Kerouac
No romance
estradeiro da geração beatnik Na
Estrada (On The Road, Viking, 1957),
escrito nos anos 50 por Jack Kerouac, os corpos estão em constante
movimento de adesão às circunstâncias apresentadas naquele período
do pós guerra nos Estados Unidos da América do Norte. Em negação
ao padrão vigente, tais corpos cumprem uma diferente trajetória e
um “padrão” de vida que se identifica no formato oferecido pelas
rodovias que cortam o país. A inadaptação desses corpos ao modelo
de sociedade imposto na época onde a propaganda e a modernização
(industrialização) foram introduzidas e entranhavam-se à rotina do
cidadão americano. Corpos em estado de alerta. Varando madrugadas.
Atravessando as estradas. Alguns aspectos serão destacados destes
corpos mutantes e de geografia constantemente mutável: O constante
deslocamento migratório desse indivíduo (que dispersou da manada da
qual fazia parte para interagir com comunidades estranhas ao universo
dele) prevê um avançado processo de comunicação (aguçamento dos
instintos de sobrevivência), o exercício da aceitabilidade
imediata, da empatia com os outros corpos de passagem pela mesma
trajetória; a flexibilidade das convenções estabelecidas em
ambientes fixos (cidades, bairros, condomínios, famílias, círculos
de amizade), a histeria sexual e superpotência do conatus quebrando
padrões comportamentais que inclui sono, tolerância ao álcool e
outras substâncias tóxicas.
I - INTRODUTION
“The only
people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to
talk, mad to be saved, desarious of everything at he same time, the
ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn,
like fabulous Roman candles exploding like spides across the stars”.
Jack Kerouac
In the road novel of
the beatnik generation On
The Road (On
The Road, Viking, 1957),
written in the 50s by Jack Kerouac, the bodies are in constant motion
accession to the circumstances presented in that post war period in
the United States of North America. In the denial current standard
such bodies meet a different trajectory and a "standard" of
life that identifies the format offered by highways that cross the
country. the inadequacy of these bodies to the model of society
imposed on the age where advertising and modernization
(industrialization) were introduced and entrenched to the American
citizen routine. Bodies on alert. Piercing dawn. Crossing the roads.
Some aspects will be highlighted these mutants bodies and constantly
changing geography: Constant migration shift that individual (who
dispersed the herd from which part to interact with foreign
communities to his universe) provides an advanced process
communication (sharpening of survival instincts) , exercise immediate
acceptance, empathy with the other bodies passing through the same
path; the flexibility of conventions established in fixed
environments (cities, neighborhoods, condominiums, families,
friendship circles), sexual hysteria and conatus of superpower
breaking behavioral patterns including sleep, tolerance to alcohol
and other toxic substances.
II - O DISCURSO
SOBRE OS PAIS E A PATERNIDADE PERDIDA
“Meu pai olhou a
minha mão e disse, não tem calos. Isso é por que você não
trabalha”.
Sal Paradise, no
filme “Na
Estrada”,
de Walter
Salles, baseado no romance de Jack Kerouac
A aventura do
personagem de Jack Kerouac, Sal Paradise, que em poucas páginas irá
conhecer o frenético e admirado Dean Moriarty (Neal Cassady) - um
sedutor vagabundo egoísta e auto-centrado ao ponto de se tornar o
centro das atenções dos poetas que compõem o grupo de Sal, como no
caso de Carlo - começa com a morte do pai. O pai que é também o
grande fantasma que assombra o espírito livre de Dean Moriarty. É
pouco depois da morte do pai que Sal irá dar início à grande
aventura de cruzar o continente americano, estando ou não na
companhia de Moriarty e do séquito de admiradores dependentes da
energia e do brilho de Dean que o cercam. Sal também acabava de se
curar de uma doença que tinha a ver com a morte do pai e a “medonha
sensação de que tudo estava morto”. É sob o impacto da notícia
de que Dean (Neal) estava em Nova York, depois de cumprir o período
da pena no reformatório. O delinquente juvenil envolto em mistério,
recém-casado com uma garota de 16 anos, chamada Louanne. Tomando
como referência o livro de Gilles Deleuze A
Literatura e A Vida,
e que o devir escritor está em outro lugar, e não nele mesmo, nas
memórias ou na infância, caso contrário seria obrigado
compreendê-lo numa visão psicanalística “pai-mãe”,
compreende-se rápido o que pretende Kerouac ao matar o pai de Sal,
pouco antes que a história comece.
“Escrever é
também devir outra coisa diferente de um escritor. Àqueles que lhe
perguntam em que é que consiste a escrita, Virgínia Wolf responde:
Quem é que vos fala em escrever? O escrito não fala disso está
preocupado em outra coisa”.
Gilles Deleuze
Com o pai morte (ao
contrário do pai de Dean/Neal que anda perambulando como um mendigo
ou bêbado nas ruas e assombrando o personagem com suas aparições
ou falsas aparições) Sal pode empreender a viagem que não passava
do estágio da intenção, dos planos, para se configurar na
realidade, enquanto a vida dele “Na Estrada”. Diria Deleuze que
este é um grito de um animal não domesticado ou domesticável, um
grito que é pode ser apreciado por que se trata mais de uivar para a
lua. Como explicita o poema de Allen Ginsberg. Para Dean Moriarty,
retratado como um americano forte, saudável, olhos claros e loiro,
no filme (adaptação) de Walter Salles, “o
sexo era a primeira e única coisa sagrada e importante na vida,
ainda que ele tivesse que suar e blasfemar para ganhar o pão”.
Este corpo de Dean Moriarty vai ser mostrado e se mostrar no romance
e no filme como máquina de fazer sexo com homens e mulheres. De
máxima potência. A morte do pai, e com ele dos significados
existenciais, como laços de família são desfeitos. Passam a não
existir como norma. O corpo de Dean Moriarty e os corpos que lhe
cercam comungam da ausência de regras. Corpo movido por excessivo
conatus. A Paixão pelo sexo é o princípio motor da vida, dos
encontros, tudo que pode ser vivido a partir do acaso. Ao contrário
da figura do pai de Sal, extinta e que não lhe causa mais a dor
existencial de antes da chegada de Dean (Neal Cassady), a figura da
mãe vai estar presente quando, sem qualquer aviso prévio, ele
baterá à porta da casa de Sal pedindo para que ele o ensine a
escrever. O feito teria sido sugerido por ocasião da visita de Sal à
espelunca onde estava hospedado Dean com L. em frente ao café do
Hector, que virou uma referência para Dean depois de um encontro
casual com o dono do lugar que iria abrigar o casal. Nessa visita,
Sal narra o despudor de Dean que recebe a ele, Chad e Carlo (no filme
propositalmente “confundido” com o fictício Leon Levinsky (na
realidade Allen Ginsberg), abrindo a porta sem roupa (no livro, de
cuecas. No filme, sem ela). Louanne pode ser vista pelos visitantes
também nua em pele, no filme. Enquanto no livro, ela pula da cama
onde acabaram de fazer amor. Não é descrito no livro que, neste
momento, Dean ordene que ela se levante para fazer um café para
eles. Mas que o dono do pequeno apartamento estaria na cozinha
fazendo o café, enquanto Dean se ocupa do sexo com L. que é o que
mais importa na vida.
O incomôdo que vai
levá-la a denunciá-lo e fugir para Denver se traduz numa
indiferença de Moriarty às necessidades vitais dela, como
alimentação e higiene, ou ao que mais se passa com ela. No livro,
fica em aberto o número de motivos, verdadeiras razões para que ela
colocasse em risco (novamente) a liberdade de Dean. Embora o narrador
oferece à visão do dia seguinte ao encontro no tal pequeno
apartamento onde passaram a noite toda na farra, fumando, bebendo e
emporcalhando o lugar, quanto então Dean acorda Louanne para que ela
limpe e dê conta da faxina, submetendo-se a todas as vontades dele.
O pai de Sal (ou narrador) está morto nesta hora. Por que a
narrativa dele enxerga o lado dela. Defende o direito dela de
continuar dormindo e não ser acordada para limpar o que todos
sujaram. A aceitação de Sal à fragilidade do caráter de Dean
diante dos seus desejos. A importância da morte do pai para esta
etapa onde entra em vigor uma nova ordem pode ser relembrada na
história de vida do filósofo de Amsterdã, Benedito Espinosa, que
enquanto o pai estava vivo acreditava que seria uma afronta, ou
provocar sofrimento ao pai dele, Miguel, nascido judeu, convertido
cristão-novo sob ameaça da morte dele e dos filhos. Toda a
filosofia libertadora do polidor de lentes do século XVII começa a
ser escrita em 1660 e publicada em 1663, quando Bento (como seu pai
chamava) já tinha 28 e 31 anos, respectivamente. O pai morrera antes
mesmo da excomunhão em 1647, ano fatídico em que Espinosa, nascido
em 1632 completaria 25 anos. Assim como a filosofia de Espinosa nasce
depois da morte do pai, da mesma forma tem início a vida “On
the Road”
de Sal paradise, do próprio Keroac. Para quem compôs Ray Charles,
aconselhando-o a “bater a estrada” - ou “pegar a estrada”
(“hit
the road, Jack”).
Música, filosofia de Espinosa e romance estradeiro de Kerouac - o
filme de Walter Salles? - tornam-se hit.
“Ele
estava me enrolando, eu sabia, ele sabia que eu sabia (essa era a
base do nosso relacionamento)”.
Ou seja, o oposto da função, do papel, do esteriótipo do pai: o
anti-édipo. Corpo livre para todo tipo de sexo.
III - A vida de
animal livre do homem. Reescrevendo trajetórias e percursos da raça
humana
“Não temos um
corpo somos um corpo”
Maurice
Merleau Ponty
O livro “On
The Road”
é uma reescritura da realidade e do ritmo de vida dos corpos nos
idos anos cinquenta, nos Estados Unidos. O homem, animal racional, se
desloca pelos Estados da Confederação Americana e ultrapassa suas
fronteiras (chegando também ao México e Argentina), num constante
movimento migratório solitário. Um initerrupto deslocamento
geográfico e de si mesmo. O modelo intitulado de “vida
na estrada”
é adotado a partir da quebra, de alguma ruptura no afeto, na conexão
com o ambiente social. Foi o que se deu na vida de Sal. Após a perda
do pai e a chegada do enigmático, louco, insaciável, voraz, vivaz e
esperto Dean Moriarty a Nova York, Sal Paradise - assim como outros
do seu grupo, inclusive o próprio Dean - passaram a se deslocar indo
“passar” por Virgínias, Carolinas, Ohio, Alabama, Luisiana,
Texas, Novo México. Nunca morar, como diz a canção Tom Wait, na
abertura do filme de Salles “Home,
I’ll never be”.
Imaginemos um rapaz de vinte e cinco anos saindo de Nova York
encarnando um espírito de descobrimento e revelação do mundo
(interior e exterior)
V - REFLEXÕES
SOBRE A OBRA CINEMATOGRÁFICA
Em entrevista ao
Segundo Caderno, do Jornal O Globo, de 17 de março de 2012, o
produtor de cinema romeno, Martin Karmitz, de 73 anos, fala sobre o
trabalho com o cineasta brasileiro Walter Salles, realizador, em
parceria com a Zoetrope, produtora de Francis Ford Coppola e a Film
4, da adaptação ao romance de Jack Kerouac (1922 – 1969), "On
the road". Disse ele: “Só um cineasta com formação cultural
plural como a de Walter Salles, um homem viajado, poderia alcançar
uma tradução possível para a obra de Kerouac”. A afirmação
pressupõe estreita relação da experiência de vida do cineasta
possibilitou ir além do conhecimento ou afinidade com autor e o
estilo de vida daquele grupo de jovens da época na construção do
espírito impresso na película. O romance marcou época e
influenciou gerações. Não apenas entre os Beats. Em contraponto,
nos jornais de pernambuco, o premiado cineasta Cláudio Assis afirma
- durante lançamento do filme dele “Febre do Rato”, em 22 de
Junho de 2012 - que não viu nem precisa ver o filme feito por
Salles. Talvez por considerar insuficiente argumento da afinidade de
estilos de vida dos viajantes em questão. Ou por condenar as
escolhas feitas no impacto midiático do filme.
O caráter de
conhecimento profundo de um tema para que seja alvo de crítica é
desconsiderado por Assis, que o sugere empirismo agregue mais valor
ao cinema que o próprio resultado estudado por críticos. De forma
precisa, sobre a matéria prima da massa cinzenta do Cinema
Brasileiro, Octávio Paz, chama atenção sobre a importância do
ritmo da obra em audiovisual:
"o valor
está nos signos que nos revela e na possibilidade de combiná-las,
possibilidade que só se dá como construção rítmica, noção de
pausa e aceleração, rarefação e excesso, silêncio e estrondo,
ligação e fissura, mecânica e delírio".
Octávio Paz
Em resumo, a
respiração: com o espectador um documentário é máquina de
significar. O que há para ser filmado são os ritmos do mundo.
“Falta-nos pensar a questão do ritmo na integralidade”. É a
proposta de Cezar Mingliorin, em artigo da Cinética. E no lugar de
adaptação, usar o conceito de transposição, sugere Beto Brant. É
preciso acreditar na captura do instante diante das câmeras. Caso
contrário não será solucionada interface entre obra de ficção
documental. Ensinou com sua obra o fotógrafo francês Henri Cartier
Bresson. Também na documentação da realidade. O filme divide a
narrativa frenética e ininterrupta de Jack Kerouac em espaços
contados, quase milimetrados, de imagens dos corpos na estrada e nos
ambientes onde o enredo é contado. A abertura chega a ser
matemática. Cerca de cinco minutos para cada ambiente. A música e
trilha sonora fariam por si a captura do leitor andarilho ou beatnik.
Apesar de todo argumento, não viverá pela eternidade ou pelo tempo
que sobrevive o romance Kerouaquiano.
Bibliografia:
KEROUAC, JACK. On
The Road. New York City, Vicking Press Book, 1957
PAZ, Octávio.
Signos em rotação. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2003.
PAZ, Octávio. O
arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
BRESSON, Robert.
Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras, 2008.
BRESSON, Robert.
Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras, 2008.
SALLES, WALTER.
MARTIN KARMITZ. “On The Road”, Zoetrope, Film4, 2012
O GLOBO. Segundo
Caderno. 17 de Março de 2012.
Imagino-me numa máquina de escrever Hemington 15. A primeira que comprei com meu primeiro salário. Aqui, revejo minha colaboração ao portal de Literatura e Poesia, Interpoética:
|
Para
conseguir terminar a leitura de meus romances em paz, ficava debaixo da pia
do banheiro, por trás de um pequeno box. Escondida e sozinha num
canto contendo a emoção pela história e o fim inevitável e próximo. Os
anos passaram, também as três primeiras décadas. E tudo caminhava
diferente do planejado pela menina recolhida em seus livros. Num belo
dia, com o céu de um azul intenso, clarinho e cheio de pássaros,
recebi um telefonema que mudaria a vida. Era uma poeta do sertão,
respeitável, uma amiga querida, que fazia o convite para assinar
esta coluna, esta mesma que você leitor interpoético, lê neste
exato intante da noite ou do dia.
Era como se a poeta amiga fizesse uma proposta parecida à que fazem os pais aos filhos: andar de bicicleta sem rodinhas. Onde está a mágica sensação que torna esse domínio do necessário equilíbrio possível? E a menina que fui, com semelhante habilidade para façanhas como da minha filha (Lore leu 5.386 páginas do fenômeno Harry Potter num só mês de férias, além dos livros propostos pela escola como Os Miseráveis, de Victor Hugo, e O Nariz, de Luís Fernando Veríssimo), teria agora o desafio de também escrever.
Era como se a poeta amiga fizesse uma proposta parecida à que fazem os pais aos filhos: andar de bicicleta sem rodinhas. Onde está a mágica sensação que torna esse domínio do necessário equilíbrio possível? E a menina que fui, com semelhante habilidade para façanhas como da minha filha (Lore leu 5.386 páginas do fenômeno Harry Potter num só mês de férias, além dos livros propostos pela escola como Os Miseráveis, de Victor Hugo, e O Nariz, de Luís Fernando Veríssimo), teria agora o desafio de também escrever.
Aprendi a ler, depois do
curso sobre Literatura Pernambucana com Luzilá e uma especialização
em Literatura Brasileira com uma seleção de professores de causar
inveja, além da autora de “Muito além do corpo”, incluindo
Lourival Holanda, Alfredo Cordiviola, Zuleide Duarte. Além de Ivana
(didática) e José Ricardo (metodologia). Mestres que ajudaram a
concretizar em mim o eterno e o etério da Literatura. Como na origem
da criação do perfume, que em sua evolução/tempo espaço, começou
com uma invocação dos Deuses, o auxílio do fogo e, por
conseguinte, da fumaça, transformei o ar que respirava em uma
monografia, inspirada na obra de Clarice Lispector, também publicada
pelo Interpoética.
Mesmo infantil e cheia de erros, as publicações atraíram a primeira editora a convidar para publicação de um livro. Uma ocasião em que pude repensar, por quatro longos anos, tudo que tinha escrito. E de perdoar-me pela péssima literatura que tenha produzido. Também das asneiras ditas solta das amarras. Então passei a escrever como o homem que espreme os peixes que rouba do rio, no meio fio, ao meio dia. Usando a caneta para martelar a cabeça, como ele usava uma pedra sob o asfalto cobalto. E sucederam as festas, os encontros, os lançamentos, jornadas, aulas, palestras as trocas, livros e mais livros. Dia e noite, noite e dia, pensava no umbigo de vidro.
Mesmo infantil e cheia de erros, as publicações atraíram a primeira editora a convidar para publicação de um livro. Uma ocasião em que pude repensar, por quatro longos anos, tudo que tinha escrito. E de perdoar-me pela péssima literatura que tenha produzido. Também das asneiras ditas solta das amarras. Então passei a escrever como o homem que espreme os peixes que rouba do rio, no meio fio, ao meio dia. Usando a caneta para martelar a cabeça, como ele usava uma pedra sob o asfalto cobalto. E sucederam as festas, os encontros, os lançamentos, jornadas, aulas, palestras as trocas, livros e mais livros. Dia e noite, noite e dia, pensava no umbigo de vidro.
A tela que nos expunha ao mundo. A quebra do tijolo
feito da pasta de areia fundida. Pude ver melhor o Recife e o Rio.
Até cruzar a ponte da Imperatriz e enxergar três canoas submersas,
três jazigos imersos, numa sexta-feira fez frio. Foi quando comecei
a entender melhor a força das coisas. O gosto (mais profundo) de
cada uma. O modo como o mundo gira. E devolveu minha condição às
citações dos estudos. Nessa volta à prosa, citei Robert Mauzi e
sua versão de felicidade: Desfazer dos preconceitos, preferir a
alegria aos humores, seguir suas inclinações, ao mesmo tempo em que
as expurga. Nesses tempos refletia até mesmo sobre as teorias de
Buffon sobre a probabilidade de uma agulha cair exatamente sob às
linhas de uma folha.
Os círculos concêntricos, as memórias que nos levam ao céu ou ao inferno, para citar agora Silvina Ocampo. A história de uma nordestina, como eu, de fazer pouca sombra, e o centro onde fixar o parafuso e fazer surgir a forma ao apertá-lo com força. Então chegou o outono e falei das folhas secas e marrons e das mais amareladas levadas pelo vento. Que também soprou páginas do calendário.
Os círculos concêntricos, as memórias que nos levam ao céu ou ao inferno, para citar agora Silvina Ocampo. A história de uma nordestina, como eu, de fazer pouca sombra, e o centro onde fixar o parafuso e fazer surgir a forma ao apertá-lo com força. Então chegou o outono e falei das folhas secas e marrons e das mais amareladas levadas pelo vento. Que também soprou páginas do calendário.
Ocupei-me da boa vista que se tinha na boa vista
antes de mexerem na boa vista. Somava imagens e sons como quem gira
as pedrinhas de um caleidoscópio. Filosofei a respeito do grão que
invade a ostra e o grão de fusão para chegar a um colar de pérolas.
Também sobre as divergências entre os cínicos e o cão filósofo
Diógenes, com sua lanterna na mão, vestindo apenas um barril à
procura dos verdadeiros homens vocacionados a preterir suas vaidades
pelas necessidades das cidades.
De palavra em palavra, de frase em frase, buscava um pensamento que me salvasse. Um autor que me tirasse da imobilidade, do tédio, dos cuidados comigo mesma, do medo. Foi quando cheguei às alturas, ou simplesmente dei passos até a esquina. Mantendo acesso o desejo de ouvir um ser humano sendo sincero. Talvez para deixar de lado meus modos irisados, azuis e ternos. Foram tantas ideias soltas em páginas presas, que quis até o inverso. Dez anos se passaram, não de uma vez, mas aos poucos, frase a frase, mês a mês. De janeiro a dezembro. Da menor concha do mundo à vértebra exposta. E vieram resenhas, artigos, estudos. Os personagens e as pessoas como elas mesmas e como indivíduos. Homens, mulheres, crianças.
De palavra em palavra, de frase em frase, buscava um pensamento que me salvasse. Um autor que me tirasse da imobilidade, do tédio, dos cuidados comigo mesma, do medo. Foi quando cheguei às alturas, ou simplesmente dei passos até a esquina. Mantendo acesso o desejo de ouvir um ser humano sendo sincero. Talvez para deixar de lado meus modos irisados, azuis e ternos. Foram tantas ideias soltas em páginas presas, que quis até o inverso. Dez anos se passaram, não de uma vez, mas aos poucos, frase a frase, mês a mês. De janeiro a dezembro. Da menor concha do mundo à vértebra exposta. E vieram resenhas, artigos, estudos. Os personagens e as pessoas como elas mesmas e como indivíduos. Homens, mulheres, crianças.
Aprendi com todos. De cada publicação saí com mais
saúde, com mais desejo, bebendo a verdade, num carnaval de
cores visíveis e invisíveis. Falando sobre amor, cinema, vida e
morte. A peleja diária de um eu Umbilina, impressionada com os
recortes da arquitetura do edifício de Hannah, da imprensa, da
objetividade, do copidesk, do idiota da desumanização. Aceitei um
tiro que me atravessou de verdade, as dores de Sophia, a beleza do
deserto e da travessia na companhia do Tuaregue. De Gaia e Gozo. E de
um livro a mais em mim.
Ato de amor ao acesso e ao pensamento
Arquivado
em:
Esquizoanálise
|
Escrito por
Bernardo Rieux
|
Sáb, 06
de Agosto de 2005 15:27
|
Algum
internauta paciente e muito bem intencionado tomou a iniciativa de
fazer a tradução das mais de 7 horas de entrevista feitas a
Deleuze por Claire Parnet, compiladas em vídeo. Abaixo, segue o
resultado. [pesquisa de
livros de Gilles Deleuze]
A cláusula
Claire Parnet [1994]: Gilles Deleuze sempre se negou a aparecer na
TV. Mas atualmente ele acha sua doença tão parecida com a petite
mort, da canção de A. Souchon, que mudou de opinião. Mantive,
porém, sua declaração ["a cláusula"], feita em 1988,
no início da filmagem:
Gilles Deleuze [1988]: Você escolheu um abecedário, me preveniu
sobre os temas, não conheço bem as questões, mas pude refletir
um pouco sobre os temas... Responder a uma questão, sem ter
refletido, é para mim algo inconcebível. O que nos salva é a
cláusula. A cláusula é que isso só será utilizado, se for
utilizável, só será utilizado após minha morte. Então, já me
sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-André Boutang,
de folha de papel, e isso me anima muito, me consola muito, e
quase no estado de puro espírito, eu falo, falo ...após minha
morte... e, como se sabe, um puro espírito, basta ter feito a
experiência da mesa girante [do espiritismo], para saber que um
puro espírito não dá respostas muito profundas, nem muito
inteligentes, é um pouco vago, então está tudo certo, tudo
certo para mim, vamos começar: A, B, C,
Gilles Deleuze... o que você quiser.
A de Animal
Claire Parnet: Então começamos com A. A é Animal. Poderíamos considerar
sua a frase de W. C. Fields: "Um homem que não gosta nem de
crianças, nem de animais não pode ser totalmente ruim". Por
enquanto, deixemos de lado as crianças, sei que você não gosta
muito de animais domésticos, e nem prefere, como Baudelaire ou
Cocteau, os gatos aos cachorros. Em compensação, você tem um
bestiário, ao longo de sua obra, que é bastante repugnante, ou
seja, além das feras, que são animais nobres, você fala muito
do carrapato, do piolho, de alguns pequenos animais como esses,
repugnantes, e além disso, que os animais lhe serviram muito
desde O anti-Édipo. Um conceito importante em sua obra é o
devir-animal. Qual é, então, sua relação com os animais?
GD: Os animais não são... O que você disse sobre minha relação
com os animais domésticos, não é o animal doméstico, domado,
selvagem, o que me preocupa. O problema é que os gatos, os
cachorros, são animais familiares, familiais, e é verdade que
desses animais domados, domésticos, eu não gosto. Em
compensação, gosto de animais domésticos não-familiares,
não-familiais. Gosto, pois sou sensível a algo neles. Aconteceu
comigo o que acontece em muitas famílias. Não tinha gato, nem
cachorro. Um de meus filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que
não era maior que sua mãozinha. Ele o tinha encontrado,
estávamos no campo, em um palheiro, não sei bem onde, e a partir
desse momento fatal, sempre tive um gato em casa. O que me
incomoda nesses bichos? Bem, não foi um calvário, eu suporto, o
que me incomoda... não gosto dos roçadores, um gato passa seu
tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um
cachorro é diferente, o que reprovo, fundamentalmente, no
cachorro, é que ele late. O latido me parece ser o grito mais
estúpido. E há muitos gritos na Natureza! Há uma variedade de
gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino animal.
Suporto, em compensação, suporto mais, se não durar muito, o
grito, não sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que
uiva para a lua, eu suporto mais.
CP: O uivo para a morte.
GD: Para a morte, não sei, suporto mais que o latido. E, quando
soube que cachorros e gatos fraudavam a previdência social, minha
antipatia aumentou. Ao mesmo tempo, o que digo é bem bobo, porque
as pessoas que gostam verdadeiramente de gatos e cachorros têm
uma relação com eles que não é humana. Por exemplo, as
crianças, têm uma relação com eles que não é humana, que é
uma espécie de relação infantil ou... o importante é ter uma
relação animal com o animal. O que é ter uma relação animal
com o animal? Não é falar com ele... Em todo caso, o que não
suporto é a relação humana com o animal. Sei o que digo porque
moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros
para passear. O que ouço de minha janela é espantoso. É
espantoso como as pessoas falam com seus bichos. Isso inclui a
própria psicanálise. A psicanálise está tão fixada nos
animais familiares ou familiais, nos animais da família, que
qualquer tema animal... em um sonho, por exemplo, é interpretado
pela psicanálise como uma imagem do pai, da mãe ou do filho, ou
seja, o animal como membro da família. Acho isso odioso, não
suporto. Devemos pensar em duas obras primas de Douanier Rousseau:
o cachorro na carrocinha que é realmente o avô, o avô em estado
puro, e depois o cavalo de guerra, que é um bicho de verdade. A
questão é: que relação você tem com o animal? Se você tem
uma relação animal com o animal... Mas geralmente as pessoas que
gostam dos animais não têm uma relação humana com eles, mas
uma relação animal. Isso é muito bonito, mesmo os caçadores, e
não gosto de caçadores, enfim, mesmo eles têm uma relação
surpreendente com o animal. Acho que você me perguntou, também,
sobre outros animais. É verdade que sou fascinado por bichos como
as aranhas, os carrapatos, os piolhos. É tão importante quanto
os cachorros e gatos. E é também uma relação com animais,
alguém que tem carrapatos, piolhos. O que quer dizer isto? São
relações bem ativas com os animais. O que me fascina no animal?
Meu ódio por certos animais é nutrido por meu fascínio por
muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um
animal, a primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É
curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a
vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os
animais têm mundos. Um mundo animal, às vezes, é
extraordinariamente restrito e é isso que emociona. Os animais
reagem a muito pouca coisa. Há toda espécie de coisas...Essa
história, esse primeiro traço do animal é a existência de
mundos animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza
desses mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que
me impressiona muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais
como o carrapato. O carrapato responde ou reage a três coisas,
três excitantes, um só ponto, em uma natureza imensa, três
excitantes, um ponto, é só. Ele tende para a extremidade de um
galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar anos, no alto
desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera
que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e
então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante
olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o
galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então,
quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região
com menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao
resto, se se pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza
formigante, ele extrai, seleciona três coisas.
CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos
animais?
GD: É isso que faz um mundo.
CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é,
também, alguém que tem um mundo?
GD: Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo
para ser um animal. O que me fascina completamente são as
questões de território e acho que Félix e eu criamos um
conceito que se pode dizer que é filosófico, com a idéia de
território. Os animais de território, há animais sem
território, mas os animais de território são prodigiosos,
porque constituir um território, para mim, é quase o nascimento
da arte. Quando vemos como um animal marca seu território, todo
mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histórias de glândulas
anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu
território. O que intervém na marcação é, também, uma série
de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de
cores, os macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos,
que eles manifestam na fronteira do território... Cor, canto,
postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a
cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes, verdadeiras
linhas. Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu
me digo, quando eles saem de seu território ou quando voltam para
ele, seu comportamento... O território é o domínio do ter. É
curioso que seja no ter, isto é, minhas propriedades, minhas
propriedades à maneira de Beckett ou de Michaux. O território
são as propriedades do animal, e sair do território é se
aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o reconhecem no
território, mas não fora dele.
CP: Quais?
GD: É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar
em mim. E então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato,
um problema filosófico, porque... misturamos um pouco de tudo no
abecedário. Digo para mim, criticam os filósofos por criarem
palavras bárbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por
determinadas razões, faço questão de refletir sobre essa noção
de território. E o território só vale em relação a um
movimento através do qual se sai dele. É preciso reunir isso.
Preciso de uma palavra, aparentemente bárbara. Então, Félix e
eu construímos um conceito de que gosto muito, o de
desterritorialização. Sobre isso nos dizem: é uma palavra dura,
e o que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito
filosófico só pode ser designado por uma palavra que ainda não
existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras
línguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre
aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, você
corrige, outlandish é, exatamente, o desterritorializado. Palavra
por palavra. Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos
animais, para a filosofia é surpreendente. Precisamos, às vezes,
inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com
pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há
território sem um vetor de saída do território e não há saída
do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo
tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. Tudo
isso acontece nos animais. É isso que me fascina, todo o domínio
dos signos. Os animais emitem signos, não param de emitir signos,
produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo,
uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa,
ela reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os
famosos signos... Isso é um signo de lobo? É um lobo ou outra
coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros
caçadores, não os de sociedades de caça, mas os que sabem
reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais,
têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação
animal com o animal. É formidável.
CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que
aproxima o animal da escrita e do escritor?
GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é
o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.
CP: Como o escritor?
GD: O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É
evidente que estamos à espreita. O animal é... observe as
orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita,
nunca está tranqüilo. Ele come, deve vigiar se não há alguém
atrás dele, se acontece algo atrás dele, a seu lado. É terrível
essa existência à espreita. Você faz a aproximação entre o
escritor e o animal.
CP: Você a fez antes de mim.
GD: É verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um
escritor escreve para os leitores, ou seja, "para uso de",
"dirigido a". Um escritor escreve "para uso dos
leitores". Mas o escritor também escreve pelos não-leitores,
ou seja, "no lugar de" e não "para uso de".
Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de".
Artaud escreveu páginas que todo mundo conhece. "Escrevo
pelos analfabetos, pelos idiotas". Faulkner escreve pelos
idiotas. Ou seja, não para os idiotas, os analfabetos, para que
os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar dos analfabetos,
dos idiotas. "Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no
lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por que se diz uma
coisa dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas,
dos bichos". É isso que se faz, literalmente, quando se
escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada.
São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade
literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente,
que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma
historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de
câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma
vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado
de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e
seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...
CP: É escrever "para" e "pelo", ou seja,
"para uso de" e "no lugar de". É o que disse
em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: "O escritor é
um bruxo, pois vive o animal como a única população frente à
qual é responsável".
GD: É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem
simples. Não é uma declaração literária a que você leu de
Hofmannsthal. É outra coisa. Escrever é, necessariamente, forçar
a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a
sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de
várias maneiras. É tanto o limite que separa a linguagem do
silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que
separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.
CP: Mas de jeito algum o latido?
GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor
que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka.
Kafka é A metamorfose, o gerente que grita: "Ouviram, parece
um animal". Piar doloroso de Gregor ou o povo dos
camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos camundongos, pelo povo
dos ratos que morrem. Não são os homens que sabem morrer, são
os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como bichos. Aí
voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vários
gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja,
vi o que muita gente também viu, como um bicho procura um canto
para morrer. Há um território para a morte também, há uma
procura do território da morte, onde se pode morrer. E esse
gatinho que tentava se enfiar em um canto, como se para ele fosse
o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o escritor é alguém
que força a linguagem até um limite, limite que separa a
linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se então dizer
que o escritor é responsável pelos animais que morrem, e ser
responsável pelos animais que morrem, responder por eles...
escrever não para eles, não vou escrever para meu gato, meu
cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a
linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a
linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se
estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no
limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar
sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não
se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo
humano, e ao espírito humano, há relações animais com o
animal. Seria bom se terminássemos com o A.
B de Beber
CP: Vamos passar para o B.
CP: B é um pouco particular, é sobre a bebida. Você bebeu e
parou de beber. Eu gostaria de saber quando você bebia, o que era
beber? Tinha prazer, ou o quê?
GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso
perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcoólatras.
Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso não há
equivalente com a comida. Há gulosos, há pessoas... comer sempre
me desagradou, não é para mim, mas a bebida é uma questão...
Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida
favorita, mas é nesse âmbito que ele entende a quantidade. O que
quer dizer questão de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou
dos alcoólatras, porque eles sempre dizem: "Eu controlo,
paro de beber quando quiser". Zombam deles, porque não se
entende o que querem dizer. Tenho lembranças bem claras. Eu via
bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando se bebe, se
quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer tudo
para chegar ao último copo. É isso que interessa.
CP: É sempre o limite?
GD: Será que é o limite? É complicado. Em outros termos, um
alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja,
está sempre no último copo. O que isto quer dizer? É um pouco
como a fórmula de Péguy, que é tão bela: não é a última
ninféia que repete a primeira, é a primeira ninféia que repete
todas as outras e a última. Pois bem, o primeiro copo repete o
último, é o último que conta. O que quer dizer o último copo
para um alcoólatra? Ele se levanta de manhã, se for um
alcoólatra da manhã, há todos os gêneros, se for um alcoólatra
da manhã, ele tende para o momento em que chegará ao último
copo. Não é o primeiro , o segundo, o terceiro que o interessa,
é muito mais, um alcoólatra é malandro, esperto. O último copo
quer dizer o seguinte: ele avalia, há uma avaliação, ele avalia
o que pode agüentar, sem desabar... Ele avalia. Varia para cada
pessoa. Avalia, portanto, o último copo e todos os outros serão
a sua maneira de passar, e de atingir esse último. E o que quer
dizer o último? Quer dizer: ele não suporta beber mais naquele
dia. É o último que lhe permitirá recomeçar no dia seguinte,
porque, se ele for até o último que excede seu poder, é o
último em seu poder, se ele vai além do último em seu poder
para chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está
acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de
agenciamento. De modo que, quando ele diz: o último copo, não é
o último, é o penúltimo, ele procura o penúltimo. Ele não
procura o último copo, procura o penúltimo copo. Não o último,
pois o último o poria fora de seu arranjo, e o penúltimo é o
último antes do recomeço no dia seguinte. O alcoólatra é
aquele que diz e não pára de dizer: vamos... é o que se ouve
nos bares, é tão divertida a companhia de alcoólatras, a gente
não se cansa de escutá-los, nos bares quem diz: é o último, e
o último varia para cada um. E o último é o penúltimo.
CP: É também quem diz: amanhã paro.
GD: Amanhã eu paro? Não, ele não diz: amanhã eu paro; diz:
paro hoje para recomeçar amanhã.
CP: Então, já que beber é sempre parar de beber, como se pára
de beber totalmente, já que você parou?
GD: É muito perigoso, me parece que acontece rápido. Michaux
disse tudo, os problemas de droga e os problemas de álcool não
estão tão separados. Há um momento em que isso se torna
perigoso demais, porque, aí também é uma crista, como quando eu
dizia "a crista entre a linguagem e o silêncio", ou a
linguagem e a animalidade, é uma crista, é um estreito
desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que
se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for um
excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício.
Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo
em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não
se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o
álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso
faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se
acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool,
droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo
isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se
deve pagar depois, sabe-se, mas em todo caso, está ligado a isto,
trabalhar, trabalhar. E é evidente que quando tudo se inverte, e
que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de
não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais interesse, e,
ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava
que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são
necessários. Talvez se deva passar por isso, para perceber que
tudo o que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles.
Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo
isso é... ele pára. Eu tenho menos mérito, porque parei de
beber por razões de respiração, de saúde, etc., mas é
evidente que se deve parar ou se privar disso. A única
justificação possível é se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se
deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se avança, mais a
gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...
CP: Por um lado, como Michaux, é preciso ter se drogado, bebido
muito para poder se privar em um estado desses. Por outro lado,
você diz: quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas
é porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse
algo não é a vida. Aí há a questão dos escritores de que se
gosta.
GD: Sim, é a vida.
CP: É a vida?
GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é
algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo
um pouco idiota, que beber vai colocá-lo no nível desse algo
mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes
americanos. De Fitzgerald a... um dos que mais admiro é Thomas
Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo tempo que é isso o
que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande
demais para eles.
CP: É, mas é também porque eles perceberam algo da potência da
vida, que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da
potência da vida.
GD: O álcool não o fará sentir...
CP: ... que havia uma potência da vida forte demais para eles, e
que só eles podiam perceber.
GD: Certo.
CP: E Lowry também?
GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o álcool para
eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem
razão, que isso os ajudava. Eu tive a sensação de que isso me
ajudava a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos
filosóficos. Ajudava, depois percebi que já não ajudava, que me
punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se bebesse. Então
se deve parar. É simples.
CP: É uma tradição americana, são poucos os escritores
franceses que confessaram sua queda pelo álcool. Além disso, há
algo que faz parte da escrita...
GD: Os escritores franceses não têm a mesma visão de escrita.
Não sei se fui tão marcado pelos americanos, é uma questão de
visão, de vidências, aqui considera-se que a filosofia, a
escrita, é uma questão... De maneira modesta, ver algo, que os
outros não vêem, não é esta a concepção francesa da
literatura, mas note, houve também muitos alcoólatras na França.
CP: Mas eles param de escrever, na França. Têm muita
dificuldade, os que conhecemos. Poucos filósofos confessaram sua
queda pela bebida.
GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.
CP: Exceto Rimbaud e Verlaine.
GD: Aperta o coração, pois quando pego a rua Nollet, digo: era
este o percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que
morou em um apartamento horrível.
CP: Os poetas e o álcool, conhecemos mais.
GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet.
Uma maravilha.
CP: Na casa dos amigos?
GD: Provavelmente.
CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etílicos. Bem,
terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
C de Cultura
CP: Se se pode abusar um certo tempo do álcool, da cultura não
se deve ir além da dose. É até um pouco repugnante. Bem,
terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
GD: O que é?
CP: C de Cultura.
GD: Sim, por que não?
CP: Você diz não ser culto. Diz que só lê, só vê filmes ou
só olha as coisas para um saber preciso: aquele de que necessita
para um trabalho definido, preciso, que está fazendo, mas, ao
mesmo tempo, você vai todos os sábados a uma exposição, a um
filme do grande campo cultural, tem-se a impressão de que há uma
espécie de esforço para a cultura, que você sistematiza e que
tem uma prática cultural, ou seja, que você sai, faz um esforço,
tende a se cultivar e, entretanto, diz que não é culto. Como
explica tal paradoxo? Você não é culto?
GD: Não, quando lhe digo que não me vejo, realmente, como um
intelectual, não me vejo como alguém culto por uma razão
simples: é que quando vejo alguém culto, fico assustado, não
fico tão admirado, admiro certas coisas, outras, não, mas fico
assustado. A gente nota alguém culto. É um saber sobretudo
assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles sabem tudo,
bem, não sei, sabem tudo, estão a par de tudo, sabem a história
da Itália, da Renascença, sabem geografia do Pólo Norte,
sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem falar de
tudo. É abominável. Quando digo que não sou culto, nem
intelectual, quero dizer algo bem fácil, é que não tenho saber
de reserva. Pelo menos não tenho esse problema. Com minha morte,
não se precisará procurar o que tenho para publicar, nada, pois
não tenho reserva alguma. Não tenho nada, provisão alguma,
nenhum saber de provisão, e tudo o que aprendo, aprendo para
certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueço. De modo que, se dez
anos depois, sou forçado, isso me alegra, se sou forçado a me
colocar em algo vizinho ou no mesmo tema, tenho de recomeçar do
zero. Exceto em alguns casos raros, pois Spinoza está em meu
coração, não o esqueço, é meu coração, não minha cabeça,
senão... Por que não admiro essa cultura assustadora? Pessoas
que falam...
CP: É erudição ou opinião sobre tudo?
GD: Não é erudição, eles sabem falar, primeiro viajaram,
viajaram na História, na Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na
TV, é assustador, ouvi nomes, então, como tenho muita admiração,
posso dizer, gente como Umberto Eco, é prodigioso, o que quer que
lhe digam, pronto, é como se apertassem em um botão, e ele sabe,
além disso... Não posso dizer que invejo isso. Fico assustado,
mas não invejo. O que é a cultura? Ela consiste em falar muito,
não posso me impedir de... sobretudo agora que não dou mais
aula, estou aposentado, falar, acho cada vez mais, falar é um
pouco sujo. É um pouco sujo, a escrita é limpa. Escrever é
limpo e falar é sujo. É sujo porque é fazer charme. Nunca
suportei colóquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca
suportei colóquios. Não viajo. Por que não? Porque... os
intelectuais... eu viajaria se... enfim, não. Aliás, não
viajaria, minha saúde me proíbe, mas as viagens dos intelectuais
são uma palhaçada. Eles não viajam, se deslocam para falar,
partem de um lugar onde falam e vão para outro para falar. E,
mesmo no almoço, eles vão falar com os intelectuais do lugar.
Não vão parar de falar. Não suporto falar, falar, falar, não
suporto. Como me parece que a cultura está muito ligada à fala.
Nesse sentido, odeio a cultura, não consigo suportá-la.
CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois
você foi um grande professor e a solução...
GD: É diferente.
CP: Voltaremos a isso. A letra P está ligada a seu trabalho de
professor. Falaremos da sedução. Queria voltar a algo que você
evitou, que é seu esforço, a disciplina que você se impõe,
mesmo não precisando dela, para ver, por exemplo, nos últimos 15
dias, a exposição de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Você vai
com freqüência, ou semanalmente, ver um grande filme ou uma
exposição de pintura. Você não é erudito, não é culto, não
tem admiração por pessoas cultas, como acaba de dizer. A que
corresponde tal esforço? É prazer?
GD: Claro, é prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa história
de estar à espreita. Não acredito na cultura; acredito, de certo
modo, em encontros. E não se têm encontros com pessoas. As
pessoas acham que é com pessoas que se têm encontros. É
terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se
encontram, essa sujeira de colóquios, essa infâmia, mas não se
tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro
um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim
entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem
juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não dá
certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem
decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas. Como você diz, quando vou, sábado e domingo, ao cinema, etc.,
não estou certo de ter um encontro, mas parto à espreita. Será
que há matéria para encontro, um quadro, um filme, então é
formidável. Dou um exemplo, porque, para mim, quando se faz algo,
trata-se de sair e de ficar. Ficar na filosofia é também como
sair da filosofia? Mas sair da filosofia não quer dizer fazer
outra coisa, por isso é preciso sair permanecendo dentro. Não é
fazer outra coisa, escrever um romance, primeiro eu seria incapaz,
e mesmo se fosse capaz, isso não me diria nada. Quero sair da
filosofia pela filosofia. É isso o que me interessa.
CP: O que isso quer dizer?
GD: Dou um exemplo, como isso é para depois de minha morte, posso
deixar de ser modesto. Acabo de escrever um livro sobre um grande
filósofo chamado Leibniz e insistindo em uma noção que me
parece importante nele, mas que é muito importante para mim: a
noção de dobra. Considero que fiz um livro de filosofia sobre
essa noção, um pouco estranha, de dobra. O que me acontece
depois? Recebo cartas, como sempre, há cartas insignificantes,
mesmo se são encantadoras e calorosas, e me toquem muito. São
cartas que me dizem, muito bem... são cartas de intelectuais que
gostaram ou não do livro. E então recebo duas cartas, dois tipos
de cartas, em que esfrego os olhos... Há cartas de pessoas que
dizem: "Mas sua história de dobra, somos nós". E
percebo que são pessoas que fazem parte de uma associação que
agrupa 400 pessoas na França, hoje, e deve crescer. É a
associação de dobradores de papéis, eles têm uma revista, me
enviam a revista e dizem: "Concordamos totalmente, o que você
faz é o que fazemos". Digo para mim: isso eu ganhei. Recebo
outra carta, e falam da mesma maneira e dizem: "A dobra somos
nós". É uma maravilha. Primeiro isso lembra Platão, porque
em Platão... os filósofos, para mim, não são pessoas
abstratas, são grandes escritores, grandes autores bem concretos.
Em Platão há uma história que me enche de alegria, e está
ligada ao início da filosofia, voltaremos a isso depois. O tema
de Platão é: ele dá uma definição, por exemplo, o que é o
político? O político é o pastor dos homens, e sobre isso há
muita gente que diz: o político somos nós, por exemplo, o pastor
chega e diz: visto os homens, logo sou o verdadeiro pastor dos
homens. O açougueiro diz: alimento os homens, sou o pastor dos
homens. Os rivais chegam... Tive esta experiência, os dobradores
de papéis chegam e dizem: a dobra somos nós. Os outros, que me
enviaram o mesmo tipo de carta, é incrível, foram os surfistas.
À primeira vista não há relação alguma com os dobradores de
papéis. Os surfistas dizem: "concordamos totalmente, pois, o
que fazemos? Estamos sempre nos insinuando nas dobras da natureza.
Para nós, a natureza é um conjunto de dobras móveis. Nós nos
insinuamos na dobra da onda, habitar a dobra da onda é a nossa
tarefa". Habitar a dobra da onda e, com efeito, eles falam
disso de modo admirável. Eles pensam, não se contentam em
surfar, eles pensam o que fazem. Voltaremos a falar disto se
chegarmos ao esporte [sport], ao S...
CP: Está longe. Partimos do encontro, são encontros, os
dobradores de papéis?
GD: São encontros. Quando digo sair da filosofia pela
filosofia... Sempre me aconteceu isso, são encontros, encontrei
os dobradores de papéis, não preciso vê-los, aliás, ficaríamos
decepcionados, provavelmente, eu ficaria, e eles ainda mais. Não
preciso vê-los, mas tive um encontro com o surfe, com os
dobradores de papéis, literalmente, saí da filosofia pela
filosofia, é isso um encontro. Acho que os encontros... quando
vou ver uma exposição, estou à espreita, em busca de um quadro
que me toque, de um quadro que me comova, quando vou ao cinema,
não vou ao teatro, o teatro é longo demais, disciplinado demais,
é demais. E não me parece uma arte... a não ser Bob Wilson e
Carmelo Bene. Não acho que o teatro seja voltado para nossa
época, exceto nesses casos extremos. Mas ficar quatro horas
sentado em uma poltrona ruim, primeiro por motivos de saúde, isso
liquida o teatro para mim. Uma exposição de pintura, ou o
cinema... Sempre tenho a impressão que posso ter o encontro com
uma idéia.
CP: Mas o filme, por mera distração, não existe?
GD: Isso não é cultura.
CP: Não é cultura, mas não há distração?
GD: Minha distração é...
CP: Tudo está em seu trabalho.
GD: Não é um trabalho, é a espreita, estou à espreita de algo
que passa dizendo para mim... isso me perturba. É muito
divertido.
CP: Mas não é Eddie Murphy que vai te perturbar?
GD: Não é...?
CP: Eddie Murphy é um...
GD: Quem é?
CP: Um ator cômico americano, cujos últimos filmes são
verdadeiros sucessos. Nunca vai ver...?
GD: Não conheço. Só vi Benny Hill na TV. Benny Hill me
interessa, não escolho, necessariamente, coisas muito boas, tenho
razões para me interessar.
CP: Mas quando sai, é para um encontro?
GD: Quando saio, se não há idéia para tirar daí, se não digo:
havia uma idéia... O que é um grande cineasta? Vale também para
cineastas, o que me toca na beleza, por exemplo, um grande como
Minnelli ou como Losey, o que me toca neles? Eles são perseguidos
por idéias, uma idéia...
CP: Está queimando a letra I.
GD: Idéia...
CP: Está queimando a letra I, pare logo.
GD: Paramos aí, mas é isso o que me parece ser um encontro.
Temos encontros com coisas, antes de os ter com pessoas.
CP: Nesse momento, para falar de um período preciso, que é o do
momento, você tem muitos encontros?
GD: Acabo de dizer: os dobradores, os surfistas, o que mais
quer? Não são encontros com intelectuais. Ou então, se encontro
um intelectual é por outras razões, não porque gosto dele, é
por aquilo que ele faz, seu trabalho atual, seu charme, tudo isso.
Temos encontros com o charme, com o trabalho das pessoas, e não
com as pessoas, não dou a mínima para elas.
CP: Além disso eles podem roçar, como os gatos?
GD: Se só tiverem isso, o roçar, o latido, é terrível.
CP: Retomamos os períodos ricos e os períodos pobres da cultura.
Você acha que não estamos em um período tão rico, vejo você
sempre irritado diante da TV, dos programas literários, que não
citaremos, embora no momento em que isso for exibido os nomes
serão outros, acha que é um período rico ou um período pobre,
o que vivemos?
GD: É pobre, e, ao mesmo tempo, não é angustiante. Me faz rir.
Na minha idade, digo para mim: não é a primeira vez que há
períodos pobres. Digo: o que vivi desde que tenho idade para me
entusiasmar um pouco. Vivi a Liberação. A Liberação foi um dos
períodos mais ricos que se possa imaginar. Descobria-se ou
redescobria-se tudo, na Liberação. Tinha havido a guerra, etc.
Não era pouco. Descobria-se tudo: o romance americano, Kafka,
havia uma espécie de mundo da descoberta, havia Sartre, não se
pode imaginar o que foi, intelectualmente, o que se descobria ou
redescobria em pintura, etc.
CP: No cinema?
GD: É preciso entender coisas como a grande polêmica: deve-se
queimar Kafka? É inimaginável, hoje parece um pouco infantil,
mas era uma atmosfera criadora. Então conheci o antes de 68, que
foi um período muito rico até depois de 68, enquanto que, nesse
entremeio havia períodos pobres. São normais, períodos pobres.
Não é a pobreza que é incômoda, é a insolência ou a
impudência daqueles que ocupam os períodos pobres. Eles são
mais maldosos do que as pessoas geniais que se animam nos períodos
ricos.
CP: São geniais ou obedientes, pois se fala da polêmica sobre
Kafka na Liberação... Vi fulano de tal dizer, contente e rindo,
que nunca havia lido Kafka.
GD: Claro, são contentes, quanto mais bobos, mais contentes. São
os que consideram, voltamos a isso, que literatura é contar uma
história pessoal. Se se acha isso, não é preciso ler Kafka. Não
há necessidade de se ler muita coisa, pois se se tem uma escrita
bonitinha, se é, por natureza, igual a Kafka. Não é trabalho.
Como te explicar? Para falar de coisas mais sérias que esses
tolos: fui ver, há pouco tempo, um filme...
CP: De Paradjanov.
GD: Não, esse é admirável, mas um filme emocionante, de um
russo... que fez seu filme há trinta anos, e ele só passou
agora.
CP: La commissaire?
GD: La commissaire. Entendi algo que me pareceu emocionante, o
filme era muito bom, perfeito, mas eu pensava, com terror ou com
uma espécie de compaixão, que era um filme como os russos faziam
antes da guerra.
CP: Do tempo de Eisenstein?
GD: Do tempo de Eisenstein, de Dovjenko, estava tudo ali: a
montagem paralela, sublime, etc., como se nada tivesse acontecido
desde a guerra, como se nada tivesse acontecido no cinema. Dizia
para mim: é forçoso, o filme é bom, mas estranho.
CP: Não muito bom.
GD: Por isso não era bom. Era alguém que trabalhava tão sozinho
que... filmava como há vinte anos. Não que fosse ruim, era muito
bom, prodigioso, há vinte anos... E tudo o que havia acontecido
depois, ele não soubera, crescera em um deserto, é terrível,
atravessar um deserto não é grande coisa, não é atravessar um
período de deserto. O terrível é nascer nele, crescer em um
deserto, é horrível, suponho, pois deve-se ter uma impressão de
solidão.
CP: Para os que têm 18 anos agora?
GD: Sim, sobretudo porque... é esse o problema nos períodos
pobres. Quando as coisas desaparecem ninguém se dá conta, por
uma razão simples, quando alguma coisa desaparece, ela não faz
falta. O período staliniano fez desaparecer a literatura russa,
mas os russos não se deram conta, o grosso dos russos, o conjunto
dos russos não se deu conta, uma literatura que foi perturbadora
em todo o século 19, desaparece. Dizem: "agora há os
dissidentes, etc.", mas no âmbito do povo, do povo russo,
sua literatura, sua pintura desapareceram, e ninguém se deu
conta. Para se dar conta do que acontece hoje, há, é claro,
novos jovens que são, com certeza, geniais. Suponhamos, a
expressão não é boa, os novos Beckett de hoje...
CP: Tive medo, pensei que fosse dizer os Novos Filósofos.
GD: Mas os novos Beckett hoje, suponhamos que não sejam
publicados. Afinal, por pouco Beckett não foi publicado. É
evidente que não faltaria nada. Por definição, um grande autor
ou um gênio é alguém que faz algo novo, se esse novo não
aparece, isso não incomoda, não faz falta a ninguém, já que
não se tinha idéia disso. Se Proust, Kafka não tivessem sido
publicados, não se pode dizer que Kafka faria falta. Se o outro
tivesse queimado toda a obra de Kafka, ninguém poderia dizer: Ah,
como faz falta! Pois não se teria idéia do que desapareceu. Se
os novos Beckett são impedidos de ser publicados pelo sistema
atual da edição, não se poderá dizer: Ah, como fazem falta!
Ouvi uma declaração, que talvez seja a mais descarada que já
ouvi em minha vida. Não ouso dizer quem. É alguém ligado ao
ramo editorial que, em um jornal, atreveu-se a declarar: "Hoje
não arriscamos mais cometer os erros da Gallimard..."
CP: No tempo de Proust?
GD: Recusando Proust, pois com os meios que se tem hoje...
CP: Os caçadores de cabeças...
GD: Acredita-se que se têm, hoje, os meios para encontrar os
novos Proust, e os novos Beckett. Significa que se teria um
contador Geiger e o novo Beckett, ou seja, alguém perfeitamente
inimaginável, já que não se sabe o que ele faria de novo, ele
emitiria um som...
CP: Se o passassem sobre sua cabeça?
GD: O que define a crise hoje, pois há todas essas bobagens? Vejo
a crise hoje ligada a três coisas, mas ela não durará, sou
muito otimista, o que define um período de deserto é,
primeiramente, que os jornalistas conquistaram a forma-livro. Eles
sempre escreveram, acho bom que escrevam. Mas quando começaram a
escrever livros, eles se deram conta de que passavam a outra
forma, que não era a mesma coisa que escrever seu artigo.
CP: Antes os escritores é que eram os jornalistas. Mallarmé
podia fazer jornalismo. O inverso não aconteceu.
GD: Agora é o inverso, o jornalista como jornalista conquistou a
forma-livro, acha normal escrever um livro, como se fosse só um
artigo. Isso não é bom. A segunda razão é que se generalizou a
idéia de que qualquer um pode escrever, pois a escrita é vista
como uma historinha de cada um, contada a partir dos arquivos de
família, sejam eles constituídos de anotações ou guardados na
memória. Todo mundo teve uma história de amor, todo mundo teve
uma avó doente, uma mãe que morria de modo terrível. Dizem:
isso dá um romance. Mas isso não dá um romance de modo algum...
A terceira razão é que, os verdadeiros clientes mudaram, e
percebe-se isso, exceto as pessoas... Vocês estão a par, os
clientes mudaram, quero dizer, quem são os clientes da televisão?
Não são mais os ouvintes, são os anunciantes. São eles os
verdadeiros clientes. Os ouvintes têm o que os anunciantes
querem.
CP: Os telespectadores. Qual é a terceira razão?
GD: Os anunciantes são os verdadeiros clientes, eu dizia, na
edição há um risco de que os verdadeiros clientes dos editores
não sejam os leitores em potencial, que sejam os distribuidores,
quando eles forem, realmente, os clientes dos editores, o que
acontecerá? O que interessa aos distribuidores é a rotação
rápida, quer dizer, coisas de grandes mercados de rápida
rotação, regime do best-seller, etc.; ou seja, que toda a
literatura, se ouso dizer, à la Beckett, toda a literatura
criadora será esmagada por natureza.
CP: Isso já existe, pré-formam-se as necessidades de um público.
GD: Sim, mas é isso que define o período de seca, modelo Pivot.
É a nulidade, é a literatura, é o desaparecimento de qualquer
crítica em nome da promoção comercial, mas quando digo: não é
grave, quero dizer, é evidente que haverá circuitos paralelos,
ou um circuito onde haverá um mercado negro, etc., não é
possível que um povo viva... A Rússia perdeu sua literatura, ela
vai reconquistá-la, tudo se ajeita, os períodos ricos sucedem
aos períodos pobres. Ai dos pobres!
CP: Ai dos pobres? Sobre essa idéia de mercado paralelo ou negro,
já faz muito tempo que os sujeitos são pré-formados, ou seja,
um ano vê-se, claramente, nos livros publicados, a guerra, no ano
seguinte é a morte dos pais, no outro é a ligação com a
natureza, mas nada parece se formar. Como isso ressurge? Já viu
ressurgir um período rico de um pobre?
GD: Já.
CP: Você assistiu?
GD: Sim, depois da Liberação, a coisa não ia bem, e então
houve 68. Entre o grande período criador da Liberação e o
início da Nouvelle Vague...
CP: Quando foi? Em 60?
GD: 60, e mesmo antes. Entre 60 e 72 houve, de novo, um período
rico. E isso se reformou em... É um pouco o que diz Nietzsche,
alguém lança uma flecha, uma flecha no espaço, ou então um
período, uma coletividade lança uma flecha e depois ela cai,
depois alguém a pega e a reenvia para outro lugar. A criação
funciona assim, a literatura passa sobre desertos.
D de Desejo
CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo.
Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então,
sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de
meus papéis, pois vou ler o que há no Petit Larousse Illustré,
em "Deleuze", que também se escreve com D. Lê-se:
"Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido em Paris, em
1925".
GD: Talvez hoje esteja no Larousse.
CP: Hoje, estamos em 1988.
GD: Eles mudam todo ano.
CP: "Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo
e seu aspecto revolucionário frente a toda instituição, até
mesmo psicanalítica". E indicam a obra que demonstra tudo
isso: O anti-Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o
filósofo do desejo, eu gostaria que falássemos do desejo. O que
era o desejo? Vamos colocar a questão do modo mais simples:
quando O anti-Édipo...
GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso,
mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que
eram... foi uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um
pequeno mal-entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples.
Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro,
quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo.
Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem
o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo,
pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas,
quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito
muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples,
concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não
remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem
concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até
agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um
objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem
dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e
aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca
desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é
complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações
entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem
desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha
de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust:
não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa
mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto
não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei
contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará
insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher,
paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo
um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não
deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de
vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas
com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não
são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo
sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo
em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há
pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber
e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou
beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber,
ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um
agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo
abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo.
Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto,
conjunto de uma saia, de um raio de sol...
CP: De uma mulher.
GD: De uma rua. É isso. O agenciamento de uma mulher, de uma
paisagem.
CP: De uma cor...
GD: De uma cor, é isso um desejo. É construir um agenciamento,
construir uma região, é realmente agenciar. O desejo é
construtivismo. O anti-Édipo, que tentava...
CP: Espere, eu queria...
GD: Sim?
CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele
momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que
precisou de Félix, que surgiu em sua vida de escritor?
GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade,
sobre a relação da filosofia com algo que concerne à amizade,
mas, com certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há
agenciamentos solitários, e há agenciamentos a dois. O que
fizemos com Félix foi um agenciamento a dois, onde algo passava
entre os dois, ou seja, são fenômenos físicos, é como uma
diferença, para que um acontecimento aconteça, é preciso uma
diferença de potencial, para que haja uma diferença de potencial
precisa-se de dois níveis. Então algo se passa, um raio passa,
ou não, um riachinho... É do campo do desejo. Mas um desejo é
isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo
construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que
ele está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é
nada mais.
CP: É um acaso se... porque o desejo é sentido, enfim, existe em
um conjunto ou em um agenciamento, que O anti-Édipo, onde você
começa a falar do desejo, é o primeiro livro que você escreve
com outra pessoa, com Félix Guattari?
GD: Não, você tem razão, era preciso entrar nesse agenciamento
novo para nós, escrever a dois, que nós dois não vivíamos da
mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo
era, finalmente, uma hostilidade, uma reação contra as
concepções dominantes do desejo, as concepções psicanalíticas.
Era preciso ser dois, foi preciso Félix, vindo da psicanálise,
eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para
dizermos que havia lugar para fazer uma concepção construtiva,
construtivista do desejo.
CP: Você poderia definir, de modo sucinto, como vê a diferença
entre o construtivismo e a interpretação analítica?
GD: Acho que é bem simples. Nossa oposição à psicanálise é
múltipla, mas quanto ao problema do desejo, é... é que os
psicanalistas falam do desejo como os padres. Não é a única
aproximação, os psicanalistas são padres. De que forma falam do
desejo? Falam como um grande lamento da castração. A castração
é pior que o pecado original. É uma espécie de maledicência
sobre o desejo, que é assustadora. O que tentamos fazer em O
anti-Édipo? Acho que há três pontos, que se opõem diretamente
à psicanálise. Esses três pontos são... isso por meu lado,
acho que Félix Guattari também não, não temos nada para mudar
nesses três pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso,
que o inconsciente não é um teatro, não é um lugar onde há
Édipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. Não é um
teatro, é uma fábrica, é produção. O inconsciente produz. Não
pára de produzir. Funciona como uma fábrica. É o contrário da
visão psicanalítica do inconsciente como teatro, onde sempre se
agita um Hamlet, ou um Édipo, ao infinito. Nosso segundo tema é
que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar,
de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele,
se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a
ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira
sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é
aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo
inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os
desertos, os povos...
CP: ... o clima.
GD: ... as raças, os climas, é em cima disso que se delira. O
mundo do delírio é: "Sou um bicho, um negro!",
Rimbaud. É: onde estão minhas tribos? Como dispor minhas tribos?
Sobreviver no deserto, etc. O deserto é... O delírio é
geográfico-político. E a psicanálise reduz isso a determinações
familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos,
depois de O anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca entendeu nada
do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua pequena
família. Por isso que... Tudo isso se mistura. Eu dizia: a
literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o
delírio não é sobre o pai e a mãe. O terceiro ponto...
Significa isso, o desejo se estabelece sempre, constrói
agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, põe sempre em jogo
vários fatores. E a psicanálise nos reduz sempre a um único
fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a mãe, ora não sei o
que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que é múltiplo, ignora o
construtivismo, ou seja, agenciamentos. Dou um exemplo: falávamos
de animal, há pouco. Para a psicanálise, o animal é uma imagem
do pai. Um cavalo é uma imagem do pai. É ignorar o mundo! Penso
no pequeno Hans. O pequeno Hans é uma criança sobre a qual Freud
dá sua opinião, ele assiste um cavalo que cai na rua, e o
charreteiro que lhe dá chicotadas, e o cavalo que dá coices para
todos os lados. Antes do carro, era um espetáculo comum nas ruas,
devia ser uma grande coisa para uma criança. A primeira vez que
um garoto via um cavalo caído na rua e que um cocheiro meio
bêbado tentava levantá-lo com chicotadas, devia ser uma emoção,
era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua,
sangrento, tudo isso... E então ouvem-se os psicanalistas, falar,
enfim, imagem de pai, etc., mas é na cabeça deles que a coisa
não vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que cai e é
batido na rua, um cavalo morre na rua, etc. É um agenciamento
fantástico para um garoto, é perturbador até o fundo. Outro
exemplo, posso dizer... Falávamos de animal. O que é um animal?
Mas não há um animal que seria a imagem do pai. Os animais, em
geral, andam em matilhas, são matilhas. Há um caso que me alegra
muito. É um texto que adoro, de Jung, que rompeu com Freud,
depois de uma longa colaboração. Jung conta a Freud que teve um
sonho, um sonho de ossuário, sonhou com um ossuário. E Freud não
compreende nada, literalmente, ele diz o tempo todo: se sonhou com
um osso, é a morte de alguém, quer dizer a morte de alguém. E
Jung não pára de lhe dizer: não estou falando de um osso,
sonhei com um ossuário... Freud não compreende. Não vê a
diferença entre um ossuário e um osso, ou seja, um ossuário são
centenas de ossos, são mil, dez mil ossos. Isso é uma
multiplicidade, é um agenciamento, é... passeio em um ossuário,
o que significa isso? Por onde o desejo passa? Em um agenciamento
é sempre um coletivo. Coletivo, construtivismo, etc. É isso o
desejo. Onde passa meu desejo entre os mil crânios, os mil ossos?
Onde passa meu desejo na matilha? Qual é minha posição na
matilha? Sou exterior à matilha? Estou ao lado, dentro, no centro
dela? Tudo isso são fenômenos de desejo. É isso o desejo.
CP: Como o O anti-Édipo foi escrito em 72, esse agenciamento
coletivo vinha a calhar depois de 68, era toda uma reflexão...
daqueles anos e contra a psicanálise, que continuava seu negócio
de pequena loja...
GD: Só o fato de dizer: o delírio delira as raças e as tribos,
delira os povos, delira a história e a geografia, me parece ter
estado de acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um pouco
de ar são a todo esse ar fechado e malsão dos delírios
pseudo-familiais. Vimos que era isso, o desejo. Se começo a
delirar, não é para delirar sobre minha infância, aí também,
sobre minha história privada. Delira-se... O delírio é
cósmico... Delira-se sobre o fim do mundo, delira-se sobre as
partículas, os elétrons e não sobre papai-mamãe... é
evidente.
CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos
contra-sensos. Lembro-me que em Vincennes, em 72, na faculdade,
havia pessoas que punham em prática esse desejo e isso acabava em
amores coletivos, não tinham compreendido bem. Houve muitos
loucos em Vincennes, como vocês partiam de uma esquizo-análise
para combater a psicanálise, todo mundo achava que era legal ser
louco, ser esquizo. Víamos cenas inverossímeis entre os
estudantes. Queria que contasse casos engraçados ou não desses
contra-sensos sobre o desejo.
GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam
em duas coisas, havia dois casos, que dá no mesmo. Havia os que
pensavam que o desejo era o espontaneísmo, e havia todo tipo de
movimentos espontâneos, o espontaneísmo.
CP: Os célebres maos-spontex...
GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para nós,
não era nem um nem outro, mas não tinha importância, pois, de
qualquer modo, havia agenciamentos que aconteciam, havia coisas
que mesmo os loucos... havia tantos, de todos os tipos. Fazia
parte do que acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os
loucos tinham sua disciplina, tinham sua maneira de... faziam seus
discursos, suas intervenções, entravam em um agenciamento,
tinham seu agenciamento, mas entravam em agenciamentos. Tinham uma
espécie de astúcia, de compreensão, de grande benevolência, os
loucos. Se quiser, na prática, eram séries de agenciamentos que
se faziam e desfaziam. Na teoria, o contra-senso era dizer: o
desejo é a espontaneidade. De modo que éramos chamados de
espontaneístas, ou então era a festa, mas não era isso. Era...
a filosofia dita do desejo consistia, unicamente, em dizer para as
pessoas: não vão ser psicanalizados, nunca interpretem,
experimentem agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes
convenham. O que era um agenciamento? Um agenciamento, para mim, e
Félix, não que ele pensasse diferentemente, pois era, talvez...
não sei. Para mim, eu manteria que havia quatro componentes de
agenciamento. Por alto, quatro, não prefiro quatro a seis... Um
agenciamento remetia a estados de coisas, que cada um encontre
estados de coisas que lhe convenha. Há pouco, para beber... gosto
de um bar, não gosto de outro, alguns preferem certo bar, etc...
Isso é um estado de coisas. Nas dimensões do agenciamento,
enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu estilo, há um
certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo, há
amigos, e há uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar
tem seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um
agenciamento comporta estados de coisas e enunciados, estilos de
enunciação. É interessante, a História é feita disto, quando
aparece um novo tipo de enunciado? Por exemplo, na revolução
russa, os enunciados do tipo leninista, quando eles aparecem,
como, em que forma? Em 68, quando apareceram os primeiros
enunciados ditos de 68? É bem complexo. Todo agenciamento implica
estilos de enunciação. Implica territórios, cada um com seu
território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um
território. Entro numa sala que não conheço, procuro o
território, lugar onde me sentirei melhor. E há processos que
devemos chamar de desterritorialização, o modo como saímos do
território. Um agenciamento tem quatro dimensões: estados de
coisas, enunciações, territórios, movimentos de
desterritorialização. E é aí que o desejo corre...
CP: Você não se sente responsável pelas pessoas que tomaram
drogas? Ou, lendo muito ao pé da letra O anti-Édipo, não é
como Catão, que incita os jovens a fazer bobagens?
GD: Sentimo-nos responsáveis por tudo, se algo dá errado.
CP: E os efeitos de O anti-Édipo?
GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca,
acho, é minha única honra, nunca me fiz de esperto com essas
coisas, nunca disse a um estudante: é isso, drogue-se você tem
razão. Sempre fiz o que pude para que ele saísse dessa, porque
sou muito sensível à coisa minúscula que de repente faz com que
tudo vire trapo. Que ele beba, muito bem... Ao mesmo tempo, nunca
pude criticar as pessoas, não gosto de criticá-las. Acho que se
deve ficar atento para o ponto em que a coisa não funciona mais.
Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem
pais, não sou eu quem deve impedi-los ou ... mas fazer tudo para
que não virem trapos. No momento em que há risco, eu não
suporto. Suporto bem alguém que se droga, mas alguém que se
droga de tal modo que, não sei, de modo selvagem, de modo que
digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, não suporto. Sobretudo
o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é
suportável. Um velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua
vida, mas um jovem que se ferra por besteira, por imprudência,
porque bebeu demais... Sempre fiquei dividido entre a
impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa
absoluta de que ele vire trapo. É um desfiladeiro estreito, não
posso dizer que há princípios, a gente sai fora como pode, a
cada vez. É verdade que o papel das pessoas, nesse momento, é de
tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los não
significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de
virar trapo. É só o que quero.
CP: Mas sobre os efeitos de O anti-Édipo, houve efeitos?
GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento...
que um cara que desenvolvia... um início de esquizofrenia fosse
colocado em boas condições, não fosse jogado num hospital
repressivo, tudo isso... Ou então que alguém que não suportava
mais, um alcoólatra, onde ia mal, fazer com que ele parasse...
CP: Porque era um livro revolucionário, na medida em que parecia,
para os inimigos desse livro, e para os psicanalistas, uma
apologia da permissividade, e dizer que tudo era desejo...
GD: De forma alguma... Esse livro, ou seja, quando se lê esse
livro, ele sempre teve uma prudência, me parece, extrema. A lição
era: não se tornem trapos. Quando nos opúnhamos..., não paramos
de nos opor ao processo esquizofrênico como o que ocorre num
hospital, e para nós, o terror era produzir uma criatura de
hospital. Tudo, menos isso! E quase diria que louvar o aspecto de
valor da "viagem", daquilo que, naquele momento, os
anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo esquizofrênico,
era um modo de evitar, de conjurar a produção de trapos de
hospital, a produção dos esquizofrênicos, a fabricação de
esquizofrênicos.
CP: Você acha, para terminar com O anti-Édipo, que há ainda
efeitos desse livro, 16 anos depois?
GD: Sim, pois é um bom livro, pois há uma concepção do
inconsciente. É o único caso em que houve uma concepção do
inconsciente desse tipo, sobre os dois ou três pontos: as
multiplicidades do inconsciente, o delírio como delírio-mundo, e
não delírio-família, o delírio cósmico, das raças, das
tribos, isso é bom. O inconsciente como máquina, como fábrica e
não como teatro. Não tenho nada a mudar nesses três pontos, que
continuam absolutamente novos, pois toda a psicanálise se
reconstituiu. Para mim, espero, é um livro que será
redescoberto, talvez. Rezo para que o redescubram.
E de Enfance [Infância]
CP: E de Enfance [Infância]. Lembranças distantes. Os primeiros
anos de vida, a crise, a Frente Popular e a chegada da guerra.
CP: E de Enfance [Infância]. Você costuma dizer que começou sua
vida na Av. Wagram, pois nasceu no 17º distrito de Paris. Depois,
foi morar com sua mãe na R. Daubigny, no 17º distrito, e, agora,
mora perto da Place Clichy, bairro mais pobre, também no 17º, R.
de Bizerte. Como estará morto quando este filme for exibido,
posso dar o seu endereço. Primeiro, quero saber se a sua família
é o que chamamos de burguesa e de direita.
GD: Eu sempre digo onde moro quando me fazem a pergunta. Houve de
fato uma queda. Comecei por cima, pelo alto do 17°, um bairro
muito bonito. E durante a minha infância, vivi a crise antes da
guerra. Uma das lembranças que tenho da infância durante a crise
era a quantidade de apartamentos vazios. As pessoas estavam sem
dinheiro mesmo e havia apartamentos para alugar por toda a cidade.
Meus pais tiveram de deixar o apartamento chique do alto do 17º,
perto do Arco do Triunfo, e desceram, mas ainda era bom, perto do
Boulevard Malesherbes. Era numa ruazinha, a R. Daubigny. Depois,
quando eu voltei para Paris, já mais velho, fui para a fronteira
do 17º distrito, que é mais proletário, na R. Nollet e R.
Toussaint. Perto da casa onde morou Verlaine, que também não era
rico. Foi mesmo uma queda. Dentro de alguns anos, não sei onde
estarei. Mas não deve melhorar em nada.
CP: Em Saint-Quen, talvez?
GD: É, pode ser. Mas a minha família era uma família burguesa.
Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não
era. Preciso me situar, pois não tenho lembranças de infância.
Não tenho lembranças porque a memória é uma faculdade que deve
afastar o passado em vez de acioná-lo. É preciso muita memória
para rejeitar o passado, porque não é um arquivo. Então, tenho
esta lembrança: havia aquelas placas nos apartamentos onde estava
escrito "Aluga-se". Eu vivi muito aquela crise.
CP: Que anos eram estes?
GD: Não lembro os anos. Não sei, devia ser entre... Entre
1930-1935. 1930... Não me lembro mais.
CP: Você tinha 10 anos.
GD: As pessoas não tinham dinheiro. Nasci em 1925. E me lembro da
preocupação com o dinheiro. Foi o que me impediu de ir no
colégio dos jesuítas, pois meus pais não tinham mais dinheiro.
Eu estava destinado aos jesuítas e acabei no liceu por causa da
crise. Mas o outro aspecto... Deixe-me ver... Havia outro aspecto
da crise, mas não sei mais. Não sei mais, mas não importa. E
então, houve a guerra. Quando digo que era uma família de
direita... Eu me lembro muito bem, eles não se recuperaram e é
por isso que entendo melhor alguns patrões de hoje. O pavor que
eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez
muitos patrões não tenham vivido isso, mas deve restar alguns
que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou
marcada como a imagem do caos, pior do que Maio de 68. E me lembro
de que toda esta burguesia de direita percebia o sintoma. Todos
eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O ódio
que Mendès-France carregou nas costas não foi nada perto do que
Blum carregou. Pois ele foi de fato o primeiro. A reação causada
pelas férias remuneradas foi impressionante!
CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido?
GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. Não é
possível entender como Pétain tomou o poder daquela forma sem
conhecer o nível de anti-semitismo da França e da burguesia
francesa naquele momento. O ódio das medidas sociais tomadas pelo
governo de Leon Blum. Foi impressionante! Imagine meu pai, que era
meio "Cruz de Fogo"... Isso era comum naquela época!
Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia
culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta. Mas meu pai
era, como se costumava chamar, um homem muito distinto, afável,
distinto e encantador. Eu ficava espantado com esta violência
contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa. É um
mundo fácil de ser entendido em geral, mas que não se pode
imaginar em detalhes. Os combatentes da Guerra de 1914, o
anti-semitismo, o regime da crise, a própria crise... Que crise
era essa que ninguém entendia?
CP: Qual era a profissão dele?
GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a
lembrança de duas atividades dele. Não sei se foi criação dele
ou se trabalhava com isso, mas era um produto para impermeabilizar
os tetos. Impermeabilização dos tetos. Mas com a crise, ele
ficou com apenas um operário, um italiano. Ainda mais um
estrangeiro... As coisas iam muito mal. O negócio acabou falindo
e ele foi parar em uma indústria mais "séria" que
fabricava balões. Aqueles balões... Aquelas coisas... As
aeronaves. Entende, não é? Mas foi num momento em que não
serviam mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos céus de
Paris para frear aviões alemães. Eram como pombos voadores.
Quando os alemães se apoderaram da fábrica em que meu pai
trabalhava, eles foram bem mais sensatos e a transformaram em
fábrica de botes infláveis, que teriam mais serventia. Mas não
fizeram balões, nem zepelins. Então, eu vi o nascimento da
guerra. Eu devia ter uns 14 anos e me lembro muito bem das
pessoas... elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com
Munique; um ano e alguns meses, mas a guerra estava aí. A guerra
se sucedeu à crise. Era uma atmosfera muito tensa em que as
pessoas mais velhas do que eu devem ter vivido momentos terríveis.
Quando os alemães chegaram de fato, devastaram a Bélgica,
entraram na França e tudo o mais. Eu estava em Deauville, porque
era o lugar em que meus pais sempre passavam as férias de verão.
Eles já tinham voltado. Foram e nos deixaram lá, o que era
impensável, pois tínhamos uma mãe que nunca havia nos deixado,
etc...Ficamos em uma pensão; nossa mãe tinha nos deixado com uma
senhora que era a dona desta pensão. E eu fui à escola durante
um ano em Deauville, em um hotel que foi transformado em liceu. E
os alemães estavam chegando. Não, estou confundindo tudo. Isso
foi no início da guerra. De qualquer forma, eu estava em
Deauville. Quando, há pouco, falei das férias remuneradas, eu me
lembro que a chegada das férias remuneradas à praia de Deauville
foi uma coisa! Para um cineasta, isso poderia virar uma
obra-prima, pois era prodigioso ver aquela gente vendo o mar pela
primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar pela primeira vez na
vida e é esplêndido! Era uma menina da região de Limousin que
estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se existe alguma
coisa inimaginável quando nunca se o viu, esta coisa é o mar. A
gente pode imaginar que seja grandioso, infinito, mas tudo isso
perde a força quando se vê o mar. Aquela menina ficou umas
quatro ou cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e
não se cansava de ver um espetáculo tão sublime, tão
grandioso! Então, na praia de Deauville, que sempre tinha sido
exclusiva dos burgueses, como se fosse propriedade deles, de
repente, chega o povo das férias remuneradas... Pessoas que nunca
tinham visto o mar. E foi fantástico. Se o ódio entre as classes
tem algum sentido são palavras como as que dizia a minha mãe —
que, no entanto, era uma mulher fabulosa —, sobre a
impossibilidade de se freqüentar uma praia em que havia gente
como aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca
esqueceram. Maio de 68 não foi nada perto disso.
CP: Fale mais do medo que eles tinham.
GD: O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias
remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses
estavam ameaçados. Os locais freqüentados eram como questões de
território. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville
era como se, de repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era
uma agressão. Pior do que os alemães. Pior do que os tanques
alemães chegando na praia! Você entende? Era indescritível!
CP: Era gente de outro mundo.
GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava
acontecendo nas fábricas? Nunca esqueceram isso. Acho até que
este medo é hereditário. Não quero dizer que Maio de 68 não
foi nada. É outra história. Mas também não se esqueceram de
68. Enfim... Eu estava lá em Deauville sem meus pais, e com meu
irmão. Quando os alemães realmente invadiram, foi aí que deixei
de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente medíocre na escola, não
tinha interesse por nada, a não ser por uma coleção de selos,
que era a minha maior atividade e eu era um péssimo aluno. Até
que aconteceu comigo o que acontece com muita gente. As pessoas
que despertam sempre o são por causa de alguém em algum momento.
E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara jovem
que me pareceu extraordinário porque falava muito bem. Para mim,
foi um despertar absoluto. Eu tive a sorte de encontrar este cara
que, mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro, porque
ele tinha um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na
esquerda, só que bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre
Halbwachs, filho do sociólogo. Naquela época, ele era muito
jovem e tinha uma cara estranha. Era muito magro, muito alto... Na
minha lembrança, ele era alto. E ele só tinha um olho. Um olho
aberto e o outro fechado. Não tinha nascido assim, mas era assim,
como um cíclope. Tinha cabelos muito cacheados, como uma cabra...
Aliás, mais do que um carneiro. Quando fazia frio, ele ficava
verde, roxo, tinha uma saúde extremamente frágil, tanto que ele
foi reformado no exército e colocado como professor durante a
guerra para preencher as vagas. Para mim, foi uma revelação. Ele
era cheio de entusiasmo. Não sei mais em que ano eu estava,
talvez 3º ou 4º ano ginasial, mas ele comunicava aos alunos, ou
pelo menos a mim, algo que foi uma reviravolta para mim. Eu estava
descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire e lia muito
bem. E nós nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que me
impressionava muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava
para a praia de Deauville. E eu o seguia, colava nele,
literalmente. Eu era seu discípulo. Tinha encontrado um mestre.
Nós nos sentávamos nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era
fantástico, ele me lia Les nourritures terrestres. Ele gritava,
pois não havia ninguém na praia no inverno. Ele gritava: "Les
nourritures terrestres", e eu estava sentado ao lado dele,
com medo de alguém aparecer. Eu achava tudo aquilo estranho. E
ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me fez descobrir
Anatole France, Baudelaire, Gide... Acho que estes eram os
principais. Eram as suas grandes paixões. E eu fui transformado,
absolutamente transformado. Mas logo começaram os comentários
sobre aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o menino
que estava sempre atrás dele. Iam sempre juntos à praia, etc. A
senhora que me hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse
que era responsável por mim na falta de meus pais e que queria me
alertar sobre certas relações. Eu não entendi nada. Não
entendi, pois, se havia uma relação pura, incontestável e
aberta, era justamente a nossa. Só depois, eu percebi que
consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso. Então, eu
disse a ele: "Estou chateado, pois a senhora que me hospeda
disse..." Eu o chamava de "senhor" e ele me chamava
de "você". "Ela disse que não devo vê-lo, que
não é normal, nem correto". E ele me disse: "Não se
preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar com ela,
explicar tudo e ela ficará tranqüila". Ele tinha me tornado
esperto o bastante para me deixar em dúvidas. Eu não estava
tranqüilo. Tinha um pressentimento ruim. Achava que a velha
senhora não se convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi
ver a senhora que escreveu imediatamente para meus pais pedindo
que me tirassem de lá rápido porque ele era alguém extremamente
suspeito. A tentativa dele foi um fracasso total. Mas eis que os
alemães chegaram. A guerra estava começando. Os alemães
chegaram e meu irmão e eu saímos de bicicleta ao encontro de
meus pais que tinham ido para Rochefort. A fábrica tinha se
mudado para lá, fugindo-se dos alemães. Fomos de Deauville a
Rochefort de bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o famoso
discurso infame de Pétain no albergue de uma aldeia. Meu irmão e
eu estávamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem encontramos?
Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o
filho e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para
perto de La Rochelle. Era o destino. Mas estou contando isso só
para dizer que, depois de ter reencontrado Halbwachs, eu o conheci
bem melhor e não tinha mais admiração por ele. Mas isso me
mostrou que foi no momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que
eu tive razão.
CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar,
já que as férias haviam acabado. Neste liceu, teve aulas de
Filosofia. Foi nesta época que Merleau-Ponty era professor lá,
mas você entrou numa turma em que não havia Merleau-Ponty. Seu
professor chamava-se Sr. Viale. Acho que era este o nome, não?
GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrança comovida. Foi por
acaso. Houve a distribuição dos alunos... Eu poderia ter tentado
passar para a turma de Merleau-Ponty, mas não tentei, não sei
por quê. Viale foi... É curioso, porque Halbwachs me fez sentir
alguma coisa do que era a Literatura, mas, desde as primeiras
aulas de Filosofia, eu soube que era isso que eu faria. Eu me
lembro de coisas esparsas, aqui e ali. Em Filosofia, eu me lembro
de quando soubemos da chacina de Oradour. Tinha acontecido naquela
época. É bom lembrar que eu estava em uma turma de pessoas um
pouco politizadas, sensíveis às questões nazistas. Eu estava na
turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia uma atmosfera
estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma como foi
anunciado Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de 17
anos... Não sei com que idade se passava a prova final. Talvez,
17, 18 anos ou 16, 17 anos.
CP: Normalmente, 18 anos.
GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que
falava baixo, já era velho. Eu gostava imensamente dele. De
Merleau-Ponty, tenho a lembrança da melancolia. Carnot era um
grande liceu no qual havia uma balaustrada ao longo de todo o
primeiro andar. E havia o olhar melancólico de Merleau-Ponty que
observava as crianças brincando e gritando. Uma grande
melancolia. Era como se ele dissesse: "O que estou fazendo
aqui?" Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito, estava
no fim de sua carreira. Eu também me liguei muito a ele. Ficamos
muito ligados e, como morávamos perto um do outro, voltávamos
sempre juntos. Nós falávamos sem parar. Sabia que eu faria
Filosofia ou não faria nada.
CP: Logo nas primeiras aulas?
GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas tão
estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o
mesmo efeito do que para outros a descoberta de um personagem de
ficção. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus!
Ou um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugénie
Grandet. Quando eu aprendi o que Platão chamava de "idéia",
me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que era isso; que, para
mim, era isso.
CP: E você logo se tornou bom aluno? O melhor?
GD: Sim. Aí, eu não tinha mais problemas escolares. Desde
Halbwachs, tornei-me bom aluno! Era bom em Letras. Até mesmo em
Latim, eu era bom. Eu era um bom aluno. Em Filosofia, um ótimo
aluno.
CP: Queria que voltássemos a uma coisa. As turmas não eram
politizadas naquela época? Você disse que a sua turma era
especial, pois havia Guy Moquet, etc.
GD: Não era possível ser politizado durante a guerra. Certamente
havia rapazes de 17, 18 anos que estavam na Resistência. Mas quem
estava na Resistência se calava, a menos que fosse um cretino.
Não se pode falar em politização. Havia pessoas indiferentes e
as favoráveis ao governo de Vichy.
CP: Havia a Ação Francesa?
GD: Não era a Ação Francesa, era muito pior. Eram os
"Vichyssois". Não há comparação com a politização
em épocas de paz, já que os elementos realmente ativos eram os
resistentes ou jovens com alguma relação com a Resistência. Não
tinha nada a ver com politização; era mais secreto.
CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que
simpatizavam com a Resistência?
GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo
assassinado pelos nazistas um ano depois.
CP: Mas vocês falavam a esse respeito?
GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicação imediata
de Oradour tinha a ver com comunicação secreta, com o telégrafo,
pois a notícia se espalhou e, no mesmo dia, todas as escolas
parisienses já sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour
foi uma das coisas mais emocionantes para mim.
CP: Para fechar a infância, senão não terminamos nunca, a sua
parece ter tido pouca importância para você. Você não fala
dela e nem é uma referência. Temos a impressão de que a
infância não é importante para você.
GD: Sim, claro. É quase em função de tudo o que acabo de dizer.
Acho que a atividade de escrever não tem nada a ver com o
problema pessoal de cada um. Não disse que não se deve investir
toda a sua alma. A literatura e o ato de escrever têm a ver com a
vida. Mas a vida é algo mais do que pessoal. Na literatura, tudo
o que traz algo da vida pessoal do escritor é por natureza
desagradável. É lamentável, pois o impede de ver, sempre o
remete para seu pequeno caso particular. Minha infância nunca foi
isso. Não é que eu tenha horror a ela! Mas o que me importa, na
verdade, é como já dizíamos: "Há o devir-animal que
envolve o homem e o devir-criança". Acho que escrever é um
devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato
de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós.
Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos
alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender,
menos escritor. É fazer tudo o que quiser, menos arquivo.
Respeito o arquivo em si. Neste caso, sim, quando é arquivo. Mas
ele tem interesse em relação a outra coisa. Se o arquivo existe
é justamente porque há uma outra coisa. E, através do arquivo,
pode se entender alguma coisinha desta outra coisa. Mas a simples
idéia de falar da minha infância — não só porque ela não
tem interesse algum — me parece o contrário de toda a
Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes
e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem,
eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o
estava lendo ontem.
CP: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.
GD: Sim, é Ossip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que
me transtorna. E o papel do professor é este: comunicar e fazer
com que crianças apreciem um texto. Foi o que Halbwachs fez por
mim. Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone
por arquivos familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha
memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para
reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de
origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos
livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações
felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas,
para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há
um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer
a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no
entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus
contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a
falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho
crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua
crista que adquirimos uma linguagem". Para mim, isso quer
dizer que... Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É
testemunhar em favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É
gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é
tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer
literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma
porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se
gagueja — o que não é fácil, pois não basta gaguejar assim —
, se não se vai até este ponto. Na Literatura, de tanto forçar
a linguagem até o limite, há um devir animal da própria
linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que
não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a
infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. Os
que se interessam pela sua própria infância que se danem e que
continuem a fazer a Literatura que eles merecem. Se há alguém
que não se interessa por sua própria infância, este alguém é
Proust. A tarefa do escritor não é vasculhar os arquivos
familiares, não é se interessar por sua própria infância.
Ninguém se interessa por isso. Ninguém digno de alguma coisa se
interessa por sua infância. A tarefa é outra: devir criança
através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo
e restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura.
CP: E a criança nietzschiana?
GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam
sabia. Todos os escritores sabem disso. Mas eu insisto. Não
consigo pensar em outra fórmula além desta: escrever é devir,
mas não é tornar-se escritor, nem um memorialista. Nada disso.
Não é porque vivi uma história de amor que vou escrever um
romance. É horrível pensar assim. Não é apenas medíocre, é
horrível!
CP: Há uma exceção à regra: Nathalie Sarraute, uma escritora
fabulosa, escreveu um livro chamado Infância. Um momento de
fraqueza?
GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute é uma escritora fabulosa,
mas não é um livro sobre a infância dela. É um livro no qual
ela testemunha, reinventa...
CP: Banquei o advogado do diabo.
GD: Eu sei, mas é um papel muito perigoso. Ela inventa a infância
do mundo. O que interessa a N. Sarraute de sua infância? São
algumas fórmulas estereotipadas das quais ela vai tirar
maravilhas. Pode ser o que ela fez com as últimas palavras de ...
De quem mesmo?
CP: Tchekov.
GD: As últimas palavras de Tchekov. Ela tirou daí. Depois, ela
pega de novo uma menina que ouviu alguém dizer: "Como vai?"
e vai criar um mundo de linguagem, fazer proliferar a linguagem.
Claro que Nathalie Sarraute não se interessa por sua própria
infância!
CP: Tudo bem, mas mesmo assim...
GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute,
não.
CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um
treinamento precoce que o levou à Literatura? Você reprimiu a
infância e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a partir de que
idade? É um treinamento? Por outro lado, a infância sempre
volta, mesmo que seja de uma forma revoltante. É preciso treinar
quase diariamente? Precisa ter uma disciplina cotidiana?
GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infância, a
infância... Como tudo, é preciso saber separar a infância ruim
da boa. O que é interessante? A relação com o pai, a mãe e as
lembranças da infância não me parecem interessantes. É
interessante e rico para si próprio, mas não para escrever. Há
outros aspectos da infância. Falamos há pouco do cavalo que
morreu na rua, antes do surgimento do carro. Encontrar a emoção
da criança... Na verdade, é "uma" criança. A criança
que "eu" fui não quer dizer nada. Mas eu não sou
apenas a criança que fui, eu fui "uma" criança entre
muitas outras. Eu fui "uma criança qualquer". E foi
assim que eu vi o que era interessante e não como "eu era a
tal criança". "Eu vi um cavalo morrer na rua antes que
surgissem os carros". Não estou falando por mim, mas por
aqueles que viram. Muito bem, muito bem... Perfeito. É uma tarefa
do tornar-se escritor. Algum fator fez com que Dostoiévski o
visse. Há uma página inteira em Crime e castigo, eu acho, sobre
o cavalo que morre na rua. Nijinski, o dançarino, o viu.
Nietzsche também viu. Já estava velho quando o viu em Turim, eu
acho. Muito bem!
CP: E você viu as manifestações da Frente Popular.
GD: Sim, eu vi estas manifestações, vi meu pai dividido entre
sua honestidade e seu anti-semitismo. Eu fui "uma"
criança. Eu sempre insisti no fato de que não se entende o
sentido do artigo indefinido. "Uma" criança espancada,
"um" cavalo chicoteado. Não quer dizer "eu".
O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.
CP: São as multiplicidades. Falaremos disso.
GD: Sim, é a multiplicidade.
F de Fidelidade
CP: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem
de um mistério muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e
Pecuchet. Vamos passar para a letra F.
GD: Vamos ao F.
CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de
amizade, já que há 30 anos, é amigo de Jean-Pierre Braunberger.
E todos os dias, vocês se telefonam ou se vêem. É como um
casal. Você é fiel às suas amizades, é fiel a Félix Guattari,
a Jerôme Lindon, a Elie, a Jean-Paul Manganaro, Pierre
Chevalier... Seus amigos são muito importantes para você.
François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você os
homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a
impressão de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada à
amizade é correta? Ou será o contrário?
GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já
que começa com F.
CP: Sim, e o A já foi preenchido.
GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém?
Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o
fato de ter idéias em comum. O que quer dizer "ter coisas em
comum com alguém"? Vou dizer banalidades, mas é se entender
sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas
de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há
pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que
dizem, mesmo coisas simples como: "Passe-me o sal". Não
consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto
totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas
entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e
elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério
aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande
mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender
mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre
voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está
apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue
entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do
charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada
de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto,
um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante,
um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com
a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna
amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só
podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta.
Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um
de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: "O que
acabei de ouvir? Que imundicie é essa?" Não pense que pode
soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O
contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes
que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que,
imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no
sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste
momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção.
Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela
alguma coisa.
CP: Decifrar signos.
GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite
signos e a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm
esta base: ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir
daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou,
de preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em
geral, dizendo coisas... A amizade é cômica.
CP: Você gosta muito dos cômicos, das duplas de amigos, como
Bouvard e Pecuchet, Mercier e Camier...
GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma pálida reprodução de
Mercier e Camier. Eu estou sempre cansado, não tenho boa saúde,
Jean-Pierre é hipocondríaco e nossas conversas são do tipo de
Mercier e Camier. Um diz ao outro: "Como está?" O outro
responde: "Uma bela viola, sem muito bolor". É uma
frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a diz. Ou: "Estou
como uma rolha no balanço do mar". São boas frases. Com
Félix é diferente, não somos Mercier e Camier, estamos mais
próximos de Bouvard e Pécuchet. Com tudo o que fizemos juntos,
mergulhamos em uma tentativa enciclopédica. E dizemos coisas
como: "Temos a mesma marca de chapéu!" E volta a
tentativa enciclopédica, a de fazer um livro que aborde todos os
saberes. Com outro amigo, poderia ser uma réplica de o Gordo e o
Magro. Não é que se deva imitar estas grandes duplas, mas
amizade é isso. Os grandes amigos são Bouvard e Pécuchet,
Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que estes tenham
brigado. Pouco importa. Na questão da amizade, há uma espécie
de mistério. Isso diz respeito direto à Filosofia. Porque na
palavra "filosofia" existe a palavra "amigo".
Quero dizer que o filósofo não é um sábio. Do contrário,
seria cômico. Ao pé da letra, é o "amigo da sabedoria".
O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha
idéia de "amigo da sabedoria". Afinal, o que quer dizer
"amigo da sabedoria"? Esse é que é o problema. O que é
a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o
amigo da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia
que é: "Ele tende à sabedoria". Não é por aí. O que
inscreve a amizade na filosofia e que tipo de amizade? Há alguma
relação com um amigo? O que era para os gregos? O que quer dizer
"amigo de"? Se interpretamos "amigo" como
aquele que "tende a", amigo é aquele que pretende ser
sábio sem ser sábio. Mas o que quer dizer "pretender ser
sábio"? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único
pretendente. Se há um pretendente, é porque há outros, quer
dizer que a moça tem vários pretendentes.
CP: Não se é o prometido da sabedoria, é-se apenas um
pretendente.
GD: Exatamente. Então, há pretendentes. E o que os gregos
inventaram? Na minha opinião, na civilização grega, eles
inventaram o fenômeno dos pretendentes. Quer dizer que eles
inventaram a idéia de que havia uma rivalidade entre os homens
livres em todas as áreas. Não havia esta idéia de rivalidade
entre homens livres, só na Grécia. A eloqüência. É por isso
que são tão burocráticos. É a rivalidade entre os homens
livres. Então, eles se processam mutuamente, os amigos também. O
rapaz ou a moça tem pretendentes. Os pretendentes de Penélope.
Este é o fenômeno grego por excelência. Para mim, o fenômeno
grego é a rivalidade dos homens livres. Isso explica "amigo"
na Filosofia. Eles pretendem, há uma rivalidade em direção a
alguma coisa. A quê? Podemos interpretar, tendo em vista a
história da Filosofia. Para alguns, a Filosofia está ligada ao
mistério da amizade. Para outros, está ligada ao mistério do
noivado. E talvez seja por aí. Les fiançailles rompues [O
noivado rompido], Kierkegaard. Não há Filosofia sem este texto,
sem o primeiro amor. Mas como já dissemos, o primeiro amor é a
repetição do último, talvez seja o último amor. Talvez o casal
tenha uma importância na Filosofia. Acho que só saberemos o que
é a Filosofia quando forem resolvidas as questões da noiva, do
amigo, do que é o amigo, etc... É isso que me parece
interessante.
CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idéia de...
GD: Blanchot e Mascolo são os dois homens atuais que, em relação
à Filosofia, dão importância à amizade. Mas num sentido muito
especial. Eles não dizem que é preciso ter um amigo para ser
filósofo; eles consideram que a amizade é uma categoria ou uma
condição do exercício do pensamento. É isso que importa. Não
é o amigo em si, mas a amizade como categoria, como condição
para pensar. Daí, a relação Mascolo-Antelme, por exemplo. Daí,
as declarações de Blanchot sobre a amizade. Eu tenho a idéia de
que... Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é
desconfiança. Há um verso de que gosto muito, e me impressiona
muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo, a hora
na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do
amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu
desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos.
Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que
quer que façam, vou achar muita graça. Há muito entendimento e
comunhão entre meus amigos. Com a noiva é a mesma coisa. Com
tudo. Mão não se deve achar que sejam acontecimentos ou casos
particulares. Quando se fala de "amizade", "noiva
perdida", trata-se de saber em que condições o pensamento
pode ser exercido? Por exemplo, Proust considera que a amizade é
zero! Não só por conta própria, mas porque não há nada a se
pensar na amizade. Mas pode se pensar sobre o amor ciumento. Esta
é a condição do pensamento.
CP: Quero fazer-lhe a última pergunta sobre seus amigos. Com
Châtelet, foi outra coisa. Mas você foi amigo de Foucault no
final da guerra e estudaram juntos. Mas vocês tinham uma amizade
que não era a de uma dupla, como a que tem com Jean-Pierre ou
Félix ou com Elie, Jerôme, já que estamos falando dos outros.
Vocês tinham uma amizade muito profunda, mas parecia distante e
era mais formal para quem via de fora. Que amizade era essa,
então?
GD: Ele era mais misterioso para mim e talvez porque a gente
tivesse se conhecido tarde. Foucault foi um grande arrependimento
para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou
dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando
entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era
apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa.
Era como se outro ar entrasse. Era uma corrente de ar especial. E
as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como
que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa
assim. Fora isso, ele responde ao que eu dizia há pouco, sobre
não haver necessidade de falar com o amigo. Só falávamos de
coisas que nos faziam rir. Ser amigo é ver a pessoa e pensar: "O
que vai nos fazer rir hoje?". "O que nos faz rir no meio
de todas essas catástrofes?" É isso. Mas para mim, Foucault
é a lembrança de alguém que ilustra o que eu dizia sobre o
charme de alguém, um gesto... Os gestos de Foucault eram
impressionantes. Tantos gestos... Pareciam gestos metálicos,
gestos de madeira seca. Eram gestos estranhos, fascinantes. Muito
bonitos. As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é
difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é
aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não
sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem,
pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela
pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode
amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está
completamente... Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se
não se captar o ponto de demência de alguém... Ele pode
assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto
de demência de alguém é a fonte de seu charme.
Ao G, pois!
G de Gauche [Esquerda]
CP: G! Neste caso, não é o ponto de demência que constitui seu
charme e sim algo muito sério: o fato de pertencer à esquerda.
Isso o faz rir, o que me deixa muito feliz. Como já vimos, você
é de uma família burguesa de direita e, a partir do final da
guerra, você se tornou o que se costuma chamar de um homem de
esquerda. Com a Liberação, muitos amigos seus e estudantes de
Filosofia aderiram ou eram muito ligados ao Partido Comunista.
GD: Sim, todos passaram pelo PC, menos eu. Pelo menos é o que eu
acho, não tenho certeza.
CP: Mas como você escapou disso?
GD: Não é nada complicado. Todos os meus amigos passaram pelo
PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador.
E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões
em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era
participar destas reuniões o tempo todo. E era a época do "Apelo
de Estocolmo". Pessoas cheias de talento passavam o dia
colhendo assinaturas para o "Apelo de Estocolmo".
Andavam pelas ruas com este "Apelo de Estocolmo", que já
nem sei mais o que era. Mas isso ocupou toda uma geração de
comunistas. Eu tinha problemas porque conhecia muitos
historiadores comunistas cheios de talento e achava que se eles
fizessem a tese deles seria muito mais importante para o partido,
que, pelo menos, teria um trabalho a mostrar em vez de usá-los
para o "Apelo de Estocolmo", um abaixo-assinado sobre a
paz ou sei lá o quê. Não tinha vontade de participar disso. E,
como eu falava pouco e era tímido, pedir uma assinatura para o
"Apelo de Estocolmo" teria me colocado num estado de
pânico tal que ninguém assinaria nada. Ainda por cima, tinha-se
de vender o jornal L'Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não
tive vontade nenhuma de entrar para o partido.
CP: Sentia-se próximo do engajamento deles?
GD: Do partido? Não, isso não me dizia respeito. E foi o que me
salvou. Todas aquelas discussões sobre Stalin... O que hoje todo
mundo já sabe sobre os horrores de Stalin, sempre existiu. Que as
revoluções acabem mal... Acho muita graça! Afinal, de quem
estão zombando? Quando os Novos Filósofos descobriram que as
revoluções acabam mal... Tem de ser maluco! Descobriram isso com
Stalin! Foi uma porta aberta para que todo mundo descobrisse. Por
exemplo, sobre a revolução argelina disseram que ela fracassou
porque atiraram em estudantes. Mas quem pode acreditar que uma
revolução possa ser bem-sucedida? Dizem que os ingleses nunca
fizeram uma revolução. Estão enganados! Atualmente, vive-se uma
mistificação incrível! Os ingleses fizeram uma revolução,
mataram o rei e o que eles tiveram? Cromwell! E o que é o
romantismo inglês? Uma longa meditação sobre o fracasso da
revolução. Eles não esperaram Glucksman para pensar sobre o
fracasso da revolução stalinista. Eles o tinham ali! E os
americanos, dos quais nunca se fala? Eles fracassaram em sua
revolução muito mais do que os bolcheviques! Os americanos,
antes da Guerra da Independência... Eu repito: antes da Guerra da
Independência, eles se apresentavam como melhores do que uma nova
nação! Eles ultrapassaram as nações, exatamente como Marx
disse do proletário. Acabaram-se as nações! Eles trouxeram a
nova população, fizeram a verdadeira revolução, e, exatamente
como os marxistas contaram com a proletarização universal, os
americanos contavam com a imigração universal. São as duas
fases das lutas de classe. É absolutamente revolucionário! É a
América de Jefferson, de Thoreau, de Melville! Jefferson,
Thoreau, Melville representam uma América completamente
revolucionária, que anuncia o novo homem, exatamente como a
revolução bolchevique anunciava o novo homem! E ela fracassou!
Todas as revoluções fracassaram, isso é sabido! Hoje, fingem
redescobrir isso. É loucura! E nisso todo mundo se atola; é o
revisionismo atual. Furet descobre que a revolução francesa não
foi tão boa assim. Ela também fracassou e todos sabem disso! A
revolução francesa nos deu Napoleão. São descobertas que não
comovem por sua novidade. A revolução inglesa deu em Cromwell. A
revolução americana deu em quê? Muito pior, não?
CP: O liberalismo.
GD: Deu em Reagan! Não me parece muito melhor do que os outros!
Atualmente, estamos em um estado de grande confusão. Mesmo que as
revoluções tenham fracassado, isso não impediu que as pessoas
deviessem revolucionárias. Duas coisas absolutamente diferentes
são misturadas. Há situações nas quais a única saída para o
homem é devir revolucionário. É o que falávamos sobre a
confusão do devir e da História. É essa a confusão dos
historiadores. Eles nos falam do futuro da revolução ou das
revoluções. Mas esta não é a questão. Eles podem ir lá para
trás para mostrar que se o futuro é ruim é porque o ruim já
existia desde o início. Mas o problema concreto é: como e por
que as pessoas devêm revolucionárias? Felizmente, os
historiadores não puderam impedir isso. Os sul-africanos estão
envolvidos em um devir revolucionário. Os palestinos também. Se
me disserem depois: "Você vai ver quando eles triunfarem,
quando eles vencerem...!" "Vai acabar mal". Mas já
não são mais os mesmos tipos de problemas, vai se criar uma nova
situação e novos devires revolucionários serão desencadeados.
Nas situações de tirania, de opressão, cabe aos homens devirem
revolucionários, pois não há outra coisa a ser feita. Quando
nos dizem: "Viu como deu errado?", não estamos falando
da mesma coisa. É como se falássemos idiomas completamente
diferentes. O futuro da História e o devir das pessoas não são
a mesma coisa.
CP: E o respeito aos Direitos Humanos que está tão em voga hoje
em dia? É o contrário do devir revolucionário, não?
GD: A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um
monte de coisas feias. Isso tudo faz parte deste pensamento
molenga daquele período pobre de que falamos. É puramente
abstrato. O que quer dizer "Direitos Humanos"? É
totalmente vazio. É exatamente o que estava tentando dizer há
pouco sobre o desejo. O desejo não consiste em erguer um objeto e
dizer: "Eu desejo isto". Não se deseja a liberdade.
Isso não tem valor algum. Existem determinadas situações como,
por exemplo, a da Armênia. É um exemplo bem diferente. Qual é a
situação por lá? Corrijam-me se estiver errado, mas não mudará
muita coisa. Há este enclave em outra república soviética, este
enclave armênio. Uma República Armênia. Esta é a situação.
Primeira coisa. Há o massacre. Aqueles turcos ou sei lá o quê...
CP: Os Azeris.
GD: Pelo que se sabe atualmente, suponho que seja isso: o massacre
dos armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em
sua República. Corrija-me se estiver errado. E aí, ocorre um
terremoto. Parece uma história do Marquês de Sade. Esses pobres
homens passaram pelas piores provas, vindas dos próprios homens
e, mal chegam a um local protegido, é a vez da natureza entrar em
ação. E aí, vêm me falar de Direitos Humanos. É conversa para
intelectuais odiosos, intelectuais sem idéia. Notem que essas
Declarações dos Direitos Humanos não são feitas pelas pessoas
diretamente envolvidas: as sociedades e comunidades armênias.
Pois para elas não se trata de um problema de Direitos Humanos.
Qual é o problema? Eis um caso de agenciamento. O desejo se faz
sempre através de um agenciamento. O que se pode fazer para
eliminar este enclave ou para que se possa viver neste enclave? É
uma questão de território. Não tem nada a ver com Direitos
Humanos, e sim com organização de território. Suponho que
Gorbatchev tente safar-se desta situação. Como ele vai fazer
para que este enclave armênio não seja entregue aos turcos que o
cercam? Não é uma questão de Direitos Humanos, nem de justiça,
e sim de jurisprudência. Todas as abominações que o homem
sofreu são casos e não desmentidos de direitos abstratos. São
casos abomináveis. Pode haver casos que se assemelhem, mas é uma
questão de jurisprudência. O problema armênio é um problema
típico de jurisprudência extraordinariamente complexo. O que
fazer para salvar os armênios e para que eles próprios se salvem
desta situação louca em que, ainda por cima, ocorre um
terremoto? Terremoto este que também tem seus motivos:
construções precárias, feitas de forma incorreta. Todos são
casos de jurisprudência. Agir pela liberdade e tornar-se
revolucionário é operar na área da jurisprudência! A justiça
não existe! Direitos Humanos não existem! O que importa é a
jurisprudência. Esta é a invenção do Direito. Aqueles que se
contentam em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns débeis
mentais! Trata-se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos
Humanos. Trata-se de inventar as jurisprudências em que, para
cada caso, tal coisa não será mais possível. É muito
diferente. Vou dar um exemplo de que gosto muito, pois é o único
meio de fazer com que se entenda o que é a jurisprudência. As
pessoas não entendem nada! Nem todas... Eu me lembro da época em
que foi proibido fumar nos táxis. Antes, se fumava nos táxis.
Até que foi proibido. Os primeiros motoristas de táxi que
proibiram que se fumasse no carro causaram um escândalo, pois
havia motoristas fumantes. Eles reclamaram. E um advogado... Eu
sempre fui um apaixonado pela jurisprudência. Se não tivesse
feito Filosofia, teria feito Direito. Mas não Direitos Humanos.
Teria feito jurisprudência, porque é a vida! Não há Direitos
Humanos, há direitos da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a
caso. Mas eu estava falando dos táxis. Um sujeito não queria ser
proibido de fumar em um táxi e processa os táxis. Eu me lembro
bem, pois li os considerandos do julgamento. O táxi foi
condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do mesmo processo, o
cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi foi
condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um
táxi, ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a
um locatário que tem o direito de fumar em sua casa, direito de
uso e abuso. É como se eu alugasse um apartamento e a
proprietária me proibisse de fumar em minha casa. Se sou
locatário, posso fumar em casa. O táxi foi assimilado a uma casa
sobre rodas da qual o passageiro era o locatário. Dez anos
depois, isso se universalizou. Quase não há táxi em que se
possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de
apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público,
pode-se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência.
Não se trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que
evoluem. E lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência.
O exemplo da Armênia me parece típico. Os Direitos Humanos... Ao
invocá-los, quer dizer que os turcos não têm o direito de
massacrar os armênios. Sim, não podem. E aí? O que se faz com
esta constatação? São um bando de retardados. Ou devem ser um
bando de hipócritas. Este pensamento dos Direitos Humanos é
filosoficamente nulo. A criação do Direito não são os Direitos
Humanos. A única coisa que existe é a jurisprudência. Portanto,
é lutar pela jurisprudência.
CP: Quero voltar a uma coisa...
GD: Ser de esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito. Criar
o direito.
CP: Voltamos à pergunta sobre a filosofia dos Direitos Humanos.
Este respeito pelos Direitos Humanos é uma negação de Maio de
1968 e uma negação do Marxismo. Você não repudiou Marx, pois
não foi comunista e ainda o tem como referência. E você foi uma
das raras pessoas a evocar Maio de 68 sem dizer que foi uma mera
bagunça. O mundo mudou. Gostaria que falasse mais sobre Maio de
68.
GD: Sim! Mas foi dura ao dizer que fui um dos raros, pois há
muita gente. Basta olhar à nossa volta, entre nossos amigos,
ninguém renegou 68.
CP: Sim, mas são nossos amigos.
GD: Mesmo assim, há muita gente. São muitos os que não
rejeitaram Maio de 68. Mas a resposta é simples. Maio de 68 é a
intrusão do devir. Quiseram atribuir este fato ao reino do
imaginário. Não é nada imaginário, é uma baforada de
realidade em seu estado mais puro. De repente, chega a realidade.
E as pessoas não entenderam e perguntavam: "O que é isso?"
Finalmente, gente real. As pessoas em sua realidade. Foi
prodigioso! O que eram as pessoas em sua realidade? Era o devir.
Podia haver alguns devires ruins. É claro que alguns
historiadores não entenderam bem, pois acredito tanto na
diferença entre História e devir. Foi um devir revolucionário,
sem futuro de revolução. Alguns podem zombar disso. Ou zombam
depois que passou. O que tomou as pessoas foram fenômenos de puro
devir. Mesmo os devires-animal, mesmo os devires-criança, mesmo
os devires-mulher dos homens, mesmo os devires-homem das
mulheres... Tudo isso faz parte de uma área tão particular na
qual estamos desde o início de nossas questões. O que é
exatamente um devir? É a intrusão do devir em Maio de 1968.
CP: Você teve um devir-revolucionário naquele momento?
GD: O seu sorriso parece mostrar bem a sua ironia... Prefiro que
me pergunte o que é ser de esquerda. É mais discreto do que
devir-revolucionário.
CP: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu civismo de
homem de esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O
que é ser de esquerda para você?
GD: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não
se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de
esquerda, não é um governo de esquerda. Não é que não existam
diferenças nos governos. O que pode existir é um governo
favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe
governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com
governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou
definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma
questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte:
o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um
endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a
rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países
e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na
medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico,
costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure.
Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita
loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os
chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda
mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber...
Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós.
Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno.
Começam pelo mundo, depois, o continente... europeu, por
exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a
mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o
horizonte.
CP: Mas os japoneses não são um povo de esquerda...
GD: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço
postal. Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se
que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas
morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta
injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria
percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela
ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não
é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é
uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se
encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com
que o Terceiro Mundo... Ser de esquerda é saber que os problemas
do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso
bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a
ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo,
ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é
sempre uma questão de devir. Não parar de devir-minoritário. A
esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito
simples: a maioria é algo que supõe - até quando se vota, não
se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de
determinada coisa - a existência de um padrão. No Ocidente, o
padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão.
Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse.
Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento,
realizar este padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto,
macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém.
É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem neste
padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc.
As mulheres vão contar e intervir nesta maioria ou em minorias
secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão.
Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são
minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza.
Elas têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens
também o têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm
um devir-criança. Não são crianças por natureza. Todos os
devires são minoritários.
CP: Só os homens não têm devir homem.
GD: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem
macho, adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A
esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu
afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de
esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí
que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os
pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas
sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem
conhecidas.
H de História da Filosofia
CP: H de História da Filosofia. Costumam dizer que, em sua obra,
há uma 1ª etapa dedicada à História da Filosofia. A partir de
1952, escreveu um estudo sobre David Hume. Depois, seguiram-se
livros sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza. Quem não o
conhecia bem, ficou muito impressionado com Lógica do sentido,
Diferença e repetição, O anti-Édipo, Mil platôs. Como se
houvesse um Mr. Hyde adormecido no Dr. Jekyll. Quando todos
explicavam Marx, você mergulhou em Nietzsche, e quando todos liam
Reich, você se voltou para Spinoza, com a famosa pergunta: "O
que pode um corpo?". Hoje, em 1988, você volta a Leibniz. Do
que gostava ou ainda gosta na História da Filosofia?
GD: É complicado. Porque isso envolve a própria Filosofia.
Suponho que muita gente ache que a Filosofia é uma coisa muito
abstrata e só para os "entendidos". Tenho tão viva em
mim a idéia de que a Filosofia não tem nada a ver com
"entendidos", de que não é uma especialidade, ou o é,
mas só na medida em que a pintura ou a música também o são,
que procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham que a
Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser
abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de
idéias abstratas, mas em formar idéias abstratas a partir de
idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa
muito diferente. E, para isso, volto a falar da pintura. Nas
cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato ou
paisagem. "Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao
retrato?" Eles davam muita importância em suas conversas e
cartas. Retrato e paisagem não são a mesma coisa, não são o
mesmo problema. Para mim, a história da Filosofia é, como na
Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um
filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma
espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental,
espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade
que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o
retrato faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar
pintores que me levam a... Se eu ainda volto a pintores como Van
Gogh ou Gauguin, é porque há uma coisa que me toca profundamente
neles: é esta espécie de enorme respeito, de medo e pânico...
Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor, diante de ter
de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores
que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores
coloristas que já existiram. Ao revermos a história de suas
obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles
tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores
mortas. Cores... Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê?
Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há de
mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam
ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou
seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos
para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são
capazes de abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem.
Quando vemos a que eles chegaram, temos de pensar neste imenso
respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor para um
pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura. Portanto,
são necessários muitos anos, antes de ousar tocar em algo assim.
Não é que eu seja particularmente modesto, mas eu acho que seria
muito chocante se existissem filósofos que dissessem assim: "Vou
ingressar na Filosofia, e vou fazer a minha filosofia. Tenho a
minha filosofia". São falas de um retardado! "Fazer a
sua filosofia!" Porque a Filosofia é como a cor. Antes de
entrar na Filosofia, é preciso tanta, mas tanta precaução!
Antes de conquistar a "cor" filosófica, que é o
conceito. Antes de saber e de conseguir criar conceitos é preciso
tanto trabalho! Eu acho que a história da Filosofia é esta lenta
modéstia, é preciso fazer retratos por muito tempo. Tem de fazer
retratos. É como se um romancista dissesse: "Eu escrevo
romances, mas, para não comprometer a minha inspiração, eu
nunca leio romances. Dostoiévski? Não conheço". Já ouvi
um jovem romancista dizer essas coisas espantosas. Seria como
dizer que não é preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é
preciso trabalhar muito, antes de abordar alguma coisa. Acho que a
Filosofia tem um papel que não é apenas preparatório, mas que
vale por si mesmo. É a arte do retrato na medida em que nos
permite abordar alguma coisa. E aí é que vem o mistério. É
preciso explicar melhor. Você teria de me obrigar a explicar
através de alguma pergunta. Ou eu posso continuar assim... O que
acontece quando se faz história da Filosofia? Tem outra coisa a
me perguntar a este respeito?
CP: Sabemos qual é a utilidade da história da Filosofia para
você. Mas, para as pessoas de modo geral? Já que você não quer
falar da especialização da Filosofia e que a Filosofia se dirige
também aos não-filósofos.
GD: Isso me parece muito simples. Só se pode entender o que é a
filosofia, a que ponto ela não é uma coisa abstrata, da mesma
forma que um quadro ou uma obra musical não são absolutamente
abstratos, só através da história da Filosofia, com a condição
de concebê-la corretamente. Afinal, o que é... Há uma coisa que
me parece certa: um filósofo não é uma pessoa que contempla e
também não é alguém que reflete. Um filósofo é alguém que
cria. Só que ele cria um tipo de coisa muito especial, ele cria
conceitos. Os conceitos não nascem prontos, não andam pelo céu,
não são estrelas, não são contemplados. É preciso criá-los,
fabricá-los. Haveria mil perguntas só neste ponto. Estamos
perdidos, pois são tantas questões. Para que serve? Por que
criar conceitos? O que é um conceito? Mas vamos deixar isso para
lá por enquanto. Por exemplo, se eu criar um livro sobre Platão.
As pessoas sabem que Platão criou um conceito que não existia
antes dele e que é geralmente traduzido como a "Idéia".
Idéia com um I maiúsculo. E o que Platão chama de Idéia é bem
diferente do que outro filósofo chama de Idéia. É um conceito
platônico, tanto que se alguém emprega a palavra Idéia em um
sentido parecido, responderão: "É um filósofo platônico".
Mas concretamente o que é? Não se deve perguntar de outra forma,
ou é melhor não fazer Filosofia. Tem de se perguntar como se se
tratasse de um cachorro! O que é uma Idéia? Eu posso definir um
cachorro. E uma Idéia para Platão? Neste momento, já estou
fazendo história da Filosofia. Eu tentarei explicar às pessoas,
é essa a tarefa de um professor... Acho que o que ele chama de
"Idéia" é uma coisa que não seria outra coisa. Ou
seja, que seria apenas o que ela é. Isso também pode parecer
abstrato. Há pouco, dizia que não se deve ser abstrato. E algo
que só é o que ele é, é abstrato. Então, vamos pegar um caso
que não seja de Platão. Uma mãe. Uma mamãe. É uma mãe, mas
ela não é apenas uma mãe. Por exemplo, ela é esposa e ela
também é filha de uma mãe. Suponhamos uma mãe que seja apenas
mãe. Pouco importa se isso existe ou não. Por exemplo, será que
a Virgem Maria, que Platão não conhecia, era uma mãe que só
era mãe? Mas pouco importa se isso existe ou não? Uma mãe que
não seria outra coisa além de mãe, que não seria filha de
outra mãe, é isso que devemos chamar de "idéia de mãe".
Uma coisa que é só o que ela é. É o que Platão quis dizer
quando disse: "Só a Justiça é justa". Porque só a
Justiça não é outra coisa além de justa. A gente vê que, no
fundo, é muito simples. Claro que Platão não parou só nisso,
mas seu ponto de partida foi: "Suponham-se tais entidades que
sejam apenas o que elas são, iremos chamá-las de Idéias".
Portanto, ele criou um verdadeiro conceito, este conceito não
existia antes. A idéia da coisa pura. É a pureza que define a
idéia. Mas por que isso parece abstrato? Por quê? Se nos
entregamos à leitura de Platão é por aí que tudo se torna tão
concreto! Ele não diz isso por acaso, não criou este conceito de
Idéia por acaso. Ele se encontra em uma determinada situação em
que, aconteça o que acontecer, em uma situação muito concreta,
o que quer que aconteça ou o que quer que seja dado, há
pretendentes. Há pessoas que dizem: "Para tal coisa, eu sou
o melhor". Por exemplo, ele dá uma definição do político.
E ele diz: "A primeira definição do político, como ponto
de partida, seria o pastor dos homens". É aquele que cuida
dos homens. Mas aí, chega um monte de gente dizendo: "Então,
eu sou o político. Eu sou o pastor dos homens". Ou seja, o
comerciante pode ter dito isso, o pastor que alimenta, o médico
que trata, todos eles podem dizer: "Eu sou o verdadeiro
pastor". Em outras palavras, há rivais. Agora, está
começando a ficar mais concreto. Eu digo: um filósofo cria
conceitos. Por exemplo, a Idéia, a coisa enquanto pura. O leitor
não entende bem do que se trata, nem a necessidade de criar um
conceito assim. Mas se ele continua ou reflete sobre a leitura,
ele percebe que é pelo seguinte motivo: há uma série de rivais
que pretendem esta coisa, são pretendentes e que o problema
platoniano não tem nada a ver com o que é a Idéia, — do
contrário, seria abstrato — mas é como selecionar os
pretendentes, como descobrir em meio aos pretendentes qual deles é
o bom. E é a Idéia, a coisa em seu estado puro, que permitirá
esta seleção e selecionará aquele que mais se aproxima. Isso
nos permite avançar um pouco, pois eu diria que todo conceito —
por exemplo, o de Idéia — remete a um problema. Neste caso, o
problema é como selecionar os pretendentes. Quando se faz
Filosofia de forma abstrata, nem se percebe o problema. Mas quando
se atinge o problema, por que ele não é dito pelo filósofo? Ele
está bem presente em sua obra, está escancarado, de certa forma.
Não se pode fazer tudo de uma vez. O filósofo já expôs os
conceitos que está criando. Ele não pode, além disso, expor os
problemas que os seus conceitos... ou, pelo menos, só se podem
encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E se
não encontrou o problema ao qual responde um conceito, tudo é
abstrato. Se encontrou o problema, tudo vira concreto. É por isso
que, em Platão, há constantemente estes pretendentes, estes
rivais! Está ficando cada vez mais óbvio. Por que é que isso
ocorre na cidade grega? Por que é que foi Platão quem inventou
este problema? O problema é como selecionar os pretendentes e o
conceito... a filosofia é isso: problema e conceito. O conceito é
a Idéia, que deveria dar os meios para selecionar os
pretendentes. Não importa como. Por que este problema, este
conceito, se formou em um meio grego? É que isso começa com os
gregos, é um problema tipicamente grego, é problema da cidade, e
da cidade democrática, mesmo se Platão não aceita isso. É um
problema da cidade democrática. É em uma cidade democrática
que, por exemplo, uma magistratura é objeto de pretensões. Há
pretendentes, pretendo determinada função. Em uma formação
imperial, como há, na época grega, em uma formação imperial,
há funcionários nomeados pelo grande imperador. Não há essa
rivalidade. A cidade ateniense é uma rivalidade dos pretendentes.
Já com Ulisses, os pretendentes de Penélope. Há todo um meio
que se pode chamar de "problema grego". É uma
civilização... onde o enfrentamento dos rivais aparece sempre,
por isso eles inventam a ginástica, inventam os Jogos Olímpicos.
Inventam, são processualistas, ninguém é tão processualista
quanto um grego, mas o procedimento é a mesma coisa, os processos
são os pretendentes. Entende? A filosofia... Haverá também
pretendentes, a luta de Platão contra os sofistas. Segundo ele,
os sofistas são pretendentes a algo a que não têm direito. O
que vai definir o direito ou o não-direito de um pretendente? É
um problema muito... é tão divertido quanto um romance.
Conhecemos grandes romances onde há pretendentes que se enfrentam
diante de um tribunal. É outra coisa. Mas, na filosofia, há os
dois: a criação de um conceito e esta criação se faz em função
de um problema. Se não se achou o problema, não se compreende a
filosofia, e ela permanece abstrata. Dou um exemplo, as pessoas,
em geral, não vêem a que problema isso responde. Não vêem os
problemas, pois eles são um pouco ditos, um pouco escondidos, e
fazer a história da filosofia é restaurar esses problemas e
assim descobrir a novidade dos conceitos. A má história da
filosofia enfileira os conceitos como se fossem óbvios, como se
não fossem criados, e há uma ignorância total dos problemas aos
quais... Dou um último exemplo rápido. Dou outro exemplo que não
tem nada a ver, só para diversificar.
Muito tempo depois, há um filósofo chamado Leibniz, que faz e
inventa um conceito bem extraordinário, a que chamará de
"mônada", e escolhe uma palavra técnica, complicada:
"mônada".
E, nos conceitos, há sempre algo um pouco louco... Essa mãe que
só seria mãe, em outro caso, a idéia pura. Há algo um pouco
louco. Pois bem, a mônada leibniziana designa um sujeito, alguém,
você ou eu, enquanto alguém que exprime a totalidade do mundo. E
ao exprimir a totalidade do mundo, ela só exprime, claramente,
uma pequena região do mundo: seu território. Já vimos, já
falamos do território. Seu território, ou o que Leibniz chama
seu "departamento". Portanto, uma unidade subjetiva que
exprime o mundo inteiro, mas só exprime claramente uma região,
um departamento do mundo, é o que ele chama uma mônada. Aí
também é um conceito, ele o cria, esse conceito não existia
antes dele, pergunta-se: mas por quê? Porque ele o cria, é muito
bonito, mas por que fazê-lo, por que dizer isso e não outra
coisa? É preciso encontrar o problema, não que ele o esconda,
mas se não o procuramos um pouco, não o encontraremos. É esse o
charme de ler filosofia. Tem tanto charme e é tão divertido
quanto ler um romance, ou olhar quadros. É prodigioso. O que
percebemos quando lemos? Ele não criou o conceito de mônada por
prazer, mas por outras razões, ele coloca um problema, a saber,
que tudo no mundo só existe dobrado. Por isso escrevi um livro
sobre ele que se chama A dobra. Ele vive o mundo como um conjunto
de coisas dobradas umas nas outras. Podemos recuar: por que ele
vive o mundo dessa maneira? O que se passa? Como para Platão,
talvez a resposta seja: na época, será que as coisas se dobravam
mais do que agora? Não temos tempo! O que conta é essa idéia de
um mundo dobrado, e tudo é dobra de dobra, nunca se chega a algo
completamente desdobrado. A matéria é feita de redobras sobre si
mesma, e as coisas do espírito, as percepções, os sentimentos
são dobrados na alma. É precisamente porque as percepções, os
sentimentos, as idéias estão dobrados em uma alma, que ele
constrói esse conceito de uma alma que exprime o mundo inteiro,
ou seja, no qual o mundo inteiro se encontra dobrado. Podemos
quase dizer: o que é um mau filósofo e o que é um grande
filósofo? Um mau filósofo é alguém que não inventa conceitos,
e se serve de idéias prontas, emite opiniões. E aí ele não faz
filosofia, ele diz: "É isso o que penso". Conhecemos
muitos, ainda hoje, mas em todos os tempos houve opiniões. Ele
não inventa conceito, não coloca, no verdadeiro sentido da
palavra problema, nenhum problema. Fazer história da filosofia é
um longo aprendizado, em que se aprende, em que se é aprendiz,
nesse duplo campo: a constituição dos problemas, a criação dos
conceitos. O que é que mata, o que faz com que o pensamento possa
ser idiota, débil, etc.? As pessoas falam, mas nunca se sabe de
que problema elas falam. Não só não criam conceitos, elas
emitem opiniões, mas além disso, nunca se sabe de que problema
elas falam. Ou seja, conhecemos, a rigor, as questões, mas se
digo: "Deus existe?", não é um problema. Não disse o
problema, onde ele está? Por que coloco tal questão? Que
problema está por detrás disso? As pessoas querem colocar a
questão: "acredito ou não em Deus?" Mas ninguém liga
se acreditam ou não em Deus, o que conta é: por que dizem isso,
a que problema isso responde? E que conceito de Deus elas vão
fabricar. Se você não tiver nem conceito nem problema, você
fica na besteira, não faz filosofia. Isso mostra o quanto a
filosofia é divertida, e a história da filosofia, já que é
isso fazer história da filosofia! Não é muito diferente do que
tem de fazer quando está em frente a um quadro ou uma obra
musical.
CP: Voltamos a Gauguin e Van Gogh, já que evocou seus medos antes
de abordar a cor. O que aconteceu quando você passou da história
da filosofia para sua própria filosofia?
GD: Aconteceu o seguinte: provavelmente a história da filosofia
tinha me ensinado coisas, ou seja, me sentia mais capaz de abordar
o que é a cor em filosofia. Mas por que isso se coloca? Por que a
filosofia não pára? Por que não pára, por que há ainda
filosofia hoje? Porque sempre há lugar para criar conceitos. É a
publicidade que se apodera dessa noção de conceito. Ela cria
conceitos, com os computadores. Há toda uma linguagem que foi
roubada da filosofia.
CP: A comunicação.
GD: A comunicação. Deve-se ser criativo, criar conceitos. Mas o
que chamam "conceito", "criar" é tão cômico,
que não há como insistir. Continua a ser tarefa da filosofia.
Nunca me senti tocado por pessoas que dizem: "a morte da
filosofia", "ultrapassar a filosofia", são
filósofos que dizem coisas tão complicadas. Isso nunca me disse
respeito porque me pergunto: "O que isso quer dizer?"
Enquanto houver necessidade de criar conceitos, haverá filosofia,
é esta sua definição. Os conceitos não estão prontos, é
preciso criá-los. E os criamos em função de problemas. Os
problemas evoluem. Pode-se, é claro, ser platônico, ser
leibniziano, ainda hoje, em 1989, pode-se tudo isso, pode-se ser
kantiano. O que significa isto? Quer dizer que se estima que
alguns problemas, não todos, colocados por Platão continuam
válidos, com certas transformações, então se é platônico, e
se utilizam conceitos platônicos. Ainda que hoje se coloquem
problemas de outra natureza, não há caso em que não haja um ou
vários grandes filósofos que tenham algo a nos dizer sobre os
problemas transformados de hoje. Mas fazer filosofia é criar
novos conceitos em função dos problemas que se colocam hoje. O
último aspecto dessa longa questão seria, é evidente: bem, mas
o que é a evolução dos problemas? O que a assegura? Posso
sempre dizer: forças históricas, sociais. Sim, claro, mas há
algo mais profundo. É misterioso. E não teríamos tempo, mas
creio em uma espécie de devir do pensamento, de evolução do
pensamento que faz com que não apenas não coloquemos os mesmos
problemas, mas com que não os coloquemos do mesmo modo. Um
problema pode ser colocado de vários modos sucessivos, e há um
apelo urgente, como uma grande corrente de ar, que faz apelo à
necessidade de sempre criar, recriar novos conceitos. Há uma
história do pensamento que não se reduz à influência
sociológica ou... Há um devir do pensamento, que é algo
misterioso, que seria preciso definir, que faz com que, talvez,
não se pense hoje da mesma maneira que há cem anos. Processos de
pensamento, elipses de pensamento, o pensamento tem sua história.
Há uma história do pensamento puro. Fazer filosofia, para mim, é
exatamente isso. A filosofia só teve, sempre, uma função. Ela
não precisa ser ultrapassada, pois tem sua função. Queria dizer
alguma coisa?
CP: Como um problema evolui através dos tempos?
GD: Não sei. Deve variar.
CP: Já que o pensamento evolui...
GD: Deve variar conforme cada caso. No século 17, na maioria dos
grandes filósofos... qual é a preocupação negativa deles? É
impedir o erro. Trata-se de conjurar os perigos do erro. Em outros
termos, o negativo do pensamento é que o espírito se engana,
evitar que ele se engane. Como evitar o erro? Depois, há um
deslocamento bastante lento, e no século 18 começa a surgir um
problema diferente. Poderia parecer o mesmo, mas não é: é
denunciar não mais o erro, mas denunciar as ilusões. A idéia de
que a mente cai no erro, e está rodeada de ilusões, e mais: que
ela própria produz ilusões. Não apenas cai em erros, mas produz
ilusões, é todo o movimento do século 18, dos filósofos do
século 18, a denúncia, a superstição, etc. Poderia parecer com
a situação do século 17, mas, na verdade, o problema que começa
a surgir é inteiramente novo. Pode-se dizer, também aí há
razões sociais, etc., mas há também uma história secreta do
pensamento que seria apaixonante fazer, a questão já não é
como evitar cair no erro, mas como chegar a dissipar as ilusões
pelas quais o espírito está rodeado. E, no século 19, digo
coisas simples, rudimentares de propósito. No século 19, o que
acontece? É como se algo se deslocasse, e até mesmo se rompesse
completamente, mas é, cada vez mais, como evitar, o quê? A
ilusão, não. É que os homens, como criaturas espirituais, não
param de dizer besteiras. Não é a mesma coisa que uma ilusão.
Não é cair em uma ilusão. É como conjurar a besteira. Isso
aparece claramente em pessoas no limiar da filosofia. Flaubert
estava no limiar da filosofia, o problema da besteira, Baudelaire,
o problema da besteira, tudo isso. Já não é o mesmo que a
ilusão. Pode-se dizer, está ligado a evoluções sociais, por
exemplo, a evolução burguesa no século 19, que faz do problema
da besteira um problema urgente. Mas há algo mais profundo nessas
evoluções, nessa história dos problemas que o pensamento
enfrenta, e quando se coloca um problema, novos conceitos
aparecem. De modo que, se se compreende a filosofia desse modo,
criação de conceitos, constituições de problemas, os problemas
estando mais ou menos escondidos, é preciso redescobri-los.
Percebe-se que a filosofia nada tem a ver com o verdadeiro e o
falso. A filosofia não é procurar a verdade. Procurar a verdade
não quer dizer nada. Trata-se de criar conceitos, o que isso quer
dizer? E constituir um problema? Não se trata de verdade ou
falsidade, trata-se de sentido! Um problema tem de ter um sentido.
Há problemas que não têm sentido, outros que o têm. Fazer
filosofia é constituir problemas que têm um sentido e criar os
conceitos que nos fazem avançar na compreensão e na solução do
problema.
CP: Voltemos a duas questões que lhe concernem mais. Quando você
refez a história da filosofia com Leibniz, no ano passado, foi o
mesmo que você fez há vinte anos, antes de produzir sua própria
filosofia? Foi da mesma maneira?
GD: Não, de modo algum. Pois antes eu me servia, realmente, da
filosofia, e da história da filosofia, como um modo de... como
uma espécie de aprendizado indispensável, onde procurava quais
eram os conceitos dos outros, de grandes filósofos, e a que
problemas eles respondiam. Enquanto que agora, no livro que
escrevi sobre Leibniz, não há vaidade no que digo, misturei
problemas do século 20, que podem ser os meus, com problemas de
Leibniz. Dito que estou convencido da atualidade dos filósofos.
Fazer como um grande filósofo, o que isso quer dizer? Fazer como
ele não é, necessariamente, ser seu discípulo. Fazer como ele é
prolongar sua tarefa, é criar conceitos que têm relação com os
que ele criou e colocar problemas em relação e em evolução com
os que ele criou. Creio que, ao fazer Leibniz, eu estava mais
nessa via, enquanto que em meus primeiros livros de história da
filosofia, estava no estágio pré-cor.
CP: Você declarou, sobre Spinoza, e pode-se aplicar a Nietzsche,
que eles o ligavam à parte escondida e maldita da história da
filosofia. O que quis dizer com isso?
GD: Teremos oportunidade de voltar a isso. Para mim, essa parte
escondida consiste em pensadores que recusaram qualquer
transcendência. Seria preciso definir, voltaremos a falar talvez
da transcendência, são autores que recusam os universais, ou
seja, a idéia de conceito que têm valor universal, e toda
transcendência, ou seja, toda instância que ultrapassa a terra e
os homens. São autores da imanência.
CP: Seus livros sobre Nietzsche ou Spinoza fizeram época, você é
conhecido por eles. No entanto, não se pode dizer que você é
nietzschiano ou spinozista, como se pode dizer de um platônico ou
de um nietzschiano. Você atravessou tudo isso, isso lhe servia de
aprendizado e você já era deleuziano. Não se pode dizer que
você é spinozista!
GD: Você me faz um grande elogio. Se for verdade, fico muito
feliz.
CP: Você se sentia spinozista?
GD: Sempre desejei, bem ou mal, posso ter fracassado, mas acho que
tentei colocar problemas por minha conta e criar conceitos por
minha conta. No limite, sonharia com uma quantificação da
filosofia. Cada filósofo seria afetado por um número mágico,
segundo o número de conceitos que realmente criou, remetendo a
problemas, etc. Haveria números mágicos, Descartes, Hegel,
Leibniz. Seria interessante. Não ouso me colocar aí, mas eu
teria, talvez, um pequeno número mágico, ou seja, criado alguns
conceitos em função de problemas. Simplesmente, digo para mim:
minha honra é que, seja qual for o gênero de conceito que tentei
criar, posso dizer a que problemas ele respondeu. Senão seria
conversa fiada. Acho que acabamos esse ponto.
CP: Para terminar, a última questão. É um pouco provocativo. Em
68, ou mesmo antes, quando todo mundo explicava Marx, lia Reich,
não havia provocação de sua parte, voltar-se para Nietzsche,
suspeito de fascismo, naqueles anos, e falar de Spinoza e do
corpo, quando só se falava de Reich? Sua história da filosofia
não funcionava como uma pequena provocação? Não havia
provocação?
GD: Não. Isso está ligado ao que acabamos de dizer. É quase a
mesma questão, porque o que eu procurava, mesmo o que procurava
com Félix, era uma espécie de dimensão realmente imanente do
inconsciente. Por exemplo, toda a psicanálise está cheia de
elementos transcendentais: a lei, o pai, a mãe, tudo isso.
Enquanto que um campo de imanência, que permitisse definir o
inconsciente, isso é o campo... Talvez Spinoza pudesse ir mais
longe do que ninguém, talvez Nietzsche pudesse ir mais longe do
que ninguém. Parece-me que talvez não fosse tanto provocação,
era que Spinoza e Nietzsche formam, em filosofia, talvez, a maior
liberação do pensamento, quase no sentido de um explosivo. E
talvez os conceitos, os conceitos mais insólitos, porque os
problemas deles eram problemas um pouco malditos, que não se
ousava colocar, na época de Spinoza, em todo caso, com certeza,
mas mesmo na época de Nietzsche. Problemas que não se ousa
colocar muito, problemas picantes.
I de Idéia
CP: I de Idéia. O que é ter uma idéia? Demonstração com o
cinema e Vincent Minnelli, o cavaleiro dos sonhos.
GD: Estamos na letra K.
CP: Não, em I. Estamos em I de idéia. Não é mais a idéia
platônica que acabamos de evocar. Mais do que fazer um inventário
de teorias, você sempre foi um apaixonado pelas idéias dos
filósofos, pelas idéias dos pensadores no cinema, ou seja, pelos
diretores e pelas idéias dos artistas na pintura. Você sempre
deu preferência à idéia, em vez de explicações e comentários.
A sua e a dos outros. Por que, para você, a idéia preside tudo?
GD: É verdade. A idéia no sentido em que a usamos, pois não se
trata mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras.
Criar é ter uma idéia. É muito difícil ter uma idéia. Há
pessoas extremamente interessantes que passaram a vida inteira sem
ter uma idéia. Pode-se ter uma idéia em qualquer área. Não sei
onde não se deve ter idéias. Mas é raro ter uma idéia. Não
acontece todos os dias. Um pintor tem tantas idéias quanto um
filósofo, mas não se trata do mesmo tipo de idéias. Pensando
nas diferentes atividades humanas, seria bom saber sob que forma
se apresenta uma idéia em determinados casos? Em Filosofia,
acabamos de ver isso. A idéia, em Filosofia, se apresenta na
forma de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma
descoberta. Conceitos não se descobrem, são criados. Há tanta
criação em uma filosofia quanto em um quadro ou uma obra
musical. Os outros têm idéias... Fico impressionado com os
diretores de cinema. Há muitos diretores que nunca tiveram uma
idéia. As idéias são uma obsessão, elas vão e voltam, se
afastam, tomam formas diversas e, através destas formas variadas,
elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo muito simples, penso
em um diretor como Vincent Minnelli. A obra dele não cobre tudo,
mas peguei este exemplo por ser mais fácil. Parece-me que ele é
uma pessoa que se pergunta o que quer dizer: "As pessoas
sonham". Dizer que as pessoas sonham é uma banalidade. As
pessoas sonham, sim, mas Minnelli faz uma pergunta muito estranha
que lhe é muito particular: "O que quer dizer estar preso
num sonho de alguém?" Passa pela comédia, tragédia, pelo
abominável, etc. O que quer dizer estar preso no sonho de uma
menina? Podem aparecer coisas terríveis por sermos prisioneiro do
sonho de alguém. Pode ser um horror. Às vezes, Minnelli nos traz
um sonho: "O que é estar preso no pesadelo da guerra?"
E o resultado foi o admirável Os cavaleiros do Apocalipse. E ele
não vê a guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli,
e, sim, como um grande pesadelo. O que quer dizer "estar
preso num pesadelo"? Estar preso no sonho de uma menina
resulta nos famosos musicais em que Fred Astaire ou Gene Kelly,
não sei ao certo, escapa das tigresas e panteras negras. Isso é
estar no sonho de alguém. É uma coisa gigantesca. Eu diria que
isso é uma idéia. No entanto, não é um conceito. Se Minnelli
trabalhasse com conceitos, ele faria Filosofia e não cinema. Eu
diria que é preciso distinguir três dimensões, três coisas tão
poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu trabalho
futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender melhor
isso. Há os conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há
o que podemos chamar de "perceptos". Os perceptos fazem
parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma
pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em
vez de percepção?
Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um
homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer
poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão
além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto
de sensações e percepções que vai além daquele que a sente.
Vou dar alguns exemplos. Há páginas de Tolstoi que descrevem o
que um pintor mal saberia descrever. Ou páginas de Tchekov que,
de outra maneira, descrevem o calor da estepe. Há um grande
complexo de sensações, pois há sensações visuais, auditivas e
quase gustativas. Alguma coisa entra na boca. Eles tentam dar a
este complexo de sensações uma independência radical em relação
àquele que as sentiu. Tolstoi também descreve atmosferas. As
grandes páginas de Faulkner! Os grandes romancistas conseguem
chegar a isso. Há um grande romancista americano que quase disse
isso. Ele não é muito conhecido na França, e gosto muito dele.
É Thomas Wolfe. Ele descreve o seguinte: "Alguém sai de
manhã, sente o ar fresco, o cheiro de alguma coisa, de pão
torrado, etc., um passarinho passa voando... Há um complexo de
sensações. O que acontece quando morre aquele que sentiu tudo
isso? Ou quando ele faz outra coisa? O que acontece?" Isso me
parece a questão da arte. A arte dá uma resposta para isso: dar
uma duração ou uma eternidade a este complexo de sensações que
não é mais visto como sentido por alguém ou que será sentido
por um personagem de romance, ou seja, um personagem fictício. É
isso que vai gerar a ficção. E o que faz um pintor? Ele faz
apenas isso também, ele dá consistência a perceptos. Ele tira
perceptos das percepções. Há uma frase de Cézanne que me toca
muito. Um pintor não faz outra coisa. Há uma frase que muito me
impressiona. Pode-se dizer que os impressionistas distorcem a
percepção. Um conceito filosófico ao pé da letra é de rachar
a cabeça, porque é o hábito de pensar que é novo. As pessoas
não estão acostumadas a pensar assim. É de rachar a cabeça! De
certa forma, um percepto torce os nervos e podemos dizer que os
impressionistas inventaram perceptos. Mas Cézanne disse uma frase
que acho muito bonita: "É preciso tornar o impressionismo
durável". Quer dizer que o motivo ainda não adquiriu
independência. Trata-se de torná-lo durável e, para isso, são
necessários novos métodos. Ele não quis dizer que se deve
conservar o quadro, e sim que o percepto adquire uma autonomia
ainda maior. Para tal, precisará de uma nova técnica. E há um
terceiro tipo de coisa e muito ligada às outras duas. É o que se
deve chamar de afectos. Não há perceptos sem afectos. Tentei
definir o percepto como um conjunto de percepções e sensações
que se tornaram independentes de quem o sente. Para mim, os
afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que
passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles.
O afecto é isso. Será que a música não seria a grande criadora
de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima
de nossa compreensão? É possível. Mas o que quero dizer é que
as três estão ligadas. É uma questão de acentuar as coisas.
Quando se pega um conceito filosófico, este conceito faz com que
se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de videntes, pelo
menos aqueles de quem gosto. Spinoza faz ver. É um dos filósofos
mais videntes que existe. Nietzsche também faz ver. E eles também
são fantásticos "lançadores de afectos". É por isso
que me vem logo à mente a idéia de uma música destes filósofos.
Assim como a música faz ver coisas estranhas. As vezes, ela nos
faz ver cores, mas cores que não existem fora da música. E os
perceptos também. Todos estão muito ligados. Eu sonho com uma
espécie de circulação entre uns e outros, entre os conceitos
filosóficos, os perceptos pictóricos, os afectos musicais. E não
é de se espantar que existam repercussões. Por mais
independentes que sejam estes trabalhos, eles se penetram
constantemente.
CP: Essas idéias dos pintores, artistas e filósofos são o
contrário de se ter uma idéia, são uma idéia da percepção,
do afecto e da razão. Por que você... Na vida, a gente pode ver
um filme ou ler um livro que não tem uma idéia nenhuma. Mas isso
o chateia muito, não lhe interessa, acha chato. Para você, não
interessa ver ou ler alguma coisa que pode ser divertida se não
existe uma idéia. Se não tem idéia.
GD: No sentido em que acabo de definir a idéia, não sei como
seria possível. Se me mostrar um quadro que não tem percepto
nenhum, onde há apenas uma vaca representada com uma certa
semelhança, mas sem percepto de vaca, onde a vaca não seja
elevada ao grau de percepto, não há interesse. Se me faz ouvir
uma música sem afecto, eu nem entenderia o que é. Se me mostrar
um filme ou um livro de filosofia idiota, não vejo prazer algum
nisso.
CP: Mas não é um livro de filosofia idiota, pode ser
humorístico, que contenha humor.
GD: Um livro humorístico pode estar cheio de idéias. Tudo
depende do que chama de humorístico. Nunca ninguém me fez rir
tanto quanto Beckett ou Kafka. Sou muito sensível ao humor. Acho
que é extremamente engraçado. Não gosto tanto dos comediantes
na TV.
CP: Menos Benny Hill, que tem uma idéia cômica.
GD: Sim, se ele tiver uma idéia. Mesmo nesta área, os grandes
burlescos americanos têm algumas idéias.
CP: Para fechar esta questão mais pessoal, já lhe aconteceu de
sentar-se para escrever sem ter idéia do que vai fazer? Se não
tem idéia, o que acontece?
GD: Se eu não tenho uma idéia, não me sento para escrever. O
que pode acontecer é que a idéia não esteja precisa, que ela me
escape, que eu tenha buracos de memória. Eu tive e tenho esta
dolorosa experiência, sim. As coisas não fluem. Idéias não
nascem prontas. É preciso fazê-las e há momentos terríveis em
que se entra em desespero achando que não se é capaz.
CP: É a expressão ou a idéia que faltam? São as duas coisas?
GD: É impossível diferenciá-las. Será que tenho a idéia e não
consigo expressá-la ou não tenho idéia alguma? É tão
parecido. Se não consigo expressá-la, não tenho idéia. Ou me
falta uma parte da idéia, pois ela não chega inteira. Ela vem de
partes diferentes, de vários horizontes. Se falta-lhe um pedaço,
ela é inutilizável.
J de Joie [Alegria]
CP: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito,
pois é um conceito de Spinoza, que tornou a alegria um conceito
de resistência e vida. "Evitemos as paixões tristes e
vivamos com alegria para ter o máximo de nossa potência; fugir
da resignação, da má-consciência, da culpa e de todos os
afectos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram".
Entende-se perfeitamente do que você gosta nisso tudo. Gostaria
que distinguisse a alegria da tristeza e definisse o que é a
distinção de Spinoza. Você descobriu alguma coisa no dia em que
leu isso?
GD: Sim, porque são os textos mais extraordinariamente carregados
de afectos em Spinoza. Vou simplificar muito, mas quero dizer que
a alegria é tudo o que consiste em preencher uma potência. Sente
alegria quando preenche, quando efetua uma de suas potências.
Voltemos aos nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um
pedaço de cor. Entro um pouco na cor.
Pode imaginar a alegria que isso representa? Preencher uma
potência é isso, efetuar uma potência. Mas o que é equívoco é
a palavra "potência". E o que é a tristeza? É quando
estou separado de uma potência da qual eu me achava capaz,
estando certo ou errado.
"Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias... não
era permitido, etc." É aí que ocorre a tristeza. Qualquer
tristeza resulta de um poder sobre mim.
CP: Você estava falando sobre a oposição alegria/tristeza.
GD: Eu dizia que efetuar algo de sua potência é sempre bom. É o
que diz Spinoza. Mas isso traz problemas. É preciso especificar
que não existem potências ruins. O que é ruim não é... O ruim
é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a
maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir
que este alguém efetue a sua potência. Portanto, não há
potência ruim, há poderes maus. E talvez todo poder seja mau por
natureza. Não, talvez seja muito fácil dizer isso. Mas mostra
bem a idéia da ... A confusão entre poder e potência é
arrasadora, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão
submissas, separa-as do que elas podem fazer. Tanto que foi deste
ponto que partiu Spinoza. Como você citou: "A tristeza está
ligada aos padres, aos tiranos..."
CP: Aos juízes.
GD: São pessoas que separam seus sujeitos do que eles podem, que
proíbem as efetuações de potência. Curiosamente, há pouco,
você falou da reputação de anti-semitismo de Nietzsche. Neste
exemplo, vê-se esta questão muito importante. Há textos de
Nietzsche que poderiam parecer preocupantes se são lidos muito
rapidamente, e não da forma como propomos que os filósofos sejam
lidos. Em todos os textos em que fala do povo judeu, o que
Nietzsche critica nele? O que fez com que, em seguida, dissessem
que Nietszche era um anti-semita. É interessante, pois o que ele
repreende no povo judeu, em condições específicas, é o fato
deste povo ter inventado um personagem que não existia antes: o
padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a respeito dos
judeus na forma de um ataque. O ataque é contra o povo que
inventou o padre. Segundo ele, nas outras formações sociais,
existem feiticeiros, escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa
que o padre. Eles inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche,
que tem grande força filosófica, não deixou de admirar o que
detesta, ele disse: "Mas é incrível ter inventado o padre.
É uma coisa prodigiosa". Em seguida, fez a ligação direta
dos judeus com os cristãos. Só não é o mesmo tipo de padre. Os
cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no mesmo
caminho: com o personagem do sacerdote. Pode-se ver o quanto a
filosofia é concreta. Eu diria que Nietzsche é o primeiro
filósofo a ter inventado, criado o conceito de padre. E, a partir
daí, trouxe um problema fundamental que é: em que consiste o
poder sacerdotal? Qual é a diferença entre o poder sacerdotal e
o poder real? Estas são questões ainda muito atuais. Pouco antes
de sua morte, Foucault tinha encontrado a mesma coisa, só que com
seus próprios meios. Aí, poderíamos retomar tudo sobre o que é
prolongar a filosofia. Foucault também sugere um poder pastoral,
um novo conceito diferente mas que, ao mesmo tempo, se encaixa no
de Nietzsche. Por aí, existe uma história do pensamento. E o que
é este poder de padre e em que está ligado à tristeza? Segundo
Nietzsche, o padre se define desta forma: ele inventou a idéia de
que os homens estão num estado de dívida infinita. Eles têm uma
dívida infinita. Antes, havia histórias de dívida, mas
Nietzsche precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos
deveriam ler Nietzsche. Eles descobriram bem depois de Nietzsche
que, nas sociedades primitivas, havia permutas de dívidas. Não
funcionava tanto através da troca, como se pensava, mas por
partes de dívidas: uma tribo tinha uma dívida para com outra
tribo, etc. Eram blocos de dívidas finitas: eles recebiam e
devolviam. A diferença com a troca é que havia a realidade do
tempo. Era uma restituição diferida. É importante! A dívida
precede a troca. São questões filosóficas: a permuta, a dívida,
a dívida que precede a troca. É um grande conceito filosófico.
Digo filosófico porque Nietzsche disse antes dos etnólogos. Mas
enquanto as dívidas têm este regime finito, o homem pode se
libertar. O padre judeu invoca, pois, em virtude de uma Aliança,
a idéia de uma dívida infinita do povo judeu para com Deus, e os
cristãos retomam esta idéia de outra forma, a idéia de dívida
infinita ligada a do pecado original. O personagem do padre é
muito curioso. E cabe à Filosofia fazer o conceito. Não digo que
a Filosofia seja atéia, mas, no caso de Spinoza que já tinha
esboçado uma análise do padre, do padre judeu no Tratado
Teológico-Político, pode acontecer que conceitos filosóficos
sejam verdadeiros personagens. É por isso que a Filosofia é tão
concreta. Fazer o conceito do padre é como algum artista faria o
quadro ou o retrato do padre. O conceito do padre trazido por
Spinoza, por Nietzsche e, depois, por Foucault, forma uma linhagem
apaixonante. Eu também gostaria de entrar nesta linha e ver que
poder pastoral é esse. Dizem que ele não funciona mais, mas quem
o substituiu? A psicanálise é um novo avatar do poder pastoral.
Em que ele se define? Os padres não são a mesma coisa que os
tiranos, mas eles têm em comum o fato de manterem-se no poder
através das paixões tristes que eles inspiram aos homens. Do
tipo: "Arrependam-se em nome da dívida infinita, você é
objeto da dívida infinita". Por esse caminho, eles têm
poder! O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das
potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles
que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste. Sim,
existem alegrias tristes. Mas a alegria é uma efetuação das
potências. Eu repito: não conheço nenhuma potência má. O
tufão é uma potência. Alegra-se na alma, mas não por derrubar
casas, mas simplesmente por ser. Regozijar-se é estar alegre pelo
que somos, por ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria
de si mesmo, isto não é alegria, não é estar satisfeito
consigo mesmo. É o prazer da conquista, como dizia Nietzsche. Mas
a conquista não consiste em servir pessoas. A conquista é, para
o pintor, conquistar a cor. Isso sim é uma conquista. Neste caso,
é a alegria. Mesmo que isso não termine bem, pois nestas
histórias de potência, quando se conquista uma potência, ela
pode ser potente demais para a própria pessoa e ela acaba não
suportando. Van Gogh!
CP: Agora, uma pergunta subsidiária: você, que escapou da dívida
infinita, por que se queixa da manhã à noite e é um defensor do
lamento e da elegia?
GD: Esta é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre gostei da elegia.
Ela é uma das duas fontes da poesia, uma das principais fontes da
poesia. É o grande lamento. Há uma grande história a ser feita
sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito
interessante. Há o lamento do profeta. O profetismo é
inseparável do lamento. O profeta é aquele que se lamenta e diz:
"Mas por que fui escolhido por Deus? O que eu fiz para ser
escolhido por Deus?" Neste sentido, ele é o contrário do
padre. Ele se queixa do que acontece com ele. O que significa: "É
grande demais para mim". Eis o que é a queixa: "O que
está acontecendo comigo é grande demais para mim".
Aceitando, pois, o lamento, o que nem sempre se vê, pois não é
só "Ai, ai, que dor!", mas também pode ser. Aquele que
se queixa nem sempre sabe o que está querendo dizer. A velha
senhora que se queixa de seu reumatismo está, na verdade,
querendo dizer: "Que potência está se apoderando da minha
perna e que é grande demais para que eu a suporte?" Se
formos procurar na História, é muito interessante, pois a elegia
é, antes de tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina.
Na época, eu lia muito os grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio
e outros. São poetas prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é
a expressão daquele que não tem mais um estatuto social,
temporariamente ou não. É por isso que é interessante. Um pobre
velho se queixa. Um homem nas galés se queixa. Não tem nada a
ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa
que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como
uma oração. Os queixumes populares, tudo... A queixa do profeta,
a de um tema que você conhece bem, que é a queixa do
hipocondríaco. O hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as
queixas do hipocondríaco são bonitas: "Por que tenho um
fígado? Por que tenho um baço?" Não é o "Ai, como
dói!", e sim "Por que tenho órgãos?" Por que
isso, por que aquilo... O lamento é sublime! O queixume popular,
o lamento do assassino, que é cantado pelo povo... São os
excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um
especialista húngaro chamado Tökel, que fez um estudo sobre a
elegia chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é, acima de
tudo, animada por aquele que não tem mais estatuto social, um
escravo livre. Um escravo ainda tem um estatuto, por mais
desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado, mas tem um
estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem
estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para
a geração dos negros na América com a abolição da escravidão.
Quando houve a abolição ou então na Rússia, não tinham
previsto um estatuto social para eles e foram excluídos.
Interpretam erroneamente como se eles quisessem voltar a ser
escravos! Eles não tinham estatuto. É neste momento que nasce o
grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é
por isso que é uma fonte poética. Se eu não fosse filósofo e
fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma carpideira. A carpideira
é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte! Além
do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por mim, não me
toque. É um pouco como as pessoas demasiadamente polidas. Pessoas
querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie
de... A queixa é a mesma coisa: "não tenha pena de mim,
disso cuido eu". Mas ao cuidar disso, a queixa se transforma.
E voltamos à questão de algo ser grande demais para mim. A
queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que
o que vivo é grande demais para mim porque seria a alegria em seu
estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência de não exibi-la,
pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-se
escondê-la em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a
alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma potência,
sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efetua
uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor,
surge esse temor. Ao pé da letra, afinal, acho que não estou
fazendo Literatura quando digo que a forma como Van Gogh entrou na
cor está mais ligada à sua loucura do que fazem supor as
interpretações psicanalíticas, e que são as relações com a
cor que também interferem. Alguma coisa pode se perder, é grande
demais. Aí está o lamento: é grande demais para mim. Na
felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é
detalhe.
CP: Foi uma ótima resposta. Vamos à letra K de Kant!
GD: Aí tem menos graça.
CP: Sinto que esta vai ser rápida.
K de Kant
CP: De todos os filósofos que você estudou, Kant parece ser o
mais distante do seu pensamento. Mas você diz que todos os
autores que estudou tem algo em comum. Há alguma coisa em comum
entre Kant e Spinoza?
GD: Eu prefiro, se me permite, a primeira parte da pergunta. Por
que estudei Kant já que ele não tem nada em comum com Spinoza,
nem com Nietzsche, apesar de este último ter lido muito Kant? Não
temos a mesma concepção de filosofia. Mas por que, mesmo assim,
Kant me fascina? Por dois motivos. Kant é tão cheio de
sinuosidades. Um dos motivos é o fato de ele ter instaurado e
levado a extremos o que nunca fora levado em Filosofia até então,
que é a instituição de tribunais, talvez sob a influência da
Revolução Francesa. Mas até então tentamos falar de conceitos
como se fossem personagens. Antes de Kant, no século 18, que o
precedeu, apresentou-se um novo tipo de filósofo, o investigador.
Investigação. Investigação sobre o entendimento humano,
investigação sobre isso e aquilo. O filósofo era visto como um
investigador. Ainda mais cedo, no século 17, Leibniz foi, sem
dúvida, o último representante desta tendência. Ele era visto
como um advogado, ele defendia uma causa. E Leibniz pretendia ser
o advogado de Deus! Como se Deus tivesse algo a ser repreendido.
Leibniz escreveu um maravilhoso opúsculo sobre a causa de Deus.
Era a causa jurídica de Deus, a causa de Deus defendida. Há um
encadeamento de personagens: o advogado, o investigador e, com
Kant, houve a chegada do tribunal, do tribunal da razão. As
coisas eram julgadas em função de um tribunal da razão. E as
faculdades, no sentido do entendimento, a imaginação, o
conhecimento e a moral eram medidas em função deste tribunal. É
claro que através de um determinado método prodigioso criado por
Kant que chamaram de "método crítico", que é o método
propriamente kantiano. Todo este aspecto me deixa horrorizado, mas
é um horror fascinado também, pois é genial ao mesmo tempo.
Dentre os inúmeros conceitos que Kant inventou, está o do
tribunal da razão que é inseparável do método crítico. Meu
sonho não é esse. Este é um tribunal do juízo. É o sistema do
juízo, só que este não precisa mais de Deus. É um juízo
baseado na razão, e não em Deus. Não abordamos este problema,
mas posso fazê-lo agora, assim não precisaremos voltar a este
assunto. Podemos procurar entender... Há um mistério nisso tudo.
Podemos tentar entender por que alguém em particular, eu ou você,
estaríamos ligados ou nos reconhecemos em determinado tipo de
problema e não em outro? O que é a afinidade de alguém com um
tipo de problema? Parecem-me os maiores mistérios do pensamento.
Nós nos consagramos a problemas. E não é qualquer problema,
isso também vale para os cientistas. A afinidade de alguém para
determinado problema e não para outro. E uma filosofia é um
conjunto de problemas com consistência própria, mas não
pretende cobrir todos os problemas. Ainda bem! Eu me sinto ligado
aos problemas que procuram meios para acabar com o sistema do
juízo e colocar outra coisa no lugar. Dentre os grandes nomes dos
que buscam isso, você tinha razão em falar de oposição, estão
Spinoza, Nietzsche e, em Literatura, há Lawrence, e guardo um dos
maiores para o final: Artaud. Todos para acabar com o juízo de
Deus. Isso é muito importante, não é loucura: acabar com o
sistema do juízo. Todas estas coisas fariam com que eu não
tivesse tanto... Mas, por baixo disso tudo, e, como sempre, é
preciso buscar os problemas que se escondem sob os conceitos. E
Kant traz problemas impressionantes, são maravilhas. Ele foi o
primeiro a ter feito uma inversão de conceitos impressionante. É
por isso que tanto me entristece quando vejo ensinarem aos jovens,
mesmo no nível de vestibular, uma filosofia tão abstrata sem
tentar fazer com que participem de problemas, que são fantásticos
e muito interessantes. Posso dizer que até Kant o tempo derivava
do movimento. Ele era secundário em relação ao movimento. Ele
era considerado como número ou medida do movimento. O que fez
Kant? Não importa como, pois há criação de um conceito. Em
tudo o que digo, só tem isso! Estamos sempre avançando no tema
"o que é um conceito". Ele criou um conceito porque
inverteu a subordinação. Para ele, é o movimento que depende do
tempo. De repente, o tempo muda de natureza, deixa de ser
circular. Porque quando o tempo está subordinado ao movimento,
por razões longas demais para explicar agora, é o grande
movimento periódico, é o movimento de rotação periódica dos
astros. Portanto, o movimento é circular. Mas quando o tempo se
liberta do movimento e que este passa a depender do tempo, o tempo
se torna uma linha reta. Sempre me faz pensar na frase de Borges,
apesar de ele ter alguma coisa a ver com Kant: "O labirinto
mais terrível do que um labirinto circular é um labirinto em
linha reta". Isso é uma maravilha, mas é Kant! É ele que
destaca o tempo. Além do mais, estas histórias de tribunal que
medem o papel de cada faculdade em função de tal finalidade...
Até que, no final de sua vida, ele foi um dos raros a ter escrito
já muito velho um livro onde reviu tudo. A crítica da faculdade
do juízo. Ele chega à idéia de que é preciso que as faculdades
se relacionem desordenadamente, que se oponham e se reconciliem,
mas que haja uma batalha das faculdades e não mais as medidas que
justifiquem um tribunal. Ele lançou sua teoria sobre o sublime em
que as faculdades entram em discordância, em acordos
discordantes. Aí, eu gosto muito disso, destes acordos
discordantes, deste labirinto em linha reta, sua inversão da
relação. Toda a filosofia moderna veio daí, de que não era
mais o tempo que provinha do movimento e, sim, o contrário. É
uma criação de conceitos fantásticos. E toda a concepção do
sublime com os acordos discordantes das faculdades me tocam
profundamente. É claro que ele é um grande filósofo. Um grande
filósofo. Ele tem um embasamento que me entusiasma, mas o que
está construído em cima disso não me toca em nada. Não estou
julgando. É apenas um sistema de juízo que gostaria de ver
acabado. Mas não julgo.
CP: E a vida de Kant?
GD: A vida de Kant... Isso não estava previsto!
CP: Há outro aspecto que poderia ter lhe interessado em Kant que
é relativo a Thomas de Quincey, aquela fantástica vida regrada
por hábitos, aquele passeio matinal... A vida do filósofo como
se pode imaginar popularmente. Algo muito particular no qual
também podemos imaginar você, com esta vida mais regrada. O
hábito sendo muito importante.
GD: Acho que...
CP: Na vida de trabalho.
GD: Entendo o que quer dizer. O texto de Quincey a entusiasma e a
mim também, é uma obra-prima. Mas diria que isso pertence a
todos os filósofos. Eles não têm os mesmos hábitos, mas são
criaturas com hábitos. Pode parecer que eles não saibam... Mas é
preciso que sejam criaturas com hábitos. Acho que Spinoza não
tinha uma vida muito cheia de imprevistos. Ele tinha a vidinha
dele, com as lentes dele, polindo as lentes. Ele recebia algumas
visitas, etc. Ganhava a vida polindo lentes. Não era uma vida
agitada, a não ser pelos acontecimentos políticos. Kant também
passou por fatos políticos intensos. Tudo o que dizem sobre
aparelhos que Kant inventava para levantar as calças ou as meias,
etc. faz dele um personagem com muito charme. Mas todos os
filósofos são um pouco, como diz Nietzsche, castos, pobres, etc.
Mas ele acrescenta: "Mas tentem adivinhar para que serve
isso?" Para que serve a castidade, a pobreza e tudo o mais?
Kant tinha seu passeio diário, mas isso não é nada. O que
acontecia durante este passeio diário? O que ele olhava? Era bom
saber. Se os filósofos são seres com hábitos é porque o hábito
é contemplar. O hábito é a contemplação de alguma coisa. No
verdadeiro sentido da palavra, "hábito" é contemplar.
O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus
hábitos... Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as
contemplações. Eu saio para contemplar. Às vezes, são coisas
que sou o único a ver. Este seria um hábito.
CP: Agora, L de Literatura.
GD: Vamos ao L?
L de Literatura
CP: L de Literatura. Um filósofo cria conceitos e um romancista
cria personagens. Mas os grandes personagens de romance são
pensadores. Elementar, meu caro Watson! L de Literatura.
GD: Chegamos ao L.
CP: Já?
GD: Sim!
CP: A Literatura povoa seus livros de filosofia e a sua vida. Você
lê e relê muitos livros de literatura, do que chamam de "Grande
Literatura". Sempre tratou os grandes escritores como
pensadores. Entre Kant e Nietzsche, você escreveu Proust e os
signos, que é um livro famoso. Lewis Caroll, Émile Zola, Masoch,
Kafka, a Literatura inglesa e americana... Parece que é mais
através da Literatura do que da história da filosofia que você
inaugura um novo pensamento. Gostaria de saber se você sempre leu
muito.
GD: Sim. Houve uma época em que li muito mais filosofia, pois
fazia parte da minha profissão, do meu aprendizado, e não tinha
muito tempo para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes
romances. Cada vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a
filosofia? Claro que sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por
que não?, um romancista bastante filósofo, eu devo muito. O que
eu devo a Faulkner também é muito grande. Estou esquecendo
muitos outros. Mas tudo isso se explica em função do que já
dissemos. Avançamos muito, como você já percebeu. É aquela
história: o conceito não existe sozinho. O conceito, ao mesmo
tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado aos
perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma
comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas
de estilo que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É
uma questão muito simples: os grandes personagens da Literatura
são grandes pensadores. Eu acabo de reler vários livros de
Melville. Está claro que o Capitão Ahab é um grande pensador,
que Bartleby é um pensador. É um outro tipo de pensador, mas,
mesmo assim, é um pensador. Eles nos fazem pensar. De maneira tal
que uma obra literária tanto traça conceitos, de forma
implícita, quanto traça perceptos . Isso é certo. Mas não cabe
ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Está
tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e perceber e em
criar personagens! Imagine o que é criar personagens! É uma
coisa impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas acontece que
estes transmitem muito, porque o conceito, sob alguns aspectos, é
um personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito. Pelo
menos, eu acho. O que há de comum entre as duas atividades, a
grande filosofia e a grande literatura, é que ambas testemunham
em favor da vida. É o que chamei de potência há pouco. É por
isso que os grandes autores não têm muito boa saúde. Existiram
algumas exceções, como o caso de Victor Hugo. Eu não devia
dizer que não têm boa saúde, pois alguns tinham uma saúde
excelente. Mas por que existem literatos com saúde fraca? São os
mesmos pelos quais passa uma enxurrada de vida. É justamente por
isso. Em relação à saúde fraca de Spinoza ou à de Lawrence, o
que os unia? Era quase o que eu dizia sobre a queixa: eles viram
alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram
algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os
arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão
arrasado? Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no
mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se
pode mais voltar. Que coisas são estas? Varia muito de um autor a
outro. Em geral, são perceptos no limite do suportável ou
conceitos no limite do pensável. É isso. Entre a criação de um
grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas
ligações. É como se fosse a mesma empreitada.
CP: Você se considera um escritor em Filosofia? Um escritor
literariamente falando?
GD: Não sei se me considero um grande escritor em Filosofia, mas
sei que todo grande filósofo é um grande escritor.
CP: Não há uma nostalgia da obra romanesca quando se é um
grande filósofo?
GD: Não, porque é como se dissesse a um pintor: "Por que
não faz música?" Pode-se conceber um filósofo que também
escreva romances. Sartre tentou fazer isso. Não foi nenhum...
Para mim, Sartre não era um romancista, mas ele tentou. Será que
houve outros grandes filósofos que escreveram romances
importantes? Nenhum que eu conheça. Mas sei de filósofos que
criaram personagens. Isso já aconteceu. Platão criou
personagens. Nietzsche criou personagens, como Zaratustra. Aí
estão os tais cruzamentos dos quais estamos sempre falando. A
criação de Zaratustra, tanto poética quanto literariamente, foi
um grande sucesso, assim como os personagens de Platão. São
pontos em que não se sabe mais o que é conceito e o que é
personagem. Estes talvez sejam os momentos mais bonitos.
CP: E seu amor por autores menores, como Villiers de I'Isle-Adam
ou Restif de la Bretonne? Sempre cultivou este afecto?
GD: É muito estranho ouvir dizer que Villiers de I'Isle-Adam é
um autor menor. Vamos à pergunta. Respondendo a esta pergunta...
É uma coisa vergonhosa, uma vergonha mesmo. Quando era muito
jovem, eu tinha a seguinte atitude: gostava de ler a obra completa
de um autor. Assim, eu acabava me apegando, não por autores
menores — mas muitas vezes coincidia —, por autores que tinham
escrito muito pouco. Isso porque Victor Hugo me parecia grande
demais, me parecia tão inacessível que eu chegava ao ponto de
dizer que Victor Hugo era ruim, mas que Paul-Louis Courier era...
Eu conhecia perfeitamente Paul-Louis Courier. Ele tinha escrito
muito pouco. Eu tinha esta preferência por autores chamados
"menores". Villiers de I'Isle-Adam não era um autor
menor.
CP: Não, é um autor fabuloso, mas menor em relação aos grandes
da época.
GD: Joubert! Eu conhecia a obra de Joubert perfeitamente. Além do
mais, o que era vergonhoso, me dava um certo prestígio conhecer
autores desconhecidos ou pouco conhecidos. Eram manias... Levei
muito tempo para aprender que Victor Hugo era grandioso e que a
imensidão da obra não era pejorativa. Meu amor por autores
menores... Mas é verdade que a Literatura russa não consiste
apenas em Dostoiévski e Tolstoi. Quem ousa chamar Leskov de autor
menor? Há coisas muito impressionantes na obra de Leskov. Autores
como ele são geniais. Não tenho muita coisa a dizer sobre isso,
mas esta busca por autores menores já acabou. O que eu gosto
muito é de encontrar em um autor pouco conhecido alguma coisa que
me parece um conceito ou um personagem extraordinário. Isso sim!
Mas não é uma busca sistemática.
CP: Fora Proust, que é um grande livro seu sobre um autor, a
Literatura está tão presente na sua filosofia que ela é uma
referência. Mas você nunca dedicou um livro à Literatura, um
livro de pensamento sobre a Literatura.
GD: Não tive tempo, mas vou fazê-lo. Vou fazê-lo porque tenho
vontade.
CP: De crítica?
GD: Sim, sim... Sobre o problema... Sobre o que significa escrever
na Literatura. Para mim. Com tudo o que tenho pela frente, vamos
ver se tenho tempo.
CP: Queria fazer uma última pergunta. Você lê e relê os
clássicos, mas parece que conhece pouco os autores contemporâneos
ou que não gosta de descobrir a Literatura contemporânea. Você
prefere ler ou reler um grande autor a ver o que está sendo
lançado ou o que é contemporâneo.
GD: Não é que não goste. Entendo o que quer dizer e vou
responder muito rápido. Não é que eu não goste. É por ser uma
atividade especial e muito difícil. Precisa ter uma formação.
Em uma produção contemporânea é muito difícil ter gosto. É
exatamente como quem conhece novos pintores. É algo que se
aprende. Admiro muito as pessoas que freqüentam galerias e dizem
ou sentem que naquele trabalho existe de fato um pintor. Eu não
sou capaz disso. Preciso de tempo. Para você ter uma idéia, eu
precisei de cinco anos para entender a novidade de Robbe-Grillet.
Beckett, eu vi logo! Quando falavam de Robbe-Grillet, eu era tão
burro quanto os mais burros falando de Robbe-Grillet. Não
entendia nada! Precisei de cinco anos. Não sou um descobridor. Em
filosofia, eu me sinto mais confiante, sou sensível aos novos
tons e também ao que é repetição de coisas já ditas mil
vezes! Nos romances, sou muito sensível e seguro o suficiente
para reconhecer o que já foi dito ou não tem interesse algum,
mas saber se é novo... Uma vez, eu senti isso. Foi com Farrachi.
Descobri do meu modo alguém que me pareceu ser um ótimo
romancista jovem, que é Armand Farrachi. Para esta pergunta que
você me fez é totalmente pertinente, mas eu lhe respondo dizendo
que não se deve achar que se possa sem experiência julgar o que
se faz. Mas o que eu prefiro e acontece com freqüência — e
muito me alegra — é quando o que eu faço tem alguma
repercussão no trabalho de um jovem escritor ou pintor. Não
quero dizer que, por isso, ele ou eu somos bons. Não é isso. Mas
é assim que tenho algum tipo de encontro com o que se faz
atualmente. A minha insuficiência radical relativa ao julgamento
é compensada por estes encontros com pessoas que fazem coisas que
batem com o que eu faço e vice-versa.
CP: Na pintura e no cinema, estes encontros são favoráveis, pois
você vai até lá. Mas não imagino você entrando numa livraria
à procura de livros lançados nos últimos meses.
GD: Sim, é verdade. Talvez esteja ligado ao fato de que a
Literatura não anda bem hoje em dia. Não é uma idéia só
minha, nem preconcebida. Está evidente para todos. É uma
literatura tão corrompida pelo sistema de distribuição,
prêmios, etc. que nem vale a pena.
CP: Então, vamos para a letra M.
M de Maladie [Doença]
GD: Doença.
CP: Logo após terminar o manuscrito de Diferença e repetição
em 1968, você foi hospitalizado por causa de uma gravíssima
tuberculose. Você, que falou sobre o fato de Nietzsche e Spinoza
e os grandes pensadores terem saúde fraca, foi obrigado a
conviver desde 1968 com a doença. Você sabia que a tuberculose
estava aí há muito tempo? Ou sabia que seu mal estava aí há
muito tempo?
GD: O mal, sim. Sabia que eu tinha algum mal há muito tempo. Mas
acho que sou como a maioria das pessoas, não tinha muita vontade
de saber o que era. E, como a maioria, estava certo de que era um
câncer. Então, não tinha pressa de saber. Eu não sabia que era
tuberculose até o momento em que comecei a cuspir sangue. Sou um
filho da tuberculose, mas foi num momento em que esta doença não
apresentava mais perigo algum, pois já havia os antibióticos. Se
tivesse sido dez ou três anos antes, teria sido bem mais grave.
Se tivesse sido alguns anos antes, eu não teria sobrevivido. Mas
não houve problema algum. Além do mais, é uma doença que não
comporta dor. Posso dizer que estive muito doente, mas é um
grande privilégio ter uma doença sem sofrimento, que é curável,
sem dor... Quase não é uma doença. É uma doença, sim, é
verdade. Mas, antes, eu nunca fui um homem saudável. Sempre me
cansei facilmente. A questão é saber se isso facilita. Se alguém
que se propõe, — nem estou falando do sucesso desta empreitada
— mas alguém que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou
tentar pensar, saber se o fato de ter uma saúde fraca lhe é
favorável. Não é que se esteja à escuta de sua própria vida,
mas pensar é para mim estar à escuta da vida. Não é o que
acontece com si próprio. Estar à escuta da vida é muito mais do
que pensar em sua própria saúde. Mas acho que uma saúde fraca
favorece este tipo de escuta. Há pouco, disse que grandes autores
como Lawrence ou Spinoza viram alguma coisa grande, tão grande
que era demais para eles. É verdade que não se pode pensar sem
estar em uma área que exceda um pouco as suas forças, que o
torne mais frágil. Eu sempre tive uma saúde fraca e isso ficou
mais claro a partir do momento em que fui tuberculoso. Aí, eu
adquiri todos os direitos de uma saúde fraca. Sim, é como você
diz.
CP: Mas a sua relação com médicos e medicamentos mudou a partir
daí. Você teve que ir a médicos e tomar remédios regularmente,
o que foi uma obrigação! Ainda mais você que não gosta muito
de médicos.
GD: Não é uma questão pessoal, pois eu conheci muitos médicos
encantadores. Mas é um tipo de poder ou a forma como eles
manipulam este poder que me parecem detestáveis. Voltamos ao que
já falei. É como se a metade das letras comportasse o todo. A
maneira como manipulam o seu poder é detestável. Como médicos,
eles são detestáveis. Tenho um profundo ódio, não pela pessoa
dos médicos que, em geral, são encantadores, mas pelo poder
médico e pela maneira como usam este poder. Mas uma coisa me
deixou feliz e, ao mesmo tempo, é o que os chateia. Os médicos
trabalham cada vez mais com aparelhos e testes, em geral muito
desagradáveis para o paciente e que parecem não ter interesse
algum, a não ser o de confirmar o diagnóstico. Mas se são
médicos talentosos, estes já sabem o diagnóstico e estas provas
cruéis só vêm reforçá-lo. Eles fazem uso destas provas de uma
forma inadmissível. O que me deixou feliz foi que, sempre que eu
tive de passar por um daqueles aparelhos, meu fôlego era fraco
demais para ser registrado pela máquina. E quando tiveram de me
fazer um... Não sei mais como se chama, mas é um exame do
coração que não conseguiram fazer.
CP: Uma ecografia.
GD: Sim, é isso, e tive de passar por este aparelho aí. A minha
alegria foi vê-los furiosos naquele momento. Acho que eles odeiam
o pobre paciente neste momento. Eles aceitam errar o diagnóstico,
mas não aceitam que alguém não possa ser visto pela máquina.
Além do mais, eles são muito incultos. Eles são muito... Como
diria? Quando eles se metem na cultura, é uma catástrofe. A
classe médica é uma gente estranha. O que me consola é que
ganham muito dinheiro, mas não têm tempo para gastá-lo ou
aproveitá-lo, pois levam uma vida extremamente difícil. É
verdade que os médicos não me atraem muito. É claro que isso
independe da personalidade deles, mas quando exercem a sua função,
tratam as pessoas como cães. Aí, há de fato uma luta de
classes, pois se o paciente é rico, eles já são bem mais
educados. Menos em cirurgia, que é um caso à parte. Mas os
médicos precisariam de uma reforma, pois há de fato um problema.
CP: E os remédios que precisa tomar o tempo todo?
GD: Até que eu gosto. Remédios não me aborrecem. Mas cansam,
claro.
CP: Mas não é uma chatice tomar remédios?
GD: Quando são muitos, como atualmente, sim. Aquele monte de
remédios de manhã cedo parece uma besteira. Mas eu também sinto
que é muito útil. Eu sempre fui a favor dos remédios, até na
área de psiquiatria. Sempre fui a favor da farmácia.
CP: E este cansaço do qual falou, que está ligado à doença, e
que já existia antes da doença, me faz pensar no texto de
Blanchot sobre o cansaço na amizade. O cansaço ocupa grande
parte de sua vida. Às vezes, parece que o usa como desculpa para
o que o está chateando. Você usa o cansaço. O cansaço lhe é
útil.
GD: Eu acho o seguinte... Voltamos ao tema da potência. O que é
realizar um pouco de potência, fazer o que se pode, fazer o que
está na minha potência? É uma noção bem complexa, pois o que
nos torna impotentes, como uma saúde fraca ou uma doença...,
precisa-se saber como utilizá-las para, por meio delas, recuperar
um pouco da potência. É claro que a doença deve servir para
alguma coisa, como todo o resto. Não estou falando apenas em
relação à vida, na qual ela deve dar um sensação. Para mim, a
doença não é uma inimiga, pois não é uma coisa que dá a
sensação da morte, e sim, que aguça a sensação da vida. Não
é no sentido de: "Ah, como gostaria de viver e quando
estiver curado, vou começar a viver!" Não é nada disso.
Não há nada de mais abjeto no mundo do que um bon vivant. Ao
contrário, os grandes vivos são pessoas de saúde muito fraca.
Voltando à questão da doença, ela aguça uma visão da vida,
uma sensação da vida. Quando falo em visão da vida, em vida ou
em ver a vida, é ser tomado por ela. A doença aguça e dá uma
visão da vida. A vida em toda a sua potência, em toda a sua
beleza! Estou seguro disso. Mas como ter benefícios secundários
da doença? É muito simples. É preciso usá-la para ser mais
livre. Tem de usá-la, senão é muito chato, pois a gente se
estafa e isso não deve acontecer. Estafar-se trabalhando para
realizar alguma potência vale a pena, mas estafar-se socialmente,
eu não entendo. Não entendo um médico estressado porque tem
clientes demais. Tirar partido da doença é se libertar das
coisas das quais não se liberta na vida normal. Por exemplo, eu
nunca gostei de viajar. Nunca pude, nem soube viajar. Respeito os
que viajam, mas o fato de ter uma saúde tão frágil me dava
muita segurança para recusar qualquer viagem. Sempre foi muito
difícil deitar-me muito tarde. A minha saúde não me permitia
deitar tarde demais. Não estou falando em relação aos amigos,
mas às tarefas sociais. A doença me libera muito. É ótima
neste sentido.
CP: Você vê esta fadiga como a doença?
GD: A fadiga é outra coisa. Para mim é: "Hoje, fiz o que
pude". A fadiga é biológica. O dia acabou, pronto. Ele pode
durar mais por razões sociais, mas a fadiga é a formulação
biológica do fim do dia. Não dá para tirar mais nada de você.
Visto desta forma, não é um sentimento desagradável. É
desagradável se não se faz nada. Aí, é angustiante. Do
contrário, é bom. Eu sempre fui sensível aos estados suaves.
Estas fadigas suaves. Gosto deste estado quando ele vem no final
de alguma coisa. Isso deveria ter um nome em música. Não sei
como chamariam isso. É uma coda. A fadiga é uma coda.
CP: Gostaria de que falássemos de sua relação com a comida.
GD: A velhice... A velhice, não. A comida?
CP: Sim, porque você gosta de comidas que parecem lhe dar força
e vitalidade, como miolo, lagosta, etc. Mas tem uma relação
particular com a comida. Não gosta muito de comer.
GD: Sim, para mim, comer é uma coisa... Se eu tentasse definir a
qualidade de comer seria muito chato. Para mim, comer é a coisa
mais chata do mundo. Beber, sim! Mas a letra B já passou. Beber é
extremamente interessante. Comer nunca me interessou e acho
chatíssimo. Comer sozinho é terrível. Comer acompanhado muda
tudo, mas não transforma a comida, só me permite suportar comer,
mesmo que eu não diga nada, e faz com que seja menos chato. Comer
sozinho... Muita gente é assim. Aliás, a maioria das pessoas
admite que comer é uma tarefa abominável. Mas é claro que tenho
os meus pratos prediletos. Mas são especiais, pois causam um nojo
universal. Mas, afinal, eu bem que suporto o queijo dos outros.
CP: Você não gosta de queijo.
GD: Dentre as pessoas que não suportam queijo, eu sou um dos
raros a ser tolerante, pois não expulso aquele que come queijo.
Sempre suportei este gosto que me parece igual ao canibalismo.
Parece-me o horror absoluto. Quando me perguntam de que é
composta a minha refeição predileta, que seria uma festa para
mim, eu sempre falo de três coisas que me parecem sublimes e, no
entanto, são nojentas: língua, miolo e tutano. São coisas muito
ricas e seria difícil engolir tudo isso. Mas há alguns
restaurantes em Paris que servem tutano. Mas, depois, não posso
comer mais nada, pois servem uma grande quantidade. Aliás, é
fascinante. O miolo e a língua... Se eu tentasse relacionar com o
que dissemos, há uma espécie de trindade. Poderíamos dizer —
e seria anedótico — que o cérebro é Deus, é o Pai. Que o
tutano é o Filho, já que está ligado às vértebras, que são
pequenos crânios, e Deus é o crânio. Pequenos crânios,
vértebras... Portanto, o tutano é Jesus. E a língua é o
Espírito Santo, que é a própria potência da língua. Eu também
poderia arriscar assim: o miolo é o conceito, o tutano é o
afecto e a língua é o percepto. Não me pergunte por quê, mas
sinto que são trindades. É, esta seria uma refeição fantástica
para mim. Não sei se já tive os três ao mesmo tempo. Talvez em
algum aniversário. Alguns amigos teriam feito uma refeição
destas para mim. Uma festa!
CP: Mas não pode comer as três coisas...
GD: Seria demais!
CP: ... pois fala de sua velhice todos os dias.
GD: A velhice! Alguém soube falar da velhice. Foi Raymond Devos.
Muitas outras coisas foram ditas, mas ele disse o melhor para mim.
Acho que a velhice é uma idade esplêndida. Claro que há algumas
chateações, tudo fica mais lento, nos tornamos lentos. O pior é
quando alguém lhe diz: "Mas não é tão velho assim!"
Não entende o que é uma queixa. Estou me queixando dizendo "Ah,
estou velho!". Ou seja, invoco as potências da velhice. E
aí, alguém me diz, com a intenção de me consolar: "Não
está tão velho assim". Eu daria uma bengalada nele! Logo
quando estou em plena queixa da minha velhice, não venham me
dizer: "Até que não é tão velho assim". Pelo
contrário, deviam dizer: "Está velho mesmo!" Mas é
uma alegria pura. Fora esta lentidão, de onde vem esta alegria? O
que é terrível na velhice? Não é brincadeira. É a dor e a
miséria. Não é a velhice em si. O que é patético, o que torna
a velhice algo triste são as pessoas pobres que não têm
dinheiro para viver, nem um mínimo de saúde necessário e que
sofrem. Isso é que é terrível. E não a velhice! A velhice não
é um mal em si. Com dinheiro suficiente e um mínimo de saúde, é
formidável. E por que é formidável? Primeiro, porque, na
velhice, sabe-se que chegou lá. O que é muito! Não é um
sentimento de triunfo, mas chegou lá. Chegou lá em um mundo
cheio de guerras, de vírus malditos e tudo o mais. Mas conseguiu
atravessar tudo isso, os vírus, as guerras e todas estas
porcarias. Esta é a hora em que só há uma coisa: ser! O velho é
alguém que é. Ponto final. Podem dizer que é um velho
rabugento, etc. Mas ele é. Ele adquiriu o direito de ser. Afinal,
um velho pode dizer que tem projetos. É verdade e não é. São
projetos, mas não da forma como alguém de 30 anos tem projetos.
Espero escrever estes dois livros, um sobre a Literatura e outro
sobre a Filosofia. Mas, mesmo assim, estou livre de qualquer
projeto. Estou livre de projetos. Quando se é velho, deixa-se de
ser suscetível. Não há mais suscetibilidades, não há mais
decepções fundamentais. Estamos muito mais desinteressados.
Amamos as pessoas de fato pelo que elas são. Acho que afina a
percepção. Vejo coisas que não via antes, percebo elegâncias
às quais eu não era sensível. Agora, eu as vejo melhor, porque
olho para alguém pelo que ele é, quase como se eu quisesse
carregar comigo uma imagem dele, um percepto ou tirar da pessoa um
percepto. Tudo isto torna a velhice uma arte. Os dias passam numa
velocidade impressionante com a escansão, a fadiga. A fadiga não
é uma doença, é outra história. E também não é a morte. Eu
repito: é um sinal de que o dia acabou. Com a velhice, existem
algumas angústias, mas basta evitá-las. Elas são fáceis de
serem esconjuradas. Elas são como os lobisomens ou os vampiros, é
só não estar na frente de um. Gosto desta idéia. Não se deve
estar sozinho à noite quando começa a esfriar, pois somos lentos
demais para poder fugir. Então, são coisas a evitar. A grande
maravilha é que as pessoas deixam a gente de lado, a sociedade
deixa a gente de lado. Ser deixado de lado pela sociedade é uma
alegria tamanha! Não que a sociedade tenha me importunado muito,
mas quem não tem a minha idade ou não está aposentado não sabe
a alegria que é ser deixado de lado pela sociedade. Os velhos que
eu ouço se lamentando são aqueles que não queriam ser velhos,
que não suportam a aposentadoria. Não sei por quê. Que leiam
romances! Pelo menos, descobririam alguma coisa. Eles não
suportam. Eu não acredito, com exceção de alguns casos
japoneses, naqueles aposentados que não conseguem encontrar
alguma ocupação. É uma maravilha ser deixado de lado. Basta
sacudir-se um pouco para que tudo caia. Caem todos os parasitas
que você carregou a vida inteira. E o que resta à sua volta? Só
as pessoas que ama e que o suportam e o amam também. O resto
deixou você de lado. Estou falando de mim. Mas fica muito difícil
quando querem trazê-lo de volta. Não suporto isso. Eu só
conheço a sociedade através do aviso de chegada da aposentadoria
todo mês. Do contrário, sei que sou um desconhecido para a
sociedade. O problema é quando alguém acredita que eu ainda faço
parte dela e que me pede uma entrevista. No nosso caso atual, é
diferente, pois faz parte de um sonho de velhice. Mas quando
alguém quer me entrevistar, tenho vontade de dizer: "Tá
maluco? Você não sabia que sou um velho e fui deixado de lado
pela sociedade?" Mas é bom. Acho que estão confundindo as
coisas: o problema não é a velhice, mas a miséria e o
sofrimento. Mas quando se é velho, miserável e sofredor, aí,
não há palavras para dizer o que é. Mas um velho simplesmente,
que é apenas velho, é o ser.
CP: Mas como está doente, cansado e velho, fazendo a devida
distinção entre as três coisas, deve ser difícil para aqueles
que o cercam e que não estão doentes, cansados, nem velhos como
você. Para seus filhos e sua mulher?
GD: Meus filhos... Meus filhos, não há muito problema. Poderia
haver algum problema se eles fossem menores, mas como já são
grandes, vivem a sua vida e eu não dependo deles, não há
problema algum, a não ser problemas afetivos quando eles pensam:
"Ele parece cansado mesmo". Mas acho que não há um
problema grave com os filhos. E com Fanny, acho que também não é
um problema. Mesmo se para ela... Não sei... É difícil imaginar
o que teria feito a pessoa que ama se tivesse vivido outra vida.
Suponho que Fanny teria gostado de viajar. Ela certamente não
viajou como talvez tenha desejado. Mas o que ela descobriu que não
teria descoberto se tivesse viajado? Como ela teve uma formação
literária muito forte, quantas coisas ela descobriu em romances
esplêndidos que valem por mil viagens? Claro que há problemas,
mas estão acima da minha compreensão.
CP: Para terminar, quando fala de seus projetos, como o livro
sobre a Literatura e o seu último livro O que é a Filosofia?, o
que há de divertido em abordá-los estando velho? Você disse que
talvez não os realizasse, mas que era divertido.
GD: É uma coisa maravilhosa, sabe? Primeiro, há uma evolução.
Quando se é velho, a idéia do que deseja fazer fica cada vez
mais pura, no sentido de que fica cada vez mais refinada. É
exatamente como as famosas linhas de um desenhista japonês.
Linhas muito puras. Parece não ter nada, só uma linha muito
fina. Eu só posso conceber isso como o projeto de um velho. Algo
que seja tão puro, tão nada, mas, ao mesmo tempo, seja tudo,
seja tão maravilhoso! Para conseguir alcançar esta sobriedade,
só depois de muito tempo de vida. O que é a filosofia? Acho
muito divertido, na minha idade, a idéia de sair em busca do que
é a Filosofia, de ter a sensação de que sei e de que sou o
único a saber. Se eu morrer atropelado amanhã, ninguém vai
saber o que é a Filosofia. São coisas muito agradáveis para
mim. Mas eu poderia ter escrito um livro sobre o que é a
Filosofia há 30 anos. Eu sei que teria sido muito... Teria sido
um livro muito...
CP: Pesado?
GD: Muito diferente do que aquele que concebo agora, em que busco
uma certa sobriedade. Poderia ser bom, como poderia não ser. Mas
sei que é agora que devo concebê-lo. Antes, eu não saberia.
Agora, acho que sou capaz. Mas, de qualquer forma, não seria...
N de Neurologia
CP: N de Neurologia. Um pensamento é um produto da mente e um
mecanismo cerebral. Demonstração. Então, N é neurologia e
cérebro.
GD: Neurologia e cérebro... A neurologia é muito difícil.
CP: Seremos breves.
GD: É verdade que a neurologia sempre me fascinou, mas por quê?
É o que acontece na cabeça de alguém ao ter uma idéia. Prefiro
quando alguém tem uma idéia, senão é como um flipperama. O que
acontece? Como se dá a comunicação dentro da cabeça? Antes de
falar de comunicação, como ela acontece dentro da cabeça? Ou
então na cabeça de um idiota. Quem tem uma idéia e um idiota
são a mesma coisa. Eles não procedem por caminhos pré-traçados,
por associações já feitas. O que acontece? Se soubéssemos,
acho que entenderíamos tudo. Isso me interessa. Por exemplo, as
soluções têm de ser muito variadas, quer dizer, duas
extremidades nervosas no cérebro podem entrar em contato. É isso
que chamamos de processos elétricos nas sinapses. Há outros
casos bem mais complexos, talvez, que são descontínuos, nos
quais há uma falha a saltar. Acho que o cérebro é cheio de
fendas, que há saltos que obedecem a um regime probabilista, que
há relações de probabilidade entre dois encadeamentos, que é
algo muito mais incerto, muito incerto. As comunicações dentro
de um mesmo cérebro são fundamentalmente incertas, submetidas a
leis de probabilidade. O que faz com que eu pense em algo? Você
dirá: "Ele não está dizendo nada de novo, é a associação
de idéias". Seria quase necessário se perguntar se, quando
um conceito é dado... Ou um quadro, uma obra de arte é
contemplada, olhada... Teríamos de tentar fazer o mapa cerebral
correspondente. Quais seriam as comunicações contínuas, as
comunicações descontínuas de um ponto a outro. Há uma coisa
que chamou muito a minha atenção. Assim chegamos onde você
queria. O que me impressionou foi uma história... algo de que os
físicos se utilizam muito sob o nome de "transformação do
padeiro". Pega-se um quadrado de massa, faz-se um retângulo,
dobra-se, estica-se novamente etc. São feitas transformações.
Ao final de x transformações, dois pontos contíguos, sem
dúvida, estarão muito distantes. Não há pontos distantes que,
após x transformações, não sejam contíguos. Eu me pergunto:
ao procurarmos algo na cabeça, será que não acontecem misturas
desse tipo? Será que não há dois pontos que, num dado momento,
num estágio do pensamento, eu não sei como aproximar e que, ao
final dessa transformação, estão um do lado do outro? Eu quase
chegaria a dizer que, entre um conceito e uma obra de arte, ou
seja, entre um produto da mente e um mecanismo cerebral, há
semelhanças que são muito comoventes. Acho que a questão "como
pensamos?" ou "o que significa pensar?" diz
respeito, ao mesmo tempo, ao pensamento e ao cérebro, tudo
misturado. Acredito mais no futuro da biologia molecular ou do
cérebro do que no futuro da informática ou de todas as teorias
da comunicação.
CP: Você sempre abriu espaço para a psiquiatria do século 19,
que se ocupava muito de neurologia e ciência do cérebro em
comparação com a psicanálise. Você manteve essa prioridade da
psiquiatria sobre a psicanálise justamente devido à sua atenção
à neurologia?
GD: Sim, sem dúvida.
CP: E isso continua?
GD: É o que eu estava dizendo. A farmacologia também tem
relações com... A farmacologia e sua ação possível sobre o
cérebro e as estruturas cerebrais que poderíamos encontrar em
nível molecular nos casos de esquizofrenia, tudo isso me parece
um futuro mais seguro do que a psiquiatria espiritualista.
CP: Essa é uma questão de método. Não é segredo, é uma
questão aberta às ciências. Você é um autodidata. Quando você
lê uma revista de neurobiologia, ou uma revista científica, você
não é muito bom em matemática, ao contrário dos filósofos que
você estudou. Bergson era formado em matemática, Spinoza era bom
em matemática, Leibniz também. Como você faz para ler quando
tem uma idéia, precisa de algo que lhe interessa e que você não
necessariamente entende tudo? Como você faz?
GD: Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que há várias
leituras de uma mesma coisa e acredito piamente que não é
preciso ser filósofo para ler filosofia. A filosofia é
suscetível, ou melhor, precisa de duas leituras ao mesmo tempo. É
absolutamente necessário que haja uma leitura não-filosófica da
filosofia, senão não haveria beleza na filosofia. Ou seja,
não-especialistas lêem filosofia e a leitura não-filosófica da
filosofia não carece de nada, possui sua suficiência. É
simplesmente uma leitura. Isso talvez não valha para todos os
filósofos. Vejo com dificuldade uma leitura não-filosófica de
Kant, por exemplo. Mas um camponês pode ler Spinoza. Não me
parece impossível que um comerciante leia Spinoza.
CP: Nietzsche.
GD: Nietzsche mais ainda. Todos os filósofos de que gosto são
assim. Acredito que não haja necessidade de compreensão. É como
se a compreensão fosse um nível de leitura. É como se você me
dissesse que, para apreciar Gauguin ou um grande quadro, é
preciso conhecê-lo profundamente. O conhecimento profundo é
melhor, mas também há emoções extremamente autênticas,
extremamente puras e violentas na ignorância total da pintura. É
claro que alguém pode ficar abalado com um quadro e não saber
nada a seu respeito. Podemos ficar muito emocionados com a música
ou com uma certa obra musical sem saber uma palavra. Eu, por
exemplo, fico emocionado com LuluWozzeck. Nem falo do Concerto em
memória de um anjo, que acredito que seja o que mais me emociona
no mundo. Sei que seria ainda melhor ter uma percepção
competente, mas digo que tudo que é importante no campo mental é
suscetível a uma dupla leitura, desde que não façamos essa
dupla leitura casualmente enquanto autodidatas. É algo que
fazemos a partir de problemas vindos de outro lugar. É como
filósofo que tenho uma percepção não-musical da música, que
talvez seja para mim extraordinariamente comovente. Da mesma
forma, é como músico, pintor etc. que alguém pode ter uma
leitura não-filosófica da filosofia. Não ter essa segunda
leitura, que não é exatamente a segunda, não ter duas leituras
simultâneas... São como as duas asas de um pássaro, não é
muito bom não ter as duas leituras simultâneas. Até um filósofo
tem de aprender a ler um grande filósofo não-filosoficamente. O
exemplo típico para mim é mais uma vez Spinoza. Ter um livro de
bolso de Spinoza e lê-lo assim... Para mim, tem-se tanta emoção
quanto numa obra musical. De certa forma, a questão não é mais
compreender. Nos meus cursos, nos cursos que dei, era evidente que
as pessoas compreendiam uma parte e não compreendiam outra. Um
livro é assim para todos: compreendemos uma parte, outra, não.
Volto à sua pergunta sobre a ciência. Acho que é verdade, o que
faz que, de certo modo, estejamos no limite da própria
ignorância. É aí que temos de nos posicionar. Temos de nos
posicionar no limite do próprio saber ou da própria ignorância
para ter algo a dizer. Se espero saber o que vou escrever, e se
espero saber, literalmente, do que estou falando, o que eu disser
não terá nenhum interesse. Se não me arrisco e falo com ar de
sábio do que não sei, também não haverá nenhum interesse. Mas
estou falando da fronteira que separa o saber do não-saber. É aí
que temos de nos posicionar para ter algo a dizer. Quanto à
ciência, para mim é a mesma coisa. E a confirmação para mim é
que sempre tive relações surpreendentes. Eles nunca me
consideraram um cientista, acham que não entendo muita coisa, mas
me dizem: "Funciona". Quer dizer, alguns me disseram:
"Funciona". Quando eu uso... Seria necessário... Sou
sensível aos ecos, não sei como chamar isso. Vou tentar dar um
exemplo bastante simples. Um pintor do qual gosto muito é
Delaunay. O que Delaunay faz? Se eu tentar resumir em fórmulas, o
que Delaunay faz? Ele percebe uma idéia prodigiosa. Isso nos faz
voltar ao início: o que é ter uma idéia? Qual é a idéia de
Delaunay? A sua idéia é que a luz sozinha forma figuras, há
figuras de luz. É algo muito novo. Talvez, muito antes, tivessem
já tido essa idéia. O que aparece com Delaunay é a criação de
figuras formadas pela luz, figuras de luz. Ele pinta figuras de
luz e não os aspectos assumidos pela luz ao encontrar um objeto,
o que seria muito diferente. É assim que ele se afasta de todos
os objetos. Sua pintura não tem mais objetos. Li coisas muito
bonitas que ele disse. Ao julgar severamente o cubismo, ele disse:
"Cézanne tinha conseguido quebrar o objeto, quebrar a
compoteira, e os cubistas ficam tentando colá-la". Portanto,
o importante é eliminar o objeto, substituir as figuras rígidas,
geométricas, com figuras de luz pura. Essa é uma coisa: evento
pictórico e evento Delaunay. Não sei as datas, mas isso não
importa. Há uma maneira ou um aspecto da relatividade, da teoria
da relatividade. Conheço só um pouco, não preciso muito disso.
Não precisamos saber grande coisa. Ser autodidata é que é
perigoso, mas não precisamos saber grande coisa. Sei apenas que
um dos aspectos da relatividade é exatamente que, em vez de
submeter as linhas geométricas... Não. Em vez de submeter as
linhas de luz, as linhas seguidas pela luz, às linhas
geométricas, a partir da experiência de Michaelson, acontece o
inverso. São as linhas de luz que vão condicionar as linhas
geométricas. Entendo que, cientificamente, é uma inversão
considerável. Isso mudou tudo, pois a linha de luz não tem a
constância da linha geométrica. Tudo mudou. Não digo que tenha
sido tudo, que o aspecto da relatividade tenha sido o mais
importante da experiência de Michaelson. Não vou dizer que
Delaunay tenha aplicado a relatividade. Eu celebraria o encontro
entre uma tentativa pictórica e uma tentativa científica, as
quais devem ter alguma relação. Eu estava dizendo a mesma coisa.
Por exemplo: não conheço muito bem os espaços reimannianos, não
conheço os detalhes. Conheço apenas o necessário para saber que
se trata de um espaço construído pedaço por pedaço e cujas
ligações das partes não são predeterminadas. Mas, por razões
totalmente diferentes, preciso de um conceito de espaço que é
construído por ligações que não são predeterminadas. Eu
preciso disso. Não vou passar cinco anos tentando entender
Riemann, pois, ao final desses cinco anos, não terei avançado no
meu conceito filosófico. Vou ao cinema, vejo um espaço estranho,
que todos conhecem como o espaço dos filmes de Bresson, onde o
espaço é raramente global, é construído pedaço por pedaço.
Vemos um pedaço de espaço, um pedaço de cela. Em O condenado à
morte, a cela, do que me lembro, nunca é vista inteira, apesar de
ser um pequeno espaço. Não falo da estação de Lyon em
Pickpocket, onde pequenos pedaços de espaço se ligam. Essa
ligação não é predeterminada, e é por isso que será manual.
Daí a importância das mãos para Bresson. É a mão que vai...
De fato, em Pickepocket, é a velocidade na qual os objetos
roubados são passados que vai determinar a ligação de pequenos
espaços. Não vou dizer que Bresson aplica um espaço
riemanniano. Digo que pode haver um encontro entre um conceito
filosófico, uma noção científica e um percepto estético. É
perfeito. Digo que sei apenas o necessário de ciência para
avaliar encontros. Se eu soubesse mais, faria ciência e não
filosofia. Portanto, falo do que não sei, mas falo do que não
sei em função do que sei. E, se tudo isso tem a ver com tato,
sei lá, não devemos mistificar, não devemos parecer que sabemos
quando não sabemos. Assim como eu tive encontro com pintores...
Foi o dia mais bonito da minha vida. Tive um certo encontro, não
um encontro físico, mas, no que escrevo, tive encontros com
pintores. O maior deles foi com Hantaï. Hantaï me disse: "Sim,
há alguma coisa". Não foi em nível de elogio. Hantaï não
é do tipo que vai me fazer elogios. Não nos conhecemos, mas
havia algo. O que foi meu encontro com Carmelo Bene? Nunca fiz ou
entendi de teatro. Tenho de crer que havia algo. Há pessoas de
ciência com quem isso também funciona. Conheço matemáticos
que, quando gentilmente lêem meu trabalho, dizem: "Para nós,
isso funciona". É um pouco chato porque parece que estou
fazendo um elogio a mim mesmo, mas é para responder à pergunta.
Para mim, a questão não é se eu sei muita ciência ou não, ou
se sou capaz de aprender muita ciência. O importante é não
falar besteira, é estabelecer os ecos, esses fenômenos de eco
entre um conceito, um percepto, uma função, já que as ciências
não procedem com conceitos, mas com funções. Quanto a isso,
preciso dos espaços de Riemann. Sim, sei que isso existe, não
sei bem o que é, mas isso me basta.
O de Ópera
CP: O de Ópera. Acabamos de saber que Ópera é um tema um
pouco... É um tema um pouco de brincadeira porque exceto
WozzeckLulu, de Berg, a ópera não faz parte dos seus interesses.
Você pode falar de novo sobre a exceção feita a Berg, mas ao
contrário de Foucault ou de Châtelet, que gostavam muito da
ópera italiana, você nunca escutou muita música nem ópera. O
que lhe interessa mais é a canção popular. A canção popular
e, mais especificamente, Edith Piaf. Você é apaixonado por Edith
Piaf. Fale um pouco disso.
GD: Você foi um pouco severa. Primeiro, escutei muita música
numa certa época, há muito tempo. Depois, parei porque pensei:
"Não é possível. Isto é um abismo, toma tempo demais".
É preciso ter tempo, e eu não tenho. Tenho muito a fazer. Não
estou falando de obrigações sociais. Tenho vontade de fazer,
escrever algumas coisas e não tenho tempo para ouvir música ou
para ouvir bastante.
CP: Châtelet, por exemplo, trabalhava ouvindo ópera.
GD: Bem, isso é um método. Eu não poderia fazer isso. Ele ouvia
ópera. Não sei se ele fazia isso enquanto trabalhava. Talvez
quando recebia alguém, assim cobria o que lhe diziam quando ele
já estava cheio. Mas esse não é o meu caso. No máximo seria o
que eu entendo... Preferiria que você me perguntasse, que você
transformasse a pergunta em: o que faz com que haja uma comunhão
entre uma canção popular e uma obra-prima musical? Isso me
fascina. Acho que Edith Piaf foi uma grande cantora, ela tinha uma
voz extraordinária e, além disso, ela tinha a característica de
sair do tom e de recuperar a nota fora de tom, uma espécie de
sistema em desequilíbrio no qual sempre recuperamos algo. Esse me
parece o caso de todos os estilos. Gosto muito porque é o que me
pergunto sobre tudo em relação à música popular. Eu sempre me
pergunto: "O que isso tem de novo?". Sobre tudo, sobre
todas as produções a primeira pergunta a ser feita é: "O
que isso tem de novo?". Se já foi feito 10 ou 100 vezes,
pode ser muito bem feito, mas compreendo perfeitamente quando
Robbe-Grillet diz: "Balzac é evidentemente um grande gênio,
mas qual é o interesse hoje de fazer romances como os que Balzac
fazia?". Isso mancha os romances de Balzac porque... Isso
serve para tudo. O que me tocava em Edith Piaf era no que ela
inovava em relação à geração anterior, em relação a Fréhel
e à outra grande... Damian. Em relação a Fréhel e a Damian. As
inovações que ela trouxe, como ela inovou até no traje das
cantoras. Eu era extremamente sensível à voz de Piaf. Nos
cantores mais modernos, é necessário pensar, para entender o que
vou dizer, em Trénet. Qual foi a inovação das canções de
Trénet? Literalmente, nunca tínhamos ouvido aquele modo de
cantar. Insisto muito nesse ponto porque para a filosofia, a
pintura, tudo, para a arte, seja a música popular ou o resto, ou
para o esporte... Veremos quando falarmos sobre esporte que é a
mesma coisa. O que há de novo? Se interpretarmos isso em termos
de moda, é exatamente o contrário. O novo não está na moda,
que talvez estará, mas que não está na moda porque é
inesperado. Por definição, é inesperado. É algo que surpreende
as pessoas. Quando Trénet começou a cantar, dissemos: "É
um louco". Hoje, ele não é mais considerado louco, mas
ficou marcado para sempre que ele era um louco. Edith Piaf me
parecia grandiosa.
CP: Você também gostou muito de Claude François.
GD: Claude François, porque pensei ter visto, com razão ou não,
que ele também trazia algo de novo. Há muitos, não quero citar
nomes. É muito triste porque cantaram assim centenas, milhares de
vezes. Além disso, eles não têm voz nenhuma e não buscam nada.
É a mesma coisa inovar e buscar algo. O que Edith Piaf buscava?
Tudo o que posso dizer sobre a saúde frágil e a grande vida... O
que ela viu, a força da vida é o que acabou com ela. Ela é o
próprio exemplo. Poderíamos citar Edith Piaf em tudo o que já
dissemos. Quanto a Claude François, ele buscava algo. Ele buscava
um tipo novo de espetáculo, um espetáculo musical. Ele inventou
essa espécie de canção dançada, que implica obviamente em
playback. Azar ou não. Assim, ele pôde fazer pesquisas sonoras.
Até o fim, ele não estava satisfeito porque suas letras eram
idiotas e isso é importante numa canção. As letras eram fracas.
Ele não parou de tentar mudar as letras para chegar a letras
melhores, como a de Alexandrie Alexandra, que era uma boa canção.
Hoje, não sei quem... Mas, quando ligamos a TV... É o direito do
aposentado. Quando estou cansado, posso ligar a TV. Quanto mais
canais temos, mais eles se parecem e são de uma nulidade radical.
O regime da concorrência... Fazer concorrência, seja no que for,
é produzir a mesma nulidade eterna. Isso é a concorrência.
Saber o que fará o espectador assistir este canal e não aquele é
espantoso. Não podemos mais chamar isso de canto porque a voz não
existe mais, não há a mínima voz. Mas, enfim, não vamos
reclamar. O que me toca é um campo comum e, contudo, tratado,
pela canção popular e pela música, de duas maneiras
respectivamente diferentes. E do que se trata? Acho que aí
fizemos um bom trabalho, Félix e eu, pois se me perguntassem:
"Que conceito filosófico você produziu, já que você fala
sobre criar conceitos?" Criamos ao menos um conceito muito
importante: o de ritornelo. Para mim, o ritornelo é esse ponto
comum. De que se trata? Digamos que o ritornelo é uma pequena
ária. Quando é que digo tra-la-lá? Agora estou fazendo
filosofia... Eu me pergunto: "Quando é que cantarolo?"
Cantarolo em três ocasiões: quando dou uma volta pelo meu
território e tiro o pó dos móveis. O rádio está ao fundo. Ou
seja, quando estou na minha casa. Cantarolo quando não estou em
casa e estou voltando para casa ao anoitecer, na hora da angústia.
Procuro meu caminho e me encorajo cantarolando. Estou a caminho de
casa. E cantarolo ao me despedir e levo no meu coração... Tudo
isso é canção popular: "Vou embora e levo no coração..."
Quando saio da minha casa, mas para ir aonde? Em outros termos,
para mim, o ritornelo está totalmente ligado - e isso me remete
ao A de Animal - ao problema do território, da saída ou entrada
no território, ou seja, ao problema da desterritorialização.
Volto para o meu território, que eu conheço, ou então me
desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território. Você
vai perguntar: "O que isso tem a ver com a música?" É
preciso progredir ao criar um conceito, por isso uso a imagem do
cérebro. Neste momento, estou pensando num lied. O que é um
lied? Um liedlied. Seja em Schumann ou em Schubert, é
fundamentalmente isso. Eu acho que isso que é o afecto. Quando eu
disse "A música é a história dos devires e da potência do
devir", estava falando de algo assim. Pode ser genial ou
medíocre. O que é então a verdadeira grande música? Parece-me
uma operação "artista da música". Eles partem do
ritornelo. Estou falando dos músicos mais abstratos. Entendo que
cada um tem seu próprio tipo de ritornelo. Eles partem de
pequenas árias e ritornelos. É preciso ver Vinteuil e Proust.
Três notas, depois, duas. Há um pequeno ritornelo na base de
todo Vinteuil, na base do septeto. É um ritornelo. Temos de
achá-lo sob a música. É algo prodigioso. O que acontece? Um
grande músico não coloca um ritornelo depois do outro, mas ele
funde ritornelos num ritornelo mais profundo. São todos os
ritornelos, quase territórios, um território e outro, que vão
se organizar no interior de um imenso ritornelo, que é um
ritornelo cósmico. Tudo o que Stockhausen conta sobre a música e
o cosmo, toda essa maneira de retomar temas que eram correntes na
Idade Média e no Renascimento... Sou a favor dessa idéia de que
a música está ligada ao cosmo de uma maneira... Um músico que
admiro muito e que me emociona é Mahler. O que são os Cantos da
terra? Não podemos dizer melhor. E perpetuamente, como elemento
de gênese, temos um pequeno ritornelo, às vezes, baseado em dois
sinos de vacas. Em Mahler, é muito comovente a maneira como todos
esses ritornelos, que já são obras musicais geniais, ritornelos
de taverna, de pastores etc., se compõem numa espécie de grande
ritornelo que será o Canto da terra. Mais um exemplo seria
Bartok, que, para mim, evidentemente, é um grande músico, um
grande gênio. O modo como os ritornelos locais, os ritornelos de
minorias nacionais são retomados numa obra que não acabamos de
explorar... Acho que a música é... Para uni-la à pintura, é
exatamente a mesma coisa. Klee disse: "O pintor não
representa o visível, ele torna visível". Aí
subentendem-se "as forças que não são visíveis". É
a mesma coisa com o músico. Ele torna audíveis forças que não
são audíveis, que não são... Ele não representa o que é
audível, mas torna audível o que não o é, as forças... Ele
torna audível a música da terra, ele torna audível ou a
inventa. Quase como o filósofo, que torna pensáveis forças que
não são pensáveis, que têm uma natureza bruta, uma natureza
brutal. É essa comunhão de pequenos ritornelos com o grande
ritornelo que, para mim, parece definir a música. Para mim, seria
isso. Esse é o seu poder. O poder de levar para um nível
cósmico. É como se as estrelas começassem a cantar uma pequena
ária de sinos de vacas, uma pequena ária de pastor. É o
inverso, os sinos de vacas são de repente elevados ao estado de
ruído celeste ou de ruído infernal. É isso que...
CP: Mesmo assim, tenho a impressão, não sei por quê, com tudo o
que você me disse e toda essa erudição musical, que o que você
procura na música é algo visual. O que lhe interessa é o
visual, muito mais... Entendo até que ponto o audível está
ligado às forças cósmicas como o visual. Você não vai a
concertos, não escuta música, mas vai a exposições ao menos
uma vez por semana e tem uma prática.
GD: É questão de possibilidade e de tempo. Só posso dar uma
resposta. Uma única coisa me interessa na literatura: o estilo. O
estilo é algo puramente auditivo. É puramente auditivo. Eu não
faria a distinção que você faz entre visual... É verdade que
raramente vou a concertos, porque é mais difícil reservar um
lugar. Tudo isso faz parte da vida prática. Numa galeria, numa
exposição de pintura, não precisamos reservar lugar. Sempre que
vou a um concerto, acho longo demais porque sou pouco receptivo,
mas sempre tive emoções. Acho, mas não tenho certeza, que você
está enganada. Acho que você está errada. Não é verdade. Sei
que a música me proporciona emoções. Só que é ainda mais
difícil. Falar de música é ainda mais difícil do que falar de
pintura. É quase o ápice falar de música.
CP: Muitos filósofos falaram de música.
GD: Mas o estilo é sonoro e não visual. Nesse nível, só me
interessa a sonoridade.
CP: A música está ligada à filosofia, ou seja, muitos
filósofos, sem mencionar Jankélévitch, falaram sobre música.
GD: Sim, é verdade.
CP: Além de Merleau-Ponty, poucos falaram de pintura.
GD: Você acha que foram poucos? Não sei.
CP: Não tenho certeza, mas Barthes falou de música, Jankélévitch
também.
GD: Ele falou bem.
CP: Foucault falou.
GD: Quem?
CP: Foucault.
GD: Foucault não falou muito de música. Era um segredo seu. Sua
relação com a música era um segredo.
CP: Mas ele esteve muito ligado a músicos.
GD: Tudo isso eram segredos. Ele não falava...
CP: Sim, mas ele ia a Bayreuth, era íntimo do mundo musical,
mesmo sendo um segredo. E a exceção Berg, como sugere
Pierre-André...
GD: Isso me faz lembrar... Isso faz parte também... Por que você
se dedica a algo? Não sei por quê. Descobri ao mesmo tempo que
as peças para orquestra de... Está vendo o que é ser velho e
não se lembrar dos nomes? As peças para orquestra do seu mestre.
CP: Schönberg.
GD: De Schönberg. Lembro-me de que, naquele momento, não faz
tanto tempo, eu podia escutar as peças para orquestras quinze
vezes seguidas. Quinze vezes seguidas, e eu conhecia os momentos
que me comoviam. Foi no mesmo momento que encontrei Berg e ele me
fazia... Eu podia escutá-lo o dia todo. Por quê? Acho que tinha
a ver com a relação com a terra. Só fui conhecer Mahler muito
depois. É a música e a terra. Retomar isso nos músicos mais
antigos... A música e a terra estão muito presentes. Mas o fato
de a música estar relacionada à terra na época de Berg e Mahler
foi comovente para mim. Tornar sonoros os poderes da terra. Era
isso, Wozzeck é, para mim, um grande texto porque é a música da
terra. É uma grande obra.
CP: E os dois gritos? Você gostava dos gritos de Marie.
GD: Para mim, há uma forte relação entre o canto e o grito.
Toda essa escola soube reapresentar o problema. Os dois gritos...
Não me canso do grito. O grito horizontal que toca a terra em
Wozzeck e o grito vertical, totalmente vertical da condessa. Era
condessa ou baronesa? Não sei mais.
CP: Condessa.
GD: Da condessa em Lulu. São dois ápices do grito, mas a relação
entre... Tudo isso me interessa porque, em filosofia, há cantos e
gritos. Os conceitos são verdadeiros cantos em filosofia. E
também há gritos na filosofia. Há gritos repentinos.
Aristóteles: "É preciso parar". Ou um outro que dirá:
"Nunca vou parar". Spinoza: "O que um corpo pode
fazer? Nem sabemos". Esses são gritos. Mas a relação
grito/canto ou conceito/afecto é parecida. Gosto disso, é algo
que me toca.
P de Professor
CP: Então, P é de Professor. Hoje, você tem 64 anos e, durante
quase 40 anos, você foi professor, primeiro do ensino médio,
depois, na universidade. Este ano é o primeiro sem aulas. Você
sente falta das aulas? Você disse que dava aula com paixão. Você
sente falta de dar aula hoje?
GD: Não, absolutamente. É verdade que foi a minha vida, que foi
uma parte muito importante da minha vida. Eu gostava muito de dar
aula, mas, quando me aposentei, foi uma alegria porque eu já não
tinha tanta vontade de dar aula. A questão das aulas é muito
simples. Acho que as aulas têm equivalentes em outras áreas. Uma
aula é algo que é muito preparado. Parece muito com outras
atividades. Se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração,
tem de fazer uma longa preparação. Para ter esse momento de...
Se não temos... Eu vi que, quanto mais fazia isso... Sempre fiz
isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter esses momentos de
inspiração. Com o passar do tempo, percebi que precisava de uma
preparação crescentemente maior para obter uma inspiração cada
vez menor. Então, estava na hora... Não me sinto privado porque
gostei de dar aula, mas era algo de que eu precisava menos.
Resta-me escrever, o que comporta outros problemas. Não me
arrependo. Mas gostei profundamente de dar aulas.
CP: Preparar muito significava quanto tempo de preparação?
GD: Tenho de refletir. Como tudo, são ensaios. Uma aula é
ensaiada. É como no teatro e nas cançonetas, há ensaios. Se não
tivermos ensaiado o bastante, não estaremos inspirados. Uma aula
quer dizer momentos de inspiração, senão não quer dizer nada.
CP: Você não ensaiava diante do espelho, não é?
GD: Não, cada atividade tem seus modos de inspiração. Mas não
há outra palavra a não ser pôr algo na cabeça e conseguir
achar interessante o que é dito. Se o orador não acha
interessante o que está dizendo... Nem sempre achamos
interessante o que dizemos. E não é vaidade, não é se achar
interessante ou fascinante. É preciso achar a matéria da qual
tratamos, a matéria que abraçamos, fascinante. Às vezes, temos
de nos açoitar. Não que seja desinteressante, a questão não é
essa. É necessário chegar ao ponto de falar de algo com
entusiasmo. O ensaio é isso. Eu precisava menos disso. E as aulas
são algo muito especial. Uma aula é um cubo, ou seja, um
espaço-tempo. Muitas coisas acontecem numa aula. Nunca gostei de
conferências porque se trata de um espaço-tempo pequeno demais.
Uma aula é algo que se estende de uma semana a outra. É um
espaço e uma temporalidade muito especiais. Há uma seqüência.
Não podemos recuperar o que não conseguimos fazer. Mas há um
desenvolvimento interior numa aula. E as pessoas mudam entre uma
semana e outra. O público de uma aula é algo fascinante.
CP: Vamos recomeçar do início. Você lecionou primeiro no ensino
médio. Você tem uma boa lembrança?
GD: Sim, mas isso não significa nada porque o ensino médio não
era o que é hoje. Penso nos jovens professores que ficam
desanimados. Eu lecionei no ensino médio durante a Liberação,
não muito tempo depois. Era totalmente diferente.
CP: Onde?
GD: Estive em duas cidades do interior. Gostei muito de uma e
menos da outra. Gostei muito de Amiens porque havia uma liberdade
absoluta. Era uma cidade muito livre. Orléans era uma cidade mais
severa. Ainda era a época em que o professor de filosofia era
recebido com muita complacência, perdoavam-lhe muitas coisas
porque ele era uma espécie de louco, de idiota da aldeia. Eu
podia praticamente fazer tudo que quisesse. Eu ensinava meus
alunos a tocar serrote porque eu tocava e todos achavam normal.
Acho que, hoje, isso não seria mais possível...
GD: Pedagogicamente, queria explicar o quê com o serrote? Em que
momento ele entrava em cena?
GD: As curvas. O serrote, como você sabe, tem de ser curvado e
obtemos o som num ponto da curva. São curvas móveis que lhes
interessavam muito.
CP: Já era sobre a variação infinita.
GD: Mas eu não fazia só isso. Eu seguia o currículo, era muito
consciencioso.
CP: E foi aí que você conheceu Poperen?
GD: Sim, conheci bem Poperen. Ele viajava mais do que eu, ficava
muito pouco em Amiens. Ele tinha uma malinha e um despertador
enorme porque não gostava de relógios. Seu primeiro gesto era
tirar o despertador. Ele dava aula com o despertador. Ele era
encantador.
CP: E quem eram seus amigos na sala dos professores?
GD: Eu gostava muito de ginástica. Eu gostava dos professores de
ginástica. Não me lembro muito bem. As salas dos professores nas
escolas devem ter mudado. Era algo de...
CP: Quando alunos, imaginamos a sala dos professores como algo
misterioso e solene.
GD: Não, é o momento em que... Há gente de todo tipo, solene,
brincalhona, de tudo. Eu não ia muito à sala.
CP: Depois de Amiens e Orléans, você deu aulas preparatórias em
Louis-le-Grand?
GD: Sim.
CP: E se lembra de bons alunos que não deram em grande coisa?
GD: Que deram ou não em grande coisa. Não me lembro bem... Sim,
lembro-me deles, eles se tornaram... Pelo que sei, se tornaram
professores. Nunca tive alunos que se tornaram ministros. Tive um
que se tornou policial. Não, nada de especial. Eles seguem seu
caminho e são gente boa.
CP: Depois, vieram os anos de Sorbonne. Parece que esses anos
correspondem a anos de história da filosofia. Depois, Vincennes,
que foi uma experiência determinante após a Sorbonne. Pulei Lyon
depois da Sorbonne. Você ficou contente por entrar para a
universidade depois de ter sido professor de ensino médio?
GD: Contente, não é bem assim nesse nível... Era uma carreira
normal. Se eu tivesse voltado ao ensino médio eu teria ficado...
Não teria sido dramático, anormal, uma derrota. Era normal. Não
tive nenhum problema. Não tenho nada a dizer.
CP: As aulas da faculdade são preparadas de outra maneira?
GD: Para mim, não.
CP: Para você, era igual?
GD: Totalmente. Sempre preparei aulas da mesma forma.
CP: A preparação era tão intensa na escola quanto na faculdade?
GD: Certamente. É preciso estar totalmente impregnado do assunto
e amar o assunto do qual falamos. Isso não acontece sozinho. É
preciso ensaiar, preparar. É preciso ensaiar na própria cabeça,
encontrar o ponto em que... É muito divertido, é preciso
encontrar... É como uma porta que não conseguimos atravessar em
qualquer posição.
CP: Já que estamos falando de sua carreira universitária,
fale-me da sua tese. Quando você a defendeu?
GD: Eu a defendi... Acho que escrevi muitos livros antes para não
fazê-la. É uma reação comum. Eu trabalhava muito e pensava:
"Tenho de fazer minha tese. Tenho de fazer isso, que é
urgente". Adiei ao máximo e, finalmente, a apresentei em...
Acho que foi uma das primeiras teses defendidas depois de 68.
CP: 69?
GD: Sim, deve ter sido em 69. Foi uma das primeiras. Isso me
proporcionou uma situação privilegiada porque a banca só tinha
uma preocupação: evitar os bandos que ainda circulavam na
Sorbonne. Eles estavam com medo. Era a volta, o início da volta.
Eles se perguntavam o que ia acontecer. Lembro-me que o presidente
da banca me disse: "Há duas possibilidades: ou fazemos sua
tese no térreo da Sorbonne. A vantagem é que tem duas saídas.
Se acontecer algo, a banca pode cair fora. O único inconveniente
é que, no térreo, os bandos circulam mais facilmente. Ou então
vamos para o 1º andar. A vantagem é que os bandos sobem com
menos freqüência, mas o inconveniente é só ter uma entrada e
uma saída. Se acontecer algo, como vamos sair?". Quando
defendi minha tese, nunca vi o olhar do presidente da banca, que
estava fixo na porta.
CP: Quem era?
GD: Para saber se tinha algum bando chegando.
CP: Quem foi o presidente da banca?
GD: Não vou dizer seu nome, é segredo.
CP: Posso fazer você dizer.
GD: Ele estava angustiado. E ele era muito simpático. Ele estava
mais emocionado do que eu. É raro a banca estar mais emocionada
do que o candidato, mas foram circunstâncias excepcionais.
CP: Você já era mais conhecido do que três quartos da banca.
GD: Não, eu não era muito conhecido.
CP: Foi Diferença e repetição?
GD: Sim.
CP: Você já era conhecido por seus trabalhos sobre Proust e
Nietzsche.
Vamos falar de Vincennes, a menos que você tenha algo a dizer
sobre Lyon depois da Sorbonne.
GD: Não. Vincennes foi quase... Lá houve uma mudança, você tem
razão, não no que eu chamo de preparação e ensaio das aulas,
nem no seu estilo, mas, a partir de Vincennes, parei de ter um
público de estudantes. Esse foi o esplendor de Vincennes, a
mudança. Não foi algo geral em todas as faculdades, mas em
Vincennes, ao menos em filosofia, porque não era toda a
universidade, havia um novo tipo de público, completamente novo,
que não era mais composto de estudantes, que misturava todas as
idades, pessoas de atividades muito diferentes, inclusive doentes
de hospitais psiquiátricos. Era o público talvez mais variado e
que encontrava uma unidade misteriosa em Vincennes. Ao mesmo
tempo, o mais variado e o mais coerente em função de Vincennes.
Vincennes dava uma unidade a esse público desarmônico. Para mim,
era um público... Depois, deveria ter sido transferido, mas
construí minha vida de professor em Vincennes. Se tivesse ido
para outras faculdades, não me reconheceria. Quando ia a outra
faculdade, eu parecia viajar no tempo, voltar ao século 19. Em
Vincennes, eu falava na frente de pessoas que eram uma mistura de
tudo, jovens pintores, pacientes psiquiátricos, músicos,
drogados, jovens arquitetos, gente de muitos países. Tudo isso
variava de um ano para outro. Num ano, apareciam de repente cinco
ou seis australianos. No ano seguinte, não estavam mais lá. Os
japoneses eram uma constante, de 15 a 20 todos os anos. Os
sul-americanos, os negros, tudo isso é um público inestimável,
é um público fantástico.
CP: Pela primeira vez, era dirigido aos não-filósofos. Quer
dizer, essa prática...
GD: Acho que era filosofia plena, dirigida tanto a filósofos
quanto a não-filósofos, exatamente como a pintura se dirige a
pintores e a não-pintores. A música não se dirige
necessariamente a especialistas de música. É a mesma música. É
o mesmo Berg e o mesmo Beethoven que se dirigem a quem não é
especialista em música e também a músicos. Para mim, a
filosofia deve ser exatamente igual, dirigir-se tanto a
não-filósofos quanto a filósofos, sem mudar. Quando dirigimos a
filosofia a não-filósofos, não temos de simplificar. É como na
música. Não simplificamos Beethoven para os não-especialistas.
É a mesma coisa com a filosofia. Para mim, a filosofia sempre
teve uma dupla audição: uma audição não-filosófica e uma
filosófica. Se não houver as duas ao mesmo tempo, não há nada.
Senão a filosofia não valeria nada.
CP: Explique uma sutileza: há não-filósofos em conferências,
mas você odeia conferências.
GD: Odeio as conferências porque são artificiais e por causa do
antes e do depois. Adoro aulas, é uma maneira de falar, mas odeio
falar. Para mim, falar é uma atividade... E nas conferências,
temos de falar antes, depois etc. Não há a pureza de uma aula. E
as conferências têm um lado circense. As aulas também, mas é
um circo que me faz rir e que é mais profundo. As conferências
têm um lado artificial. As pessoas vão para... Nem eu sei bem
por quê. O fato é que não gosto de conferências. Não gosto de
dar conferências. É tenso demais, difícil, angustiante demais,
não sei. Conferências não me parecem muito interessantes.
CP: Vamos voltar ao querido público variado de Vincennes. Nos
anos de Vincennes, havia loucos e drogados que faziam intervenções
selvagens, que tomavam a palavra. Isso parece nunca ter incomodado
você. Todas as intervenções aconteciam no meio da aula, que
permanecia magistral, e nenhuma intervenção tinha valor de
objeção para você. Ou seja, sua aula sempre foi magistral.
GD: Sim. Precisamos inventar outro termo. O termo "aula
magistral" é o usado nas universidades. Temos de buscar
outro termo. Acho que existem duas concepções de aula: uma
concepção segundo a qual uma aula tem como objetivo obter
reações imediatas de um público sob forma de perguntas e
interrupções. É uma corrente, uma concepção de aula. E há a
concepção dita magistral, do professor que fala. Não é uma
questão de preferência, não tenho escolha. Sempre usei a
segunda, a concepção dita magistral. É preciso achar outro
termo porque... Digamos que é mais uma concepção musical. Para
mim, uma aula é... Não interrompemos a música, seja ela boa ou
ruim. Interrompemos se ela é muito ruim. Não interrompemos a
música, mas podemos muito bem interromper palavras. O que
significa uma concepção musical de aula? Acho que são duas
coisas, na minha experiência, sem dizer que essa é a melhor
concepção. É o meu modo de ver as coisas. Conhecendo um
público, o que foi meu público, penso: "Sempre tem alguém
que não entende na hora. E há o que chamamos de efeito
retardado". Também é como na música. Na hora, você não
entende um movimento, mas, três minutos depois, aquilo se torna
claro porque algo aconteceu nesse ínterim. Uma aula pode ter
efeito retardado. Podemos não entender nada na hora e, dez
minutos depois, tudo se esclarece. Há um efeito retroativo. Se
ele já interrompeu... É por isso que as interrupções e
perguntas me parecem tolas. Você pergunta porque não entende,
mas basta esperar.
CP: Você achava as interrupções tolas porque ninguém esperava?
GD: Sim. Há esse primeiro aspecto. Se você não entende algo,
pode ser que entenda depois. Os melhores alunos perguntam uma
semana mais tarde. No final, eu tinha um sistema inventado por
eles, não por mim: eles me mandavam notas sobre a semana
anterior. Eu gostava muito. Eles diziam: "Temos de voltar a
esse ponto". Eles haviam esperado. Eu não voltava, não
fazia diferença, mas havia essa comunicação. O segundo ponto
importante na minha concepção de aula... Eram aulas que duravam
duas horas e meia. Ninguém consegue escutar alguém por duas
horas e meia. Para mim, uma aula não tem como objetivo ser
entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em
movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo ou
cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não
convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos.
As pessoas têm de esperar. Obviamente, tem alguém meio
adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no momento que lhe
diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a
alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é
emoção. É tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção,
não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de
entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe
convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito
importante. Sentimos o deslocamento dos centros de interesse, que
pulam de um para outro. Isso forma uma espécie de tecido
esplêndido, uma espécie de textura.
CP: Isso quanto ao público, mas, para esse "concerto",
você inventou os termos " pop filosofia" e " pop
filósofo".
GD: É o que eu queria dizer.
CP: Pode-se dizer que sua figura, como a de Foucault, era muito
especial, seu chapéu, suas unhas, sua voz. Você sabe que havia
uma certa mitificação dessa figura por parte dos alunos. Eles
mitificaram Foucault, assim como mitificaram a voz de Wahl. Você
tem consciência de que tem uma figura e uma voz singulares?
GD: Sim, sem dúvida. Sem dúvida, porque a voz, numa aula... Se a
filosofia, como já falamos... A filosofia mobiliza e trata de
conceitos. É normal que haja a vocalização dos conceitos numa
aula, assim como há um estilo de conceitos por escrito. Os
filósofos não escrevem sem elaborar um estilo. São como
artistas, são artistas. Uma aula implica vocalizações, implica
até uma espécie de - eu falo mal alemão - Sprechgesang.
Evidentemente. Há mitificações, "Viu as unhas dele?",
etc. Faz parte de todos os professores. Desde o primário é
assim. O mais importante é a relação entre a voz e o conceito.
CP: Mas seu chapéu era como o vestidinho preto de Piaf. Era uma
postura muito precisa.
GD: Mas eu não o usava por isso. Se produzia esse efeito, ótimo.
CP: Faz parte do papel de professor?
GD: Se faz parte do papel de professor? Não. É um suplemento. O
que faz parte do papel do professor é o que eu disse sobre o
ensaio anterior e a inspiração. Esse é o papel do professor.
CP: Você nunca quis nem escola nem discípulos. Essa recusa de
discípulos é algo muito profundo em você?
GD: Eu não os recuso. Geralmente, uma recusa é recíproca.
Ninguém quer ser meu discípulo. Eu não quero ter nenhum. Uma
escola é terrível por uma simples razão: consome muito tempo,
nos tornamos administradores. Veja os filósofos que fazem escola.
Os wittgenteinianos são uma escola. Não é uma diversão. Os
heideggerianos são uma escola. Isso implica acertos de contas
terríveis, exclusividades, organização do tempo, toda uma
administração. Uma escola é administrada. Assisti a rivalidades
entre os heideggerianos franceses, liderados por Beaufret, e os
heideggerianos belgas, liderados por Develin. Foi uma briga de
foice. Tudo isso é abominável. Isso não me interessa nem um
pouco. Mesmo no nível das ambições, ser chefe de uma escola...
Lacan era chefe de uma escola, mas é terrível, causa muitas
preocupações. É preciso ser maquiavélico para lidar com tudo
isso. Eu detesto tudo isso. A escola é o contrário do movimento.
Dou um exemplo simples: o surrealismo é uma escola. Acerto de
contas, tribunais, exclusões etc. Breton fez uma escola. Dada era
um movimento. Se eu tivesse um ideal, não digo que não consegui,
seria participar de um movimento. Participar de um movimento, sim.
Mas ser o chefe de uma escola não me parece um destino invejável.
Um movimento no qual o ideal não seja ter noções garantidas,
assinadas e repetidas pelos discípulos. Para mim, duas coisas são
importantes: a relação que podemos ter com os estudantes é
ensinar que eles fiquem felizes com sua solidão. Eles vivem
dizendo: "Um pouco de comunicação. Nós nos sentimos sós,
somos todos solitários". Por isso eles querem escolas. Eles
não poderão fazer nada em relação à solidão. Temos de
ensinar-lhes os benefícios da sua solidão, reconciliá-los com
sua solidão. Esse era o meu papel de professor. O segundo aspecto
é um pouco a mesma coisa. Não quero lançar noções que façam
escola. Quero lançar noções e conceitos que se tornem
correntes, que se tornem não exatamente ordinárias, mas que se
tornem idéias correntes, que possam ser manejadas de vários
modos. Isso só é possível se eu me dirigir a solitários que
vão transformar as noções ao seu modo, usá-las de acordo com
suas necessidades. Tudo isso são noções de movimento, não de
escola.
CP: Você acha que, na universidade hoje, a era dos grandes
professores acabou?
GD: Não sei bem porque não faço mais parte disso. Saí em um
momento aterrorizador. Eu não entendia como os professores podiam
dar aulas. Eles tinham se tornado administradores. Quanto à
universidade, a política atual é muito clara. Isso tem a ver com
a adoção de disciplinas que nada têm a ver com disciplinas
universitárias. Meu sonho seria que as universidades continuassem
a ser locais de pesquisa e que, ao lado das universidades, se
multiplicassem as escolas. Escolas técnicas, onde aprendemos
Contabilidade, Informática etc. Mas a universidade só interviria
na Informática e na Contabilidade no nível da pesquisa. Haveria
acordos entre uma escola e uma universidade. A escola enviaria
seus alunos para fazer cursos de pesquisa. A partir do momento em
que admitimos na universidade matérias de escola, a universidade
está acabada, não é mais um local de pesquisa. Somos cada vez
mais corroídos por problemas administrativos. O número de
reuniões nas universidades... Por isso não sei como os
professores conseguem preparar um curso. Suponho que façam o
mesmo todos os anos, ou que nem os façam mais. Talvez eu esteja
enganado, tomara que sim. A tendência parece ser o
desaparecimento da pesquisa, o aumento de disciplinas não
inovadoras na universidade, que não são disciplinas de pesquisa.
É o que chamamos de adaptação da universidade ao mercado de
trabalho. Esse não é o papel da universidade, mas das escolas.
Q de Questão
CP: Q de Questão. Há falsos problemas, às vezes, verdadeiros,
isso já sabemos. Mas também há questões verdadeiras e falsas.
A filosofia serve para propor questões e problemas e as questões
são fabricadas. Como você diz, o objetivo não é tanto
responder, mas livrar-se dessas questões. Livrar-se da história
da filosofia é propor questões, mas aqui, numa entrevista, não
fazemos questões. Não são realmente questões. Como eu e você
vamos nos livrar disso? Vamos fazer uma escolha forçada? Qual é
a diferença entre uma pergunta na mídia e uma pergunta em
filosofia?
GD: É difícil dizer... Na mídia, na maior parte do tempo e nas
conversas correntes, não há questões, não há problemas. Há
interrogações. Se eu digo "Como vai você?", isso não
é um problema, mesmo se você estiver mal. Se eu digo "Que
horas são?", isso não é um problema. Tudo isso são
interrogações. No nível da televisão habitual, mesmo em
programas muito sérios, temos interrogações. "O que você
acha disso?". Isso não é um problema. É uma interrogação,
queremos a sua opinião. É por isso que a TV não é muito
interessante, é a opinião das pessoas. Isso não me parece muito
interessante. Se dizemos "Você acredita em Deus?", isso
é uma interrogação. Onde estão o problema e a questão? Não
existem. Se apresentássemos questões ou problemas num programa
de TV... Precisaria acontecer mais. Temos Océaniques, certo, mas
não é muito freqüente. Os programas políticos não discutem
nenhum problema, mas poderiam fazê-lo. Poderíamos perguntar
sobre a questão chinesa. Não perguntamos, convidamos
especialistas da China que nos dizem coisas que nós mesmos
poderíamos ter dito sem saber nada sobre a China. É
surpreendente. Não faz parte de um domínio... Volto ao meu
exemplo porque ele é grande: Deus. Qual é o problema ou a
questão sobre Deus? Não é saber se você acredita ou não em
Deus, isso não interessa muita gente. O que queremos dizer com a
palavra "Deus"? O que isso quer dizer? Imagino as
questões. Pode querer dizer: "Você será julgado após a
morte?". Por que isso é um problema? Porque estabelece uma
relação problemática entre Deus e o momento do julgamento. Deus
é um juiz? Isso é uma questão. Vamos supor que nos falem de
Pascal. Pascal tem um texto célebre, uma aposta: "Deus
existe ou não?" Apostamos e, lendo o texto de Pascal,
percebemos que não se trata bem disso. Por quê? Ele levanta uma
outra questão. A questão de Pascal não é se Deus existe ou
não, que também não seria uma questão muito interessante, mas
sim qual é o melhor modo de existência; o modo de existência de
quem acredita que Deus existe ou o modo de existência de quem não
acredita? Apesar de a questão de Pascal não dizer respeito à
existência ou não de Deus, ela diz respeito à existência de
quem acredita ou não na existência de Deus. Pelas razões
desenvolvidas por Pascal, e que são as dele, mas que são muito
claras, ele acha que quem acredita que Deus existe tem uma
existência melhor do que quem não acredita. É o problema
pascaliano. Aí há um problema, uma questão. Mas já não é a
questão de Deus. Há uma história subjacente das questões, uma
transformação das questões em outras. A frase de Nietzsche:
"Deus está morto". Não significa a mesma coisa que
"Deus não existe". Se eu digo "Deus está morto.",
a que outra questão isso remete, que não é a mesma de quando eu
digo "Deus não existe."? Depois, vemos que a Nietzsche
não importa se Deus está morto. É uma outra questão que ele
levanta. Se Deus está morto, não há razão para o homem também
não estar morto. Temos de encontrar outra coisa que não o homem.
Não lhe interessa a morte de Deus, mas a chegada de outra coisa
que não o homem. Essa é a arte das questões e dos problemas.
Acho que pode-se fazer isto na televisão ou na mídia, mas seria
um tipo de programa muito especial, é essa história subjacente
dos problemas e das questões. Nas conversas correntes e na mídia,
ficamos no nível das interrogações. Basta ver, não sei...
Podemos citar? Sim, é póstumo. L'heure de vérité era só
interrogações. "Sra. Veil, a senhora acredita na Europa?"
O que quer dizer acreditar na Europa? O interessante é... Qual é
o problema da Europa? Vou dizer qual é o problema da Europa,
assim farei uma previsão uma vez na vida. É a mesma coisa da
China atual. Todos pensam em preparar e uniformizar a Europa. Eles
se perguntam como uniformizar os seguros etc. Depois, aparece na
Praça da Concórdia um milhão de pessoas da Holanda, da Alemanha
etc., e eles não dominam o assunto. Então, eles chamam
especialistas: "Por que há holandeses na Praça da
Concórdia?". "É porque fizemos...". Eles
ignoraram as questões quando tinham de levantá-las. É um pouco
confuso.
CP: Mas, durante anos, você leu jornal. Parece que você não lê
mais jornais. Há algo no nível da imprensa para que não se
levantem mais essas questões?
GD: Tenho menos tempo, sei lá.
CP: Eles o enojam?
GD: Ah, sim! Parece que aprendemos cada vez menos. Estou pronto,
quero aprender coisas. Não sabemos nada, não sabemos... Como os
jornais também não dizem nada... Não sei...
CP: Mas, assistindo ao telejornal... Ao assistir ao telejornal,
que é o único programa que você nunca perde, você tem sempre
uma questão a formular, que não foi formulada, esquecida pela
mídia?
GD: Não sei. Não sei.
CP: Mas você acha que nunca as colocamos?
CP: As questões? Acho que não poderíamos colocá-las. No caso
Touvier, não poderíamos propor questões. Esse é um caso
recente. Touvier foi preso. Por que agora? Todo mundo pergunta por
que ele foi protegido, mas todos sabem que deve ter havido algo.
Ele foi o chefe do serviço de informação, devia ter informações
sobre a conduta dos altos dignitários da Igreja na época da
guerra. Todos sabem do que ele estava a par, mas ficou acertado
que não levantaríamos questões. Isso é o que chamamos de
consenso. Um consenso é o acordo, a convenção com a qual
substituiremos as questões e os problemas por simples
interrogações. Interrogações do tipo "Como vai você?",
ou seja... "Esse convento o escondeu! Por quê?".
Sabemos que essa não é a questão. Todo mundo sabe... Vou dar
outro exemplo recente. Os renovadores da direita e os aparatos da
direita. Todos sabem do que se trata, os jornais dizem que... Eles
não dizem uma palavra. Não sei... Parece-me evidente que, entre
os renovadores da direita, há um problema muito interessante. São
indivíduos não particularmente jovens. Trata-se do seguinte: é
uma tentativa da direita de abalar as estruturas partidárias, que
ainda estão centralizadas em Paris. Eles querem uma independência
das regiões. Isso é muito interessante. É muito interessante,
mas ninguém insiste nesse aspecto. Eles não querem uma Europa de
nações, mas de regiões, querem que uma verdadeira unidade seja
regional e inter-regional e não nacional e internacional. Isso é
um problema. E os socialistas, por sua vez, terão esse problema
entre tendências regionalistas e tendências... Mas as estruturas
partidárias, as federações de província nos sindicatos, quer
dizer, nos partidos, ainda são um método antigo. Tudo é trazido
a Paris e o peso é muito centralizado. Os renovadores de direita
são um movimento antijacobino que a esquerda também terá.
Então, eu penso: "De fato, eles deveriam falar sobre isso".
Mas eles não o farão, se recusarão a falar disso. Recusarão
porque estarão se expondo. Eles sempre responderão apenas a
interrogações. As interrogações não são nada, são apenas
conversa, não têm interesse algum. As conversas e as discussões
nunca tiveram interesse algum. A TV, salvo casos excepcionais,
está condenada a discussões e interrogações. Isso não vale
nada. Não é nem mentiroso, é insignificante, não tem interesse
algum.
CP: Sou menos otimista do que você, acho que Anne Sinclair não
nota, ela acha que faz boas perguntas, que não faz interrogações.
GD: Isso é problema dela. Ela deve estar satisfeita consigo
mesma. Sem dúvida, mas isso é problema dela.
CP: Você nunca aceita ir à televisão. Foucault e Serres foram.
Trata-se de uma retirada à la Beckett? Você odeia a televisão?
Por que você não aparece na televisão?
GD: Aqui, estou aparecendo. Minha razão para não ir é tudo o
que acabei de dizer. Não tenho vontade de conversar ou discutir
com as pessoas. Não suporto as interrogações. Isso não me
interessa. Não suporto discussões. Discutir algo se ninguém
sabe de que problema se trata... Volto à minha história sobre
Deus. Trata-se da inexistência de Deus ou da morte do homem? Da
inexistência de Deus, de quem acredita em Deus? Isso é muito
cansativo. Cada um fala na sua vez... É a domesticidade em estado
puro e com um apresentador idiota ainda por cima. Tenha piedade.
CP: O principal é que você está aqui hoje respondendo nossas
interrogações.
GD: A título póstumo.
R de Resistência
CP: R de Resistência e não de Religião.
GD: Sim.
CP: Como você disse recentemente numa conferência na FEMIS
[École Nationale Supérieure des Métiers de l'Image e du Son],
"A filosofia cria conceitos e, se criamos conceitos,
resistimos". Os artistas, os cineastas, os músicos, os
matemáticos, os filósofos, toda essa gente resiste. Mas resistem
a que exatamente? Vamos ver caso por caso. A filosofia cria
conceitos. A ciência cria conceitos?
GD: É uma questão de terminologia, Claire. Se convencionarmos
usar a palavra "conceito" para a filosofia, as noções
e idéias científicas terão de ser designadas por outra palavra.
Não dizemos que um artista cria conceitos. Um pintor, um músico
não cria conceitos, mas outra coisa. Para a ciência, teríamos
de encontrar outra palavra. Um cientista é alguém que cria
funções, digamos. Não digo que seja a melhor palavra. Ele cria
funções. Funções também são criadas. Criar novas funções...
Einstein, Gallois, os grandes matemáticos, mas não apenas
matemáticos, físicos, biólogos criam funções. E o que é
resistir? Criar é resistir... É mais claro para as artes. A
ciência está numa posição mais ambígua, mais ou menos como o
cinema. Ela está presa a problemas de programa, de capital. As
partes resistem, mas... Os grandes cientistas também são uma
grande resistência. Quando penso em Einstein, em muitos físicos,
em muitos biólogos hoje, é claro que... Eles resistem antes de
tudo ao treinamento e à opinião corrente, ou seja, a todo tipo
de interrogação imbecil. Eles exigem seu... Eles têm realmente
a força para exigir seu próprio ritmo. Não os faremos desistir
de algo prematuramente, assim como não mudaremos um artista.
Ninguém tem direito de mudar um artista. Mas acho que tudo isso,
que a criação como resistência... Recentemente, li um autor que
me chamou a atenção. Acho que um dos motivos da arte e do
pensamento é uma certa vergonha de ser homem. Acho que o artista,
o escritor, que falou mais profundamente sobre isso foi Primo
Levi. Ele soube falar dessa vergonha de ser um homem num nível
extremamente profundo, porque foi logo após sua volta dos campos
de extermínio. Ele sobreviveu com... Ele disse: "Quando fui
libertado, o que me dominava era a vergonha de ser um homem".
É uma frase ao mesmo tempo esplêndida e bela e... Não é
abstrata, é muito concreta a vergonha de ser um homem. Mas ela
não quer dizer... Associamos muita besteira. Não quer dizer que
somos todos assassinos. Não quer dizer que somos todos culpados
diante do nazismo. Primo Levi diz admiravelmente que isso não
significa que carrascos e vítimas são iguais. Não nos farão
acreditar nisso. Muitos dizem que todos somos culpados. Nada
disso, não confundamos carrascos e vítimas. A vergonha de ser
homem não significa que somos todos iguais, comprometidos etc.
Acho que quer dizer muitas coisas. É um sentimento complexo e não
unificado. A vergonha de ser um homem significa: como alguns
homens puderam fazer isso, alguns homens que não eu, como puderam
fazer isso? E, em segundo lugar, como eu compactuei? Não me
tornei um carrasco, mas compactuei para sobreviver. E uma certa
vergonha por ter sobrevivido no lugar de alguns amigos que não
sobreviveram. É um sentimento muito complexo. Acho que, na base
da arte, há essa idéia ou esse sentimento muito vivo, uma certa
vergonha de ser homem que faz com que a arte consista em liberar a
vida que o homem aprisionou. O homem não pára de aprisionar a
vida, de matar a vida. A vergonha de ser homem... O artista é
quem libera uma vida potente, uma vida mais do que pessoal. Não é
a vida dele.
CP: Volto ao artista e à resistência. Quer dizer que essa
vergonha de ser um homem... A arte liberta a vida dessa prisão,
dessa prisão de vergonha. É muito diferente da sublimação. A
arte não é... É realmente uma resistência.
GD: É uma liberação da vida, uma libertação da vida. E não
são coisas abstratas. O que é um grande personagem de romance?
Um grande personagem de romance não é tirado da realidade e
exagerado. Charlus não é Montesquieu. Não é Montesquieu
exagerado pela imaginação genial de Proust. São potências de
vida fantásticas. Por pior que a coisa fique, um personagem de
romance integrou em si... É uma espécie de gigante. É uma
espécie de gigante, uma exageração da vida. Não é uma
exageração da arte. A arte é a produção dessas exagerações.
Só a sua existência já é uma resistência. Ou, como dizíamos,
no nosso primeiro tema, na letra A, sempre escrevemos pelos
animais, ou seja, no seu lugar. Os animais não escreveriam,
porque não sabem escrever. Liberar a vida das prisões que o
homem.... E isso é resistir. Isso é resistir, não sei. Vemos
isso claramente no que fazem os artistas. Quer dizer, não há
arte que não seja uma liberação de uma força de vida. Não há
arte da morte.
CP: Às vezes, a arte não basta. Primo Levi se suicidou muito
tempo depois.
GD: Ele se suicidou como pessoa. Ele não pôde agüentar. Ele
suicidou sua vida pessoal. Há 4 páginas, 12 ou 100 páginas de
Primo Levi, que sempre serão uma resistência eterna ao que
aconteceu. Quando falo de vergonha de ser um homem, não é nem no
sentido grandioso de Primo Levi. Se ousamos dizer algo assim...
Para cada um de nós, na nossa vida cotidiana, há acontecimentos
minúsculos que nos inspiram a vergonha de ser um homem.
Assistimos a uma cena na qual alguém é vulgar demais. Não vamos
fazer uma cena. Ficamos incomodados por ele. Ficamos incomodados
por nós porque parecemos suportar. Assumimos uma espécie de
compromisso. E se protestássemos dizendo: "O que você disse
é ignóbil", faríamos um drama. Estamos encurralados.
Então, sentimos essa vergonha. Não se compara a Auschwitz, mas,
mesmo nesse nível minúsculo, há uma pequena vergonha de ser um
homem. Se não sentimos essa vergonha, não há razão para fazer
arte. Não posso dizer mais do que isso.
CP: Mas, quando você cria, quando você é um artista, você
sente esses perigos o tempo todo à sua volta? Há perigos por
toda parte?
GD: Claro que sim. Na filosofia, também. É o que Nietzsche
dizia. Uma filosofia que não prejudicasse a besteira seria...
Prejudicar a besteira, resistir à besteira. E se não houvesse a
filosofia? As pessoas agem como... Afinal, é bom para as
conversas depois do jantar. Se não houvesse filosofia, não
questionaríamos o nível da besteira. A filosofia impede que a
besteira seja tão grande. Esse é seu esplendor. Não imaginamos
como seria. Se não existissem as artes, a vulgaridade das pessoas
seria... Quando dizemos... Criar é resistir efetivamente. O mundo
não seria o que é sem a arte. As pessoas não agüentariam. Elas
não estudaram filosofia, mas a simples existência da filosofia
as impede de ser tão estúpidas e imbecis quanto seriam se ela
não existisse.
CP: Quando se anuncia a morte do pensamento... Há quem anuncie a
morte do pensamento, do cinema, da literatura. Você acha isso
engraçado?
GD: Não há mortes, há assassinatos. É muito simples. Talvez
assassinemos o cinema, isso é possível, mas não há morte
natural. Por uma razão simples: enquanto algo não tiver e não
assumir a função da filosofia, a filosofia terá razão de
subsistir. Se outra coisa assumir a função da filosofia, não
vejo por que essa outra coisa não seria filosofia. Se dissermos
que a filosofia consiste em criar conceitos e prejudicar, impedir
a imbecilidade, por que você quer que ela morra? Podemos
impedi-la, censurá-la, assassiná-la, mas ela tem uma função.
Ela não vai morrer. A morte da filosofia sempre me pareceu uma
idéia imbecil, idiota. Não é que eu... Fico contente por ela
não morrer. Nem entendo o que significa a morte da filosofia.
Parece-me uma idéia um pouco débil, engraçadinha.
CP: Pueril.
GD: As coisas mudam, não há mais razão para... O que vai
substituir a filosofia? O que vai criar conceitos? Podem dizer que
não precisamos mais criar conceitos. E a besteira reinará. Tudo
bem, os idiotas querem acabar com a filosofia. Quem vai criar
conceitos? A informática? São os publicitários? Eles usam a
palavra conceito. Tudo bem, teremos os conceitos publicitários,
conceitos de uma marca de macarrão. Não será um grande rival
para a filosofia. Acho que a palavra conceito não é usada da
mesma maneira. Mas hoje é a publicidade que se apresenta como
rival direto da filosofia porque eles dizem que são eles que
inventam conceitos. Mas os conceitos da informática, dos
computadores... O que eles chamam de conceito nos faz rir. Não
devemos nos preocupar.
CP: Podemos dizer que você, Félix e Foucault formam redes de
conceitos como redes de resistência, uma máquina de guerra
contra um pensamento dominante e lugares-comuns.
GD: Sim, por que não? Seria bom se fosse verdade. Mas a rede é o
único... Se não formarmos escolas, e as escolas não me parecem
algo muito bom, só há o regime das redes, das cumplicidades.
Claro, sempre foi assim em todas as épocas. O que chamamos de
romantismo, por exemplo, o romantismo alemão ou em geral, é uma
rede. O que chamamos de dadaísmo é uma rede. Tenho certeza de
que há redes hoje em dia.
CP: Redes de resistência?
GD: Óbvio, a função da rede é resistir e criar.
CP: Você se sente célebre e clandestino? Você gosta dessa noção
de clandestinidade.
GD: Gosto, mas não me sinto célebre. Não me sinto clandestino.
Gostaria de ser imperceptível. Muita gente gostaria. Isso não
significa que eu não o seja. Ser imperceptível é bom porque
podemos... Mas essas são questões quase pessoais. O que eu quero
é fazer meu trabalho, que não me perturbem e não me façam
perder tempo. Ao mesmo tempo, ver pessoas. Sou como todo mundo.
Gosto das pessoas, de um pequeno número de pessoas. Gosto de
vê-las, mas, quando as vejo, não quero que seja um problema.
Relações imperceptíveis com pessoas imperceptíveis é o que há
de mais bonito no mundo. Todos nós somos moléculas. Uma molécula
numa rede, uma rede molecular.
CP: Há uma estratégia da filosofia? Quando você escreve sobre
Leibniz este ano, você escreve estrategicamente sobre Leibniz?
GD: Acho que depende do que "estratégia" quer dizer.
Quer dizer que não escrevemos sem uma certa necessidade. Se quem
escreve um livro não sente necessidade de escrevê-lo, é melhor
não o fazer. Escrevi sobre Leibniz porque me era necessário. Por
quê? Porque chegou o momento para mim. Demoraria demais explicar.
Falar não de Leibniz, mas da dobra. A dobra, para mim, naquele
momento, estava ligada a Leibniz. Eu poderia dizer de todos os
meus livros qual foi a necessidade da época.
CP: Fora a necessidade que o leva a escrever, o retorno a um
filósofo, à história da filosofia, após o livro sobre o cinema
ou Mil platôs e O anti-Édipo...
GD: Não houve retorno a um filósofo. Minha resposta estava
certa. Não escrevi sobre Leibniz. Não escrevi um livro sobre
Leibniz porque, para mim, havia chegado o momento de estudar o que
era uma dobra. Escrevo sobre a história da filosofia quando
preciso, ou seja, quando encontro e sinto uma noção que já
estava ligada a um filósofo. Quando me apaixonei pela noção de
expressão, escrevi um livro sobre Spinoza porque ele foi um
filósofo que elevou a noção de expressão a um ponto
extremamente alto. Quando encontrei por conta própria a noção
de dobra, me pareceu óbvio que seria através de Leibniz que...
Também encontro noções que não são dedicadas a um filósofo...
Então, não faço história da filosofia. Para mim, não há
diferença entre escrever um livro de história da filosofia e
escrever um livro de filosofia. É nesse sentido que digo que sigo
o meu caminho.
S de Style [Estilo]
CP: S de Style [Estilo].
GD: Essa é boa.
CP: O que é o estilo? Em Diálogos, você diz que é a
propriedade daqueles que não têm estilo. Disse isso sobre
Balzac, se não me engano. O que é um estilo?
GD: Essa não é uma perguntinha à toa.
CP: Foi por isso que perguntei tão rápido.
GD: Eu acho o seguinte: para entender o que é um estilo, não se
deve saber nada de lingüística. A lingüística causou muito
mal. Por quê? Porque há uma oposição da qual Foucault falou
muito bem. Há uma oposição entre a lingüística e a
literatura. Ao contrário do que dizem, elas não combinam. Para a
lingüística, uma língua é sempre um sistema em equilíbrio,
portanto, da qual existe uma ciência. E o resto, as variações,
vão para o lado da fala e não da língua. Quando se escreve,
sabe-se que uma língua é, na verdade, um sistema que está longe
do equilíbrio, é um sistema em perpétuo desequilíbrio. Tanto
que não há diferença de nível entre língua e fala, mas a
língua é feita de todo tipo de correntes heterogêneas em
desequilíbrio umas com as outras. Mas o que é o estilo de um
grande autor? Eu acho que existem duas coisas em um estilo. Vou
responder clara e rapidamente, e tenho vergonha de ser tão breve!
Um estilo é composto de duas coisas: a língua que falamos e
escrevemos passa por um tratamento que é um tratamento
artificial, voluntário. É um tratamento que mobiliza tudo: a
vontade do autor, assim como seus desejos, suas necessidades, etc.
A língua sofre um tratamento sintático original. Nisso
encontramos novamente o tema do animal. Pode ser fazer a língua
gaguejar. Não estou falando de você mesmo gaguejar, mas de fazer
a língua gaguejar. Ou fazer a língua balbuciar, o que não é a
mesma coisa. Vejamos exemplos de grandes estilistas: o poeta
Ghérasim Luca. A grosso modo, ele faz gaguejar, não sua própria
fala, mas a língua. Péguy! É engraçado, porque as pessoas
acham que Péguy tem uma personalidade estranha, mas esquecem que,
acima de tudo, como todo grande artista, é um louco total. Nunca
ninguém escreveu, nem escreverá como Charles Péguy. Ele faz
parte dos grandes estilistas da língua francesa, das grandes
criações da língua francesa. O que ele faz? Não se pode dizer
que seja um gaguejar. Ele faz a frase crescer pelo meio. É
fantástico! Em vez de fazer frases que se seguem, ele repete a
mesma frase com um acréscimo no meio dela, o qual, por sua vez,
vai gerar outro acréscimo, etc. É um processo no qual ele faz a
frase proliferar pelo meio através de inserções. Um grande
estilo é isso. Este é o primeiro aspecto: fazer com que a língua
passe por um tratamento, mas um tratamento incrível. É por isso
que um grande estilista não é um conservador da sintaxe. É um
criador de sintaxe. Eu mantenho a bela fórmula de Proust: "As
obras-primas são sempre escritas em uma espécie de língua
estrangeira". Um estilista é alguém que cria em seu idioma
uma língua estrangeira. Isso vale para Céline, para Péguy. É
assim que se reconhece um estilista. Ao mesmo tempo que, sob o
primeiro aspecto, a sintaxe passa por um tratamento deformador,
contorcionista, mas necessário, que faz com que a língua na qual
se escreve se torne uma língua estrangeira, sob o segundo
aspecto, faz-se com que se leve toda a linguagem até um tipo de
limite. É o limite que a separa da música. Produz-se uma espécie
de música. Quando se conseguem essas duas coisas e se há
necessidade para tal, é um estilo. Os grandes estilistas fazem
isso. É verdade para todos: cavar uma língua estrangeira na
própria língua e levar toda a linguagem a uma espécie de limite
musical. Ter um estilo é isso.
CP: E você acha que tem um estilo?
GD: Que perfídia!
CP: Mas seu estilo mudou desde o seu primeiro livro.
GD: A prova de um estilo é a variabilidade. E, em geral, vai se
tornando cada vez mais sóbrio. Mas isso não quer dizer menos
complexo. Penso em um dos autores que muito admiro do ponto de
vista estilístico: Jack Kerouac. No final, Kerouac é uma linha
japonesa. Seu estilo é um desenho japonês, uma pura linha
japonesa. Tornar-se mais sóbrio, mas isso sempre implica a
criação de uma língua estrangeira na própria língua. Eu
também penso em Céline. As pessoas costumavam dizer que Céline
introduziu a língua falada na escrita. É uma besteira, pois, na
verdade, há um tratamento escrito na língua, é preciso criar
uma língua estrangeira na própria língua para se obter por
escrito a equivalência da língua falada. Ele não introduziu o
falar na escrita. Mas quando o elogiam por isso, ele sabe muito
bem que está muito longe do que ele queria. E vai ser no segundo
romance, em Mort à crédit, que ele vai se aproximar mais. Quando
Mort à credit foi publicado, disseram que ele havia mudado. E ele
sabe novamente que está longe do que quer. Ele vai obter o que
quer em Guignol's bande, no qual ele realmente leva a linguagem a
um limite tal que a aproxima da música. Não é mais o tratamento
da língua que a torna estrangeira, mas o fato de toda a linguagem
ser levada a um limite musical. Por natureza, um estilo muda, ele
tem variações.
CP: É verdade que se pensa muito em Steve Reich, com sua música
repetitiva, quando se lê Péguy.
GD: Sim, só que Péguy tem mais estilo do que Steve Reich.
CP: Não respondeu à minha perfídia. Você acha que tem estilo?
GD: Eu gostaria de ter. O que posso dizer? Para ser um estilista,
dizem que é preciso viver o problema do estilo. Se é assim, para
responder com mais modéstia, eu vivo o problema do estilo. Nunca
escrevo sem pensar no estilo. Sei que eu não obteria o movimento
dos conceitos que eu desejo sem passar pelo estilo. Sou capaz de
refazer dez vezes a mesma página.
CP: O estilo é como uma necessidade de composição do que você
escreve. A composição entra em jogo de forma primordial.
GD: Acho que tem toda razão. O que está dizendo: será que a
composição de um livro já é uma questão de estilo? Acho que é
sim. A composição de um livro é algo que não se resolve
previamente. Ela acontece ao mesmo tempo em que o livro é
escrito. Por exemplo, vejo em livros que eu escrevi, se me permite
citar o que eu fiz... Há dois livros meus que me parecem
compostos. Sempre dei importância à composição. Penso em um
livro chamado Lógica do sentido que é composto por séries. Para
mim, é uma composição serial. E Mil platôs é uma composição
por platôs. Para mim, são duas composições musicais, sim. A
composição é um elemento fundamental do estilo.
CP: Em sua expressão, você acha que, hoje, está mais próximo
do que queria fazer há vinte anos atrás? Ou não é nada disso?
GD: Atualmente, tenho a impressão de estar me aproximando, sim.
No que ainda não foi feito, acho que estou me aproximando.
Detenho algo que eu buscava e não tinha encontrado.
CP: O estilo não é só literário. É sensível a ele em todas
as outras áreas. Você vive com a elegante Fanny e seu amigo
Jean-Pierre também é muito elegante. É muito sensível a esta
elegância?
GD: Sim, eu me sinto... Eu gostaria de ser muito elegante, mas sei
que não sou. Mas, para mim, a elegância é uma coisa... Quero
dizer que existe uma elegância que consiste em se perceber o que
é uma elegância. Do contrário, há pessoas que não entendem
nada e o que chamam de elegância não é nada elegante. Uma certa
compreensão da elegância já faz parte da elegância. Isso me
impressiona muito. É uma área que, como todas as outras, exige
um certo aprendizado, um certo talento... Mas por que perguntou
isso?
CP: Por causa do estilo.
GD: Sim, claro. Mas este aspecto não é nada valioso. O que
talvez se deveria...
CP: Deveria?
GD: Não sei. Acho que não depende apenas da elegância, que é
uma coisa que admiro muito, mas o importante no mundo é tudo o
que emite signos. A não-elegância e a vulgaridade também emitem
signos. É muito mais isso que me importa. São as emissões de
signos. É certamente por isso que gostei tanto e ainda gosto de
Proust. O mundanismo, as relações mundanas são emissões de
signos fantásticas. O que chamam de gafe é uma não-compreensão
de um signo. São signos que as pessoas não entendem. A
mundanidade como um meio fértil de signos vazios, absolutamente
vazios, sem interesse algum, mas são as velocidades, a natureza
das emissões. Isso tem a ver com o mundo animal, pois ele também
é um emissor de signos fantásticos. Os animais e os mundanos são
mestres em signos.
CP: Você não sai muito, mas sempre preferiu noites mundanas a
conversas entre amigos.
GD: Sim, porque nos meios mundanos, não se discute, não há esta
vulgaridade. E a conversa é totalmente supérflua, leve, com
evocações extremamente rápidas. São emissões de signos muito
interessantes.
T de Tênis
CP: T de Tênis.
GD: Tênis!
CP: Você sempre gostou de tênis. Há uma famosa história em que
você, criança, foi pegar um autógrafo de um grande jogador
sueco e viu que pegou o autógrafo do rei da Suécia.
GD: Mas eu já sabia que era ele! Ele já era centenário. Tinha
um monte de seguranças. Eu fui pedir um autógrafo ao rei da
Suécia. O jornal Le Figaro tinha me fotografado. Havia uma foto
onde um menino pedia um autógrafo ao velho rei da Suécia. Era
eu.
CP: E quem era o grande jogador sueco?
GD: Era Borotra. Não era um grande jogador sueco. Era o
guarda-costas do rei, que jogava tênis com ele e o treinava. Ele
me chutava para eu não me aproximar do rei. Mas o rei foi muito
bonzinho. Borotra também ficou bonzinho. Não é um momento
brilhante na vida de Borotra.
CP: Houve outros ainda piores de Borotra. É o único esporte que
assiste na TV?
GD: Não, eu adorava futebol também. O que mais? Acho que é só:
tênis e futebol.
CP: Você jogou tênis?
GD: Sim, muito. Até a guerra. Sou uma vítima da guerra.
CP: O que muda em seu corpo quando pratica tênis e depois deixa
de praticar? Muda alguma coisa?
GD: Não sei, acho que não. Para mim, não mudou nada, Não era
um profissional. Eu tinha 14 anos em 1939. Eu parei de jogar tênis
aos 14 anos e não foi um drama.
CP: Você foi uma revelação?
GD: Até que eu jogava bem para a minha idade. Só fazia isso.
CP: Estava classificado?
GD: Não, só tinha 14 anos. Além do mais, não havia o
desenvolvimento que há hoje.
CP: Praticou outro esporte, o boxe francês, não?
GD: Lutei um pouco de boxe, mas me machucaram e parei logo. Mas
fiz um pouco.
CP: Acha que o tênis mudou muito desde sua juventude?
GD: Todos os esportes! São meios de variações. E voltamos ao
problema do estilo. O esporte é muito interessante porque está
ligado às atitudes do corpo. Há uma variação das atitudes do
corpo, as quais se estendem ao longo de períodos de tempo
relativamente prolongados. É claro que não se pulam arbustos
hoje como se pulavam há 50 anos. Arbustos ou outra coisa... É
preciso classificar as variáveis na história dos esportes, pois
há variáveis de tática. No futebol, as táticas mudaram muito
desde a minha infância. Há variáveis de atitude, de posturas de
corpo. Há variáveis que geram implicações. Houve uma época em
que me interessei por lançamento de peso. Não para praticá-lo,
mas porque os gabaritos dos lançadores de peso evoluíram
rapidamente. Tratava-se de força, mas como recuperar velocidade
com lançadores muito fortes? Tratava-se também de gabaritos
rápidos, mas, usando a velocidade como primeiro elemento, como
recuperar a força? É muito interessante. O sociólogo Mauss
havia lançado um estudo sobre as atitudes do corpo nas
civilizações. O esporte é uma área fundamental das variações
das atitudes. No tênis, antes da guerra, — eu me lembro bem dos
campeões da época —, as atitudes eram muito diferentes. O que
me interessava muito — e voltamos à questão do estilo — eram
os campeões que são realmente criadores. Há dois tipos de
campeões que não têm o mesmo valor para mim: os criadores e os
não-criadores. Os não-criadores são aqueles que usam um estilo
já existente como uma força inigualável, como Lendl, por
exemplo, que não é criador em tênis. E os grandes criadores.
Esses são os que inventam novas jogadas e introduzem novas
táticas. E nisso tudo, há uma série de seguidores. Os grandes
estilistas são os inventores. Eles também existem nos esportes.
Qual foi a grande virada do tênis? Foi a sua proletarização,
mas com a devida relatividade. Tornou-se um esporte popular...
Mais para jovens executivos do que proletários, mas, mesmo assim,
vou falar em proletarização do tênis. Havia movimentos
profundos que justificavam o ocorrido, mas isso não teria
acontecido sem a existência de um gênio. Borg foi o responsável.
Por quê? Porque trouxe o estilo de um tênis popular. Foi preciso
que ele o criasse. Depois, outros campeões o seguiram, mas não
eram criadores, como Vilas, etc. Mas Borg me convém
perfeitamente, por causa de sua cara de Cristo. Ela tinha aquela
expressão crística, aquela extrema dignidade, o fato de ser
respeitado por todos os jogadores.
CP: Você estava dizendo: "Eu assisti...".
GD: Sim, eu assisti muita coisa em tênis, mas quero fechar sobre
o Borg. Borg é um personagem crístico. Garante o esporte
popular, cria o tênis popular. Isso implica na total invenção
de um novo jogo. Há uma série de campeões de valor como Vilas,
mas que vieram impor um jogo soporífico. Mas sempre voltamos
àquela lei: "Vocês estão me elogiando e estou a cem léguas
do que queria fazer". Pois Borg muda. Quando sente que deu
certo, ele muda, não o interessa mais e ele evolui. O estilo de
Borg evoluiu, enquanto que os "burocratas" mantinham a
mesma coisa. O anti-Borg era o McEnroe.
CP: Qual era o estilo proletário de Borg?
GD: Um estilo de fundo de área, recuo total, e o liftage... e a
proximidade da rede. Qualquer proletário ou executivo menor pode
entender este jogo. Mas não disse que poderia jogar assim. O
princípio do jogo de Borg é o contrário dos princípios
aristocráticos. São princípios populares, só que faltava um
gênio para revelá-los. Borg é exatamente como Jesus Cristo. É
um aristocrata que se dirige ao povo. Estou dizendo besteiras...
Borg foi impressionante. Muito curioso. Um grande criador no
esporte. E havia McEnroe, que era um aristocrata puro, um
aristocrata meio egípcio, meio russo. Saque egípcio, alma russa.
Inventava jogadas que ele sabia que ninguém poderia fazer igual.
De fato, ele inventava jogadas prodigiosas. Ele inventou uma que é
colocar a bola. Não bate nela, só a coloca. Ele fez uma série
de saques-cortadas que eram conhecidos, mas os de McEnroe foram
renovados por completo. Poderia falar de muitos outros. Mas há
outro grande, mas que não tem a mesma importância. É outro
americano, esqueci o nome dele.
CP: Connors.
GD: Sim, nele vemos o princípio aristocrático da bola sem efeito
e dando uma rasante na rede. Este é um princípio aristocrático.
E o toque de raquete em desequilíbrio. Nunca ninguém teve tanto
gênio quanto ele em desequilíbrio. São jogadas muito curiosas.
Há uma história dos esportes, mas isso vale para todos. É
exatamente como na Arte. Existem os criadores, os seguidores, as
mudanças, as evoluções, a história e há o devir do esporte.
CP: Você começou dizendo "Eu assisti...".
GD: É mais um detalhe. Às vezes é difícil determinar a origem
de uma jogada. Antes da guerra, havia os australianos. Aí,
existem questões de nações. Porque foram os australianos que
trouxeram a rebatida cruzada com duas mãos. No início, só os
australianos o faziam, pelo que me lembro. É uma invenção
australiana. Por que os australianos? Não sei, mas deve ter um
motivo. Mas eu me lembro de uma jogada que tinha me impressionado
quando menino porque não tinha efeito nenhum. Víamos que o
adversário geralmente errava e pensávamos: "Por quê?".
Era uma jogada sem graça. Mas, pensando bem, percebíamos que era
na rebatida. O adversário sacava e o jogador rebatia a bola. Ele
rebatia com pouca força, mas tinha a propriedade de cair
exatamente na ponta dos dedos do pé daquele que sacou e que
recebia a bola de volta. Ele não conseguia pegá-la. Era uma
jogada estranha. Nós pensávamos: "Mas o que é isso?".
Não entendíamos bem por que era uma jogada tão bem-sucedida e
impressionante. Acho que o primeiro a ter sistematizado esta
jogada foi um grande jogador australiano que se chamava Brownwich.
Ele devia ser do pós-guerra. Não me lembro bem. Foi um grande
jogador e um criador de jogadas. Quando rapaz, eu me lembro bem
disso, era impressionante. Hoje, é uma jogada clássica, todos
fazem isso. Mas é o caso de uma invenção de jogada; a geração
de Borotra não conhecia este tipo de rebatida.
CP: Para fechar o assunto, quando McEnroe reclama e insulta o
juiz, aliás, ele xinga a si próprio mais do que ao juiz, é uma
questão de estilo porque não gostou de sua expressão?
GD: Não, é uma questão de estilo porque faz parte do estilo
dele. É uma descarga nervosa. Como um orador pode ficar furioso,
mas há oradores glaciais. Sim, faz parte do estilo. É a alma.
Como se diria em alemão, é a Gemüt.
CP: Agora, U de Uno.
GD: Uno!
U de Uno
CP: U, V, W, X, Y, Z. É o fim e vamos ser rápidos. U de Uno; V
de Viagem; W de Wittgenstein, X, o Desconhecido, Y vamos deixar
para os neo-platonicianos e Z fecha e ilumina. U é Uno.
GD: Uno.
CP: Sim, Uno. A Filosofia ou a Ciência cuidam do universal. No
entanto, você diz que a Filosofia deve manter contato com as
singularidades. Existe um paradoxo?
GD: Não há paradoxo, porque a Filosofia, e até mesmo a Ciência,
não tem nada a ver com o universal. São idéias preconcebidas de
opiniões. A opinião sobre a Filosofia é que ela cuida do
universal. E a opinião sobre a Ciência é que ela cuida de
fenômenos universais que podem se repetir. Mesmo se pegar a
fórmula de que todo corpo cai, o importante não é que todos os
corpos caem e, sim, a queda e as singularidades da queda. Que as
singularidades científicas como as da matemática, da física ou
da química, como ponto de congelamento, sejam reproduzíveis,
tudo bem, mas e daí? São fenômenos secundários, processos de
universalização. Mas a Ciência não cuida de universais, mas de
singularidades. Quando é que um corpo muda de estado e passa do
líquido para o sólido, etc.? A Filosofia não cuida do Uno, do
ser, nada disso.Tudo isso é besteira! Também ela cuida de
singularidades. Seria preciso perguntar o que são as
multiplicidades. As multiplicidades são conjuntos de
singularidades. A fórmula da multiplicidade é "n menos 1".
Ou seja, o 1 é sempre o que deve ser subtraído. Acho que há
dois erros que não devem ser cometidos. A Filosofia não cuida de
universais. Há três universais. Poderíamos relacioná-los. Há
os universais de contemplação, as Idéias, com um I maiúsculo.
Há os universais de reflexão e os universais de comunicação. É
o último refúgio da Filosofia dos universais. Habermas gosta
muito dos universais de comunicação. Isso implica definir a
Filosofia como contemplação, como reflexão ou como comunicação.
Os três casos são cômicos. É uma palhaçada. O filósofo que
contempla, tudo bem, é muito engraçado. O filósofo que reflete
não é engraçado. É pior, porque ninguém precisa de um
filósofo para refletir. Os matemáticos não precisam de um
filósofo para refletir, um artista não precisa procurar um
filósofo para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não
precisa dele para refletir sobre música. Dizer que a Filosofia é
uma reflexão segura é desprezar a Filosofia e o motivo de sua
reflexão. Não precisa de Filosofia para refletir. Quanto à
comunicação, nem se fala! A idéia de que a Filosofia seja um
consenso para comunicar a partir dos universais da comunicação é
a idéia mais divertida que já vi. A Filosofia não tem nada a
ver com comunicação. A comunicação se basta. É uma questão
de opinião e de consenso de opinião. É a arte das
interrogações. A Filosofia não tem nada a ver. Como já disse,
a Filosofia cria conceitos. Não é comunicar. A Arte não é
comunicativa, não é reflexiva, nem a Ciência, nem a Filosofia.
Não é contemplativa, nem reflexiva, nem comunicativa. É
criativa. Nada mais. A fórmula é "n menos 1", eliminar
a unidade, eliminar o universal.
CP: Então, os universais não têm nada a ver com Filosofia?
GD: Não, nada a ver.
V de Viagem
CP: Vamos à letra V. V de Viagem. É a demonstração de que um
conceito é um paradoxo, porque você inventou um conceito que é
o nomadismo, mas você odeia viajar. A esta altura da nossa
entrevista, podemos dizer que você odeia as viagens. Por que as
odeia?
GD: Não odeio as viagens, odeio as condições em que um pobre
intelectual viaja. Talvez se eu viajasse de outra maneira, eu
adorasse viagens. Mas entre os intelectuais, o que quer dizer
viajar? É fazer uma conferência do outro lado do mundo com tudo
o que implica antes e depois: falar antes com pessoas que o
recebem, falar depois com pessoas que o ouviram. Falar, falar... A
viagem de um intelectual é o contrário da viagem. Ir para o
outro lado do mundo para falar o que poderia falar em casa e para
ver gente antes e depois de falar. É uma viagem monstruosa.
Assim, é verdade que não tenho simpatia por viagens. Isso não é
um princípio. Não pretendo ter razão, mas eu fico pensando: "O
que existe na viagem?". Há sempre um lado de falsa ruptura.
Este é o primeiro aspecto. O que torna a viagem antipática para
mim? Primeiro é o fato de ser uma ruptura barata. Eu sinto
exatamente o que dizia Fitzgerald: "Não basta uma viagem
para haver uma ruptura". Se querem ruptura, faça outra coisa
que não seja viajar. As pessoas que viajam muito têm orgulho
disso e dizem que vão em busca de um pai. Há grandes repórteres
que fazem livros sobre isso. Foram ao Vietnã, Afeganistão, etc.
e dizem friamente que sempre estiveram em busca de um pai. A
viagem me parece muito edipiana neste sentido. Não, assim não
dá. A segunda razão é... Há uma frase maravilhosa que me toca
muito, de Beckett, que faz um de seus personagens dizer o
seguinte: "Somos idiotas, mas não ao ponto de viajar por
prazer". Esta frase me parece totalmente satisfatória. Sou
idiota, mas não ao ponto de viajar por prazer. Isso não. E o
terceiro aspecto da viagem... Você falou em nômade. Sim, os
nômades sempre me fascinaram, exatamente porque são pessoas que
não viajam. Quem viaja são os imigrantes. Há pessoas obrigadas
a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são viagens das
quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são forçadas.
Mas os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades ficam
imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair,
eles se apegam à terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se
apegam a ele, só podem "nomadizar" em suas terras. É
de tanto querer ficar em suas terras que eles "nomadizam".
Portanto, podemos dizer que nada é mais imóvel e viaja menos do
que um nômade. Eles são nômades porque não querem partir. É
por isso que são tão perseguidos. E, finalmente, o último
aspecto da viagem... Há uma bela frase de Proust que pergunta o
que fazemos quando viajamos. Sempre verificamos algo. Verificamos
se aquela cor com que sonhamos está ali. Mas ele acrescenta algo
muito importante: "Um mau sonhador é aquele que não vai ver
se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom sonhador vai
verificar, ver se a cor está lá". Esta é uma boa concepção
da viagem. Do contrário...
CP: Acha que é uma regressão fantástica?
GD: Não, há viagens que são verdadeiras rupturas. Por exemplo,
a vida de Le Clézio me parece uma coisa onde se opera uma
ruptura.
CP: Lawrence?
GD: Sim, Lawrence. Há muitos grandes escritores pelos quais tenho
grande admiração e que têm um sentido da viagem. Stevenson. As
viagens de Stevenson são enormes. Eu digo por minha conta que
quem não gosta de viagens é por estes quatro motivos.
CP: Seu ódio por viagens está ligado à sua lentidão natural?
GD: Não, porque pode haver viagens lentas. Não preciso sair.
Todas as intensidades que tenho são imóveis. As intensidades se
distribuem no espaço ou em outros sistemas que não precisam ser
espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho
bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a
sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu
conhecer. Por que iria buscar estas emoções em um sistema que
não me convém quando posso obtê-las em um sistema imóvel, como
a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-filosofia.
São países profundos. São os meus países.
CP: Terras estrangeiras?
GD: Minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens.
GD: Você é a perfeita ilustração de que o movimento não é
locomoção, mas já esteve no Líbano, para conferências, no
Canadá, nos Estados Unidos...
GD: Sim, estive lá, mas eu sempre fui levado. Hoje, não faço
mais isso. Não deveria ter feito isso. Já fiz demais. Eu gostava
de andar naquela época. Hoje, ando menos bem. Então, nem entra
em questão. Gostava de andar. Eu fazia caminhadas da manhã à
noite, sem saber para onde ia. Andava por uma cidade a pé, mas
isso acabou.
W de Wittgenstein
CP: Vamos ao W.
GD: Não tem nada em W.
CP: Tem sim: Wittgenstein. Sei que não é nada para você...
GD: Não quero falar disso. Para mim, é uma catástrofe
filosófica. É uma regressão em massa de toda a filosofia. O
caso Wittgenstein é muito triste. Eles criaram um sistema de
terror, no qual, sob o pretexto de fazer alguma coisa nova,
instauraram a pobreza em toda a sua grandeza. Não há palavras
para descrever este perigo. E é um perigo que volta. É grave,
pois os wittgensteinianos são maus, eles quebram tudo! Se eles
vencerem, haverá um assassinato da filosofia. São assassinos da
filosofia.
CP: É grave, então?
GD: Sim, é preciso ter muito cuidado!
X de Desconhecido
CP: X é Desconhecido.
Y de Indizível
CP: Y é Indizível.
Então, passamos direto para a última letra do alfabeto, a letra
Z.
GD: Que bom!
Z de Ziguezague
CP: Não é o Z de Zorro, o justiceiro, como já vimos através
deste alfabeto, mas o Z da bifurcação, do raio. O Z que existe
no nome dos grandes filósofos: Zen, Zaratustra, Leibniz, Spinoza,
Nietzsche, "Bergzon" e, é claro, Deleuze.
GD: Você foi muito espirituosa com "Bergzon" e muito
boazinha comigo. Z é uma letra formidável, que nos faz voltar ao
A. O ZZZZ da mosca, o ziguezague da mosca. O Z é o ziguezague. É
a última palavra. Não há palavras depois de ziguezague. É bom
terminar em cima disso. O que acontece com o Z? O Zen é o inverso
de nez [nariz], que também é um ziguezague. É o movimento... a
mosca... O que é isso? Talvez seja o movimento elementar, o
movimento que presidiu a criação do mundo. Neste momento, estou
lendo sobre o Big-Bang, a criação do universo, a curvatura
infinita, como tudo se fez... A base de tudo não é o Big-Bang,
mas o Z.
CP: Você falava do Z da mosca, do Big-Bang, a bifurcação...
GD: O Big-Bang deveria ser substituído pelo Z, que é o Zen, que
é o trajeto da mosca. O que significa isso? Para mim, o
ziguezague lembra o que dizíamos sobre universais e
singularidades. A questão é como relacionar as singularidades
díspares ou relacionar os potenciais. Em termos físicos, podemos
imaginar um caos, cheio de potenciais, mas como relacioná-los?
Não sei mais em que disciplina científica, mas li um termo de
que gostei muito e tirei partido em um livro. Ele explicava que,
entre dois potenciais, havia um fenômeno que ele definia pela
idéia de um precursor sombrio. O precursor era o que relacionava
os potenciais diferentes. E uma vez que o trajeto do precursor
sombrio estava feito, os dois potenciais ficavam em estado de
reação e, entre os dois, fulgurava o evento visível: o raio!
Havia o precursor sombrio e o raio. Foi assim que nasceu o mundo.
Sempre há um precursor sombrio que ninguém vê e o raio que
ilumina. O mundo é isso. Ou o pensamento e a filosofia deveriam
ser isso. E o grande Z é isso. A sabedoria do Zen também. O
sábio é o precursor sombrio e as pauladas - já que o mestre Zen
vive dando pauladas - constituem o raio que ilumina as coisas.
Assim, chegamos ao fim...
CP: Gosta de ter um Z em seu nome?
GD: Adoro! Pronto.
CP: Fim.
GD: Que alegria ter feito este... Pronto! Póstumo, póstumo!
CP: PóZtumo!
GD: Obrigado pela gentileza de todos.
Notas
1. O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de
Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse,
Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da
Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações].
2. A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi
filmada nos anos 1988-1989. Como diz Deleuze, em sua primeira
intervenção, o acordo era de que o filme só seria apresentado
após sua morte. O filme acabou sendo apresentado, entretanto, com
o assentimento de Deleuze, entre novembro de 1994 e maio de 1995,
no canal (franco-alemão) de TV Arte. Deleuze morreu em 4 de
novembro de 1995. A primeira intervenção de Claire Parnet foi
feita na ocasião da apresentação (1994-1995), enquanto a
primeira intervenção de Deleuze é da época da filmagem
(1988-1989).
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